domingo, outubro 25, 2009

Carta à minha Mãe

Aldeia de João Pires, 25 de Outubro de 2009
 
Querida e saudosa Mãe.
Estimo que esta minha carta a encontre na Felicidade eterna, na companhia do meu Pai, dos Avós e tios e restante Família, junto da Santíssima Trindade e de Nossa Senhora.
Querida Mãe, faz hoje 19 anos que nos deixou e, desde essa data, isto nunca mais foi a mesma coisa. Ao princípio, a saudade era tão intensa que quase me endoidecia e apanhei-me muitas vezes a falar consigo. Embora soubesse que me ouvia, nunca consegui receber a sua resposta.
Depois, diziam-me, "o tempo cura tudo". Na verdade cura e não cura. A conformação com a sua ausência foi dando lugar àquilo que eu vivia e era quase um desespero. Além do mais, ficámos com o meu Pai, que já está agora junto de si, sobrou-me trabalho, casaram os meus filhos e nasceram os netos, sim os meus!!! - "filhos criados, trabalhos dobrados" e eu acrescento filhos casados trabalhos quadriplicados - Olhe, Mãe, isto cá na Terra está uma grande complicação, uma "sem-vergonhice" que muito a faria sofrer. Mas voltemos à nossa Família: os seus netos já me fizeram avô. O meu Pai ainda foi bisavô, mas ele já lhe deve ter contado, "O Avô Pim-Pim", como lhe chamava a vossa bisneta mais velha, a Dulce. A mais pequenina, a Leonor, está a chegar, dentro de dias, a que vai ser a primeira filha do seu neto mais novo, pois, o João Pedro. Neto mais novo, claro, não contando com a Cristina, a filha mais nova da minha Irmã, que nasceu três dias antes da sua partida e fez agora também 19 anos. Pois, "Deus tira com uma mão e dá com a outra"... Porque não havíamos de ter as duas ao mesmo tempo? A nós Ele não explicou, mas, com certeza, a Mãe já sabe...
Desde que a Mãe partiu, isto dos seus filhos nunca mais foi a mesma coisa. Como os pintainhos a quem roubassem a galinha, ou ovelhas tresmalhadas, sem pastor, nunca mais fizemos festa lá na Aldeia. E também tivemos outras falhas. Ah! Mãe, quanta falta nos faz cá em baixo. Pensava eu que, quando fosse velho, já sabia de tudo e que não precisaria de si para nada. Pois não é agora que estou a chegar à idade com que se despediu de nós que ando a sentir que ainda necessito mais de si? Pois, só sabemos o bem que temos... quando o perdemos.
Hoje, almocei com a sua Neta mais velha. Tem dois filhos e vive aqui perto de nós. Também vi o falei com o seu neto Fernando, o meu. Vi-o, na Alemanha, e ele viu-nos a nós. O meu neto Tomás está uma gracinha. Vimo-nos e falámos!!! Como? A Mãe nem imagina a volta que isto está dando. Não, já não é preciso esperar semanas pelos aerogramas que eu e o meu Irmão lhe mandávamos de África. "Isto agora é outra loiça". Penso que a Internet não será precisa aí no Céu, mas aqui é um desatino: sabe-se tudo, diz-se tudo, vê-se tudo, uma "fofoquice" pegada. Sim, Mãe, às vezes vê-se mesmo "tudo". Eu sei que a Mãe sempre detestou a "piada grossa", mas esta "escapou-me". Desculpe, sim?!
O JP era uma Criança, quando o viu pela última vez. Depois, cresceu e ficou ansioso de liberdade e de correr o Mundo. Cansou-se e agora, desde há pouco tempo, mora aqui, em frente a nós. Quem diria!!! Os caminhos de Deus são insondáveis. Dele e da Esposa vamos ter a Leonor. Pois, falta o Luís "o Príncipe", como lhe chamava a D. Alexandrina - quando a vir, por aí, dê-lhe um beijo meu. Pois o Luís também anda por aqui. Imagine que tem duas meninas RUIVAS. Um achado, na nossa Família. À Primeira, pensámos que era uma brincadeira dele e da Michelle. Quando veio a Segunda, demo-nos conta que era mesmo a sério. Também ruiva! Pronto, Mãe, eles não brincam em serviço. Saíram duas "coisas" lindas!
E nós, Mãe, eu e a Leo? Olhe, foi uma aposta ganha. Já vão 43 anos que juntámos os trapinhos - "dois gaiatos que não sabem o que fazem" - e que nos temos aguentado. Com solavancos, às vezes, mas agora temos a "certeza" de que um vai fechar os olhos do outro. Para ir ao seu encontro. "É a vida"! - como dizia um nosso 1º, ministro que a Mãe já não conheceu.
Olhe, Mãe, este ano lembrei-me das suas flores e enchi o jardim de sécias. Aí vão, pois sei que lhe vou dar alegria, mesmo que aí nada falte. Mas estas foram criadas por mim... para si. Olhe, vai ficar admirada, mas, em Setembro, não havia sécias na igreja de Aldeia, na festa de Nossa Senhora da Graça. Ou já ninguém as cultiva... ou aquilo "fia fino" - só flores de compra, das cara. Manias. Ou fartura de dinheiro. Tenho uma certeza: não foram cultivadas, colhidas e oferecidas a Nossa Senhora com aquele Amor que nós sabemos.
Ah! A casa!!! O Pai já lhe disse, com certeza, que o vosso grande sonho se realizou - ainda foi DELE! Por pouco tempo. Por isso, quisemos que ficasse para um de nós. É nossa. Está arranjadinha e confortável. É lá que nos abrigamos e pensamos em vós, quando vamos à nossa terra. Há-de ser de um dos vossos netos, se Deus quiser também.
Olhe, Mãe, eu não me cansava de ficar para aqui a escrever, a escrever. Mas Nosso Senhor pode ter-lhe dado alguma tarefa para cumprir e não quero que Se "aborreça" consigo...
Por hoje nada mais: dê saudades nossas a toda a Família aí presente. E às vizinhas. Um dia destes vou escrever sobre alguma delas. À Avó Emília mando um beijo muito especial. Ela sabe que não a esqueço. Já agora à tia Maria Zé também.
Para o Pai e para si eu mando mil beijinhos com saudades sem fim deste seu filho que nunca a esquece,
PS.
1. Não se esqueça de pedir a Nossa Senhora da Graça  e a Nosso Senhor que tenham pena deste pobre estroina, que se esquece, muitas vezes, daquilo que me ensinou com tanto Amor: REZAR E FAZER O BEM!!!
2. A Leonor nasceu, vai fazer 4 aninhos e tem agora um mano lindo, o Pedro. A Cristina casou e é muito feliz, o Francisco, seu neto afim, uma jóia. A maior parte das suas grandes amizades está já consigo.
3. Dos seus irmãos o que restava, o Fernando "Sarra" já o deve ter visto. Foi ter consigo no dia 13 de Junho, quando lembrávamos a morte da vossa mãe Emília, a nossa Avó.
4. Quando há coisas menos boas para dizer, olhe,  Mãe,"bico calado" para não sair asneira nem entrar mosca. Eu queria lá perturbar essa grande Felicidade de estar no Céu! Cá em baixo pensamos que nem era possível!
Beijo saudoso

terça-feira, outubro 13, 2009

Netos!!!

A Madalena é a minha neta mais nova. Só por mais umas semanas, pois a prima a seguir já anda por aí. Está a chegar.
Mas, enquanto o tempo não passa, a pequena "Magaí", como lhe chama a mana, tem destas coisas: estava cheia de saudades do Pai - uma paixão que só uma Crianças pode oferecer. Tendo estado uns dias sem o ver, que melhor maneira de celebrar o seu regresso? Aproveitando as arrumações habituais, nestas situações, "desaparece", por momentos. Há um silêncio pouco habitual, lá em casa. Feita a procura indispensável, aqui a vemos, apanhada em flagrante "de litro" ou de mala. Como queiram. Parece mesmo dizer:
- Papá, à próxima não te esqueças de mim, por favorrrrrr! Leva-me contigo!!! Tu sabes que eu te amo!
E é bem verdade.
E recíproco.
Beijão.
Avô. E Pai!

Poupar energia? Ou esbanjar energia???

Uma das maiores apostas do Governo que agora acaba funções tinha os elevados objectivos de poupar o ambiente e melhorar o enorme deficit na importação da energia que consumimos, sobretudo a de origem fóssil. Assim, aí temos novas regras mais ecológicas na construção, os enormes geradores eólicos, a instalação de novas barragens, o aproveitamento da energia das ondas, as centrais foto-voltaicas, tão oportunas num País com elevados níveis anuais de luz solar, e o também consequente aquecimento da água, em painéis instalados nos telhados ou nos terraços dos edifícios. Eu próprio aderi à campanha e disponho agora de água quente, em abundância, durante as 24 horas do dia, sem gastar um cêntimo em gás ou em electricidade. Uma maravilha que me encanta. Que encanta, de modo especial, a dona desta casa.
No entanto, há sempre o reverso da medalha. Desloquei-me, recentemente, à minha Aldeia, na Beira profunda e, para meu espanto, constatei que foram "plantados" postes de iluminação, de grosso calibre, às centenas, pelos arrabaldes das aldeias por onde passei, com ramais por estradas e caminhos que chegam a atingir quase um quilómetro para além da periferia das povoações. Ora, nas nossas terras do interior, depois do Sol-posto, quase ninguém sai à rua, muito menos pelos arredores e ali ficam aquelas lâmpadas, milhares e milhares, a consumirem milhões de "quilowatts", sem proveito para ninguém. Ou, presumivelmente, com bons proveitos para os accionistas da empresa distribuidora, pois ninguém dá nada "de borla". Mas sempre uma despesa inútil para o nosso País.
E já nem falo do desperdício de energia nas grandes urbes, com destaque para muitos dos edifícios públicos e também privados. E vou referir-me também aos campos, aqui, à volta de Palmela que, apreciados, de noite, lá do altaneiro castelo, mais parecem uma cidade bem iluminada. Mas, realmente, esses campos, vistos à luz do Sol, com povoados aqui e além, são vinhedos onde se produz do melhor vinho do Mundo. E, de certeza, que não será por causa da muita luz importada e mal gasta.
As campanhas têm coisas assim, às vezes boas, outras vezes bem esquisitas. E desta, para poupar energia, que posso pensar? Uma treta portuguesa, com certeza! Desejo-lhes um bom dia, com poupança de ENERGIA!
(Crónica transmitida na "Rádio Sim", no programa "A Telefonia", rúbrica "Faça Você Mesmo!", de 27 de Outubro de 2009.)

Bom tempo, mau tempo!!!

Queridos Amigos e queridas Amigas da Rádio SIM,
Diariamente, quase sempre largas horas, vou ouvindo o muito que de bom têm para nos apresentar. Devo fazer notar que, no "sótão", tem de haver ainda muias mais "novidades" e que, às vezes, a audição se torna monótona, ao longo das 24 horas, pois já se deu o caso de ouvir a mesma música em diferentes programas. O que até pode ser bom, para alguns dos ouvintes, mas eu acho que a "matéria prima" aí nos vossos arquivos pode dar "pano para mangas".
Mas o que verdadeiramente me está a "fazer mossa" é a questão do tempo, do bom tempo. Então a Helena Almeida enche a boca no "bom tempo" que temos. E ela tem menos desculpa - desculpe lá, querida Lena!!! - pois está aqui a viver e a trabalhar numa região com muita agricultura e sabe - devia saber? - que isto que Deus nos manda é tudo menos "bom tempo". Já os povos bíblicos do Antigo Testamento tinham a noção da gravidade das secas causadas pela escassez das chuvas. Ora o que nós temos é um péssimo tempo: os campos estão ressequidos, não se podem fazer as lavouras nem as sementeiras de Outono, os gados não têm pastagens, as árvores estão a morrer de sede, os poços não têm pinga de água, as ribeiras estão à míngua - há regiões onde tiveram de transferir os peixes para os salvar. Por este caminho, Portugal, a Sul do Tejo e até em parte da Beira Interior tornar-se-á, em poucos anos, um prolongamento dos desertos do norte de África. A água que consumimos tem de ser captado em furos cada vez mais fundos e, tudo tem um limite, De onde vai vir a água para beber? Do Supermercado, responderá o miúdo reguila. E para o banho? Vou à piscina, dirá a garota "modernaça". E para lavar a loiça? O cão lambe, exclama o adolescente preguiçoso. E para lavar a roupa? Deito-a fora e vou pedir mais à Cáritas, sugere o "subsídio-dependente"... E assim se vai criando, na sociedade citadina, a ideia de que a chuva não faz falta e de que é mesmo uma chatice!!!Pois!!! Mas faz mesmo falta e, desgraçadamente, vamos senti-lo mais depressa do que seria para desejar. Os camponeses já o sabem. Os bombeiros também. "Os meninos da cidade", os que mais água estragam, vão sabê-lo, em breve.
Queridos Amigos e queridas Amigas,
Por favor, tenham uma atitude pedagógica: em Agosto, calor e céu limpo é bom tempo; em Outubro, Helena Almeida, este tempo ... é uma DESGRAÇA!!!
Abraço todos e vou continuar a ouvir-vos,
O ouvinte chato,
António A. Serrano
Palmela

terça-feira, outubro 06, 2009

Na eira - 3

Ainda o Sol não despontara lá dos lados de Espanha e já o pessoal se apresentara para o "grande " dia. O do tudo ou o do nada. As malhas com a debulhadora - do Luís Ferreira, das Aranhas, que se pagava à "maquia" - davam um enorme desembaraço ao trabalho. Estes pequenos agricultores, na maior parte dos casos, não tinham cereal suficiente para ocupar a máquina nem por um dia. Do nascer ao pôr do sol. Assim, numa só jornada, era possível despachar várias "malhas". Em muitos casos, o trabalho era feito em cooperação, ajudando-se uns aos outros. Um ou dois homens iam para o cimo da meda, meia dúzia deles aparava e arrumava a palha, no campo à volta da eira, uma mulher subia para, com uma foice, "traçar" os "nagalhos" que atavam os molhos - a largada para dentro da máquina era feita por um "profissional", da responsabilidade do dono da malhadeira; na "equipa profissional" vinham também um maquinista, mecânico, diríamos hoje, que também conduzia o tractor e punha tudo em movimento, e um homem para medir o grão que iria cair na arca colocada na "frente" da máquina e cobrar a "maquia" - uma outra mulher tomava conta do "crivo", uma tarefa que ninguém queria pela poeira a que se estava sujeito, dois ou três iam para atar a palha, em molhos. Todo um trabalho ruim, que deixava os corpos cheios de pó e as "praganas" espetadas nas fracas roupas. Que coceira danada!!! Uma mulher ficava encarregada de fornecer água fresca, em cântaro de barro. Havia sempre mais uma ou duas personagens para acudir onde fosse preciso. Também presente o carro com junta de vacas e respectivo ganhão, quase sempre o dono da semente, para que, com ajuda de outro homem, os sacos fossem carregados, quase sempre 15, um "moio", cada saco com uma "fanega", quatro "alqueires", oitenta litros, como se disse antes. Em casa, a dona da "festa", com ajuda familiar, quase sempre a da Mãe, tinha a seu cargo a confecção das refeições e o seu transporte até à eira, podendo isto ser feito quatro vezes por dia, dependendo do tempo que levasse o trabalho a realizar. Como se escreveu para a ceifa.
Para esta malha, calculara-se que um dia seria suficiente. Se o trabalho rendesse, podia-se "meter" ainda o "pão" do J. "Saramago", uma pequena meda, ali mesmo ao lado..
Quando o Sol, cedo, começou a aquecer, já cada um ocupava o seu lugar. O tractor possuía um dispositivo que lhe permitia accionar a malhadeira, sem os inconvenientes do pesado e barulhento motor dos anos passados. Foi, pois, com alívio de todos, que aquela complicada engrenagem se pôs em barulhento labor. O primeiro molho foi atirado para o estrado, a mulher pega-lhe com alguma hesitação, corta o "nagalho" e o cereal foi metido naquele buraco, um sorvedouro, onde desaparece, ouvindo-se um ronco da máquina. Depois, em gestos repetidos, foram aparecendo em cima do estrado e enfiados dentro da malhadeira mais um molho e mais outro, sempre uns a seguir aos outros. A palha saindo pelas "traseiras" e o grão caindo na arca, sendo depois medido "rasa" a "rasa", ensacado, carregado, transportado a casa dos senhores das terras. Sim, as rendas eram as primeiras a entrar neste ajustar de contas. Os sacos ainda haviam de ser despejados, lá junto das "tulhas" dos senhores das terras, onde o grão voltava a ser medido, não fosse faltar algum litro. E, se faltasse - até porque as aferições das medidas nem sempre eram rigorosas, havia que compensar! Sem perdão! Um trabalho injusto e desumano, todo feito só à custa do esforço do rendeiro, já que o beneficiário, ou o seu feitor, apenas tinha de contar e dizer que "está certo". Se as terras arrendadas pertenciam a vários senhores, o que acontecia bastas vezes, havia de se tocar à porta de cada um e "Venho pagar a renda!" Tudo "limpinho", sem se ter uma dor de cabeça nem se derramar uma gota de suor...
À hora do jantar - 12 horas - já a angústia do jovem casal se fazia sentir:
- Então, António, como está isto? Parece-me ver preocupação na tua cara. Que se passa?
- Olha, contava já ter as rendas pagas e ainda só levei duas carradas e está aí outra quase pronta. Isto vai pelo meio. O grão não rende...
- Bem se me apertava o coração, quando vi a seara. Que vai ser de nós?
- Olha, vai para casa. Prepara as merendas. Pode ser que, de tarde, tenhamos mais sorte.
Fingia animá-la - ela, a pessimista (realista?); ele um optimista. Mas, lá no fundo, já adivinhava o desenlance. A coisa estava feia!
Depois do jantar, a palha continuava a sair em quantidade, mas o grão é que não crescia, na arca, com a rapidez tão sonhada. Mais um moio a caminho da renda e a meda a diminuir, a diminuir. Pelo meio da tarde as contas das terras do "Vale do Homem" estavam saldadas. Faltava a da "Tapada da Eira", a da "Tapada do Cabeço" e a da "Tapada da Maria Bernarda". Estas eram bem menores, mas o grão, estava escrito, não daria para muito mais.
A merenda já decorrera num silêncio opressivo. Nada havia a fingir, nada havia para esconder: os molhos eram cada vez menos, a palha mais que muita, como nunca haviam tido, mas o grão, o grão... Uma ilusão.
Amargurada, voltou para casa. Era ainda preciso dar de cear àquela pobre gente que, neste dia, na sua maior parte, havia trabalhado só pela comida. O dia da malha era o dia grande da solidariedade, em que quase todos se ajudavam uns aos outros. Na generalidade, iam-se apercebendo da "tragédia" que entrava na casa daqueles companheiros de desgraça. Afinal, também nisso estavam irmanados. O ano fora mesmo manhoso. Para todos!
O Sol aproximava-se da Serra, lá a Ocidente, quando, cesto à cabeça, ceia para aquele pessoal, Carminda se aproximou da eira, pela última vez, nesse tórrido dia do mês de Julho. Olhar esbraseado, alma em sangue, sabia que nas arcas da sua casa não entrara ainda um grão. A malhadeira não parara, mas o lugar onde estivera a sua meda aparecia agora quase vazio. Donde os molhos haviam pulado para o estrado da máquina eram agora elevados, numa espécie de forquilha, para a plataforma. Em gestos cansados.
- Ó António, então... o pão? - quase grita, ainda com o cesto à cabeça, procurando fazer-se ouvir por cima do barulho das máquinas.
Calmamente, ele dá tempo a que ela se alivie do peso que a oprime menos do que o medo, no peito de ambos, pega-lhe, mansamente, nas mãos e diz-lhe, quase num sussurro, dominando os seus próprios receios:
- Olha, Minda, temos que ter coragem. P´ró ano vai ser melhor. As rendas estão todas pagas e o resto... olha está aí.
Ela olhou, mas não queria ver. Meia dúzia de sacos. Nem dava para acreditar.
Há um cerrar de dentes, lágrimas nos olhos, profunda tristeza no rosto, um esgar de sofrimento, um desanimado curvar de costas. Depois, numa explosão de dor e revolta impotente, braços ao Céu, entrou num choro convulsivo e sentido, com orações e imprecações, onde se intrometiam apenas os ruidosos e últimos estertores da grande máquina:
- Oh! Senhora da Graça, valei-me! Que mal fiz eu? Para que hei-de viver? Triste vida a minha! Que vai ser dos meus filhos?! Ai ! Ai ! Ai! Deus me valha! Santíssimo Sacramento, tende compaixão de mim! Tanto trabalho, tanta despesa! Que mal fiz eu?! Meus queridos filhos!!!

segunda-feira, outubro 05, 2009

Na eira 2

O Inverno acontecera puro e duro. Chuva e vento. Frio e chuva. Vento e frio. Sentiu-se alívio na Aldeia, quando o cuco anunciou a chegada da Primavera. Urgia que as terras escorressem, pois a sementeira do milho não podia falhar. Era quase o "seguro" daquela pobre gente, numa vida de horizontes bem limitados, uma vez que o centeio servia, normalmente, para pagar as rendas. Com a chegada do bom tempo, vacas à charrua e, de novo, rego após de rego, aquelas vastas áreas foram lavradas e as sementes enterradas. Nos melhores terrenos, sobretudo onde a humidade resistisse, com algum êxito, às bravuras do mês de Julho, havia de semear-se o feijão pequeno. Este só lá no mês de Maio.
Já o Sol desaparecera, quando António entrava em casa. Muitas vezes os filhos haviam adormecido. Noutras, o mais velhinho "segurava" as pálpebras para as brincadeiras do costume. Pacientes e ternas.
- Então, homem, como vão as coisas lá pelo "Vale do Homem"?
- Está quase. E vamos conseguir!
Uma oração. A ceia. Ainda uma última "visita" aos animais, à luz da laterna de azeite, não fosse uma corda mal ajustada causar uma desgraça. Aquela amigas fiéis e boas haviam já pastado, na relva, ao fim da tarde, enquanto se apanhava a "erva" para a noite, e agora, depois da comida, na manjedoura, repousavam, tranquilamente.
O dia de amanhã não seria diferente. E o outro. E o outro...
O tempo passara célere, o milho começou a despontar e aquele campo de onde a vida brotava - e dessa vida dependiam muitas outras vidas - estava o que se pode chamar "um encanto". Parecia que a Natureza se reconciliara com o Homem.
A falta de trabalho era um problema grave e não foi difícil contratar um rancho de mulheres e raparigas que quisesse tomar conta daquele milheiral, de "terças". Uma forma de o pobre explorar o outro pobre, pois o dono das terras estava de fora de todas estas maçadas. Explicaremos adiante. Lá pela segunda quinzena de Abril aquele rancho teve de sachar cada bocado daquele enorme terreno, que o rendeiro já percorrera 3 vezes, com arado e grade, e ainda havia de lá voltar para "aterrar", caule a caule, cada uma das plantas daquele milho tão bem nascido. Rezar a Deus e a Nossa Senhora da Graça para que a chuva não falhasse. A chuva! Ou a sua falta, causa de tantas e tantas rugas no rosto da minha Mãe! E depois "desbandeirar" onde o milho fosse mais alto, já com as "maçarocas" criadas. E cortar. E juntar. E carregar no carro de vacas. E transportar para junto da eira, a uns 2 quilómetros. E descamisar. A desfolhada era dos trabalhos mais felizes da nossa gente, sentados e à sombra. Com os lacraus a virem, por vezes "agarrados" aos dedos. Também "experimentei"! E estender as espigas doiradas nas lajes da eira para secarem, convenientemente. E malhar. E limpar das impurezas, com ajuda do vento, grãos atirados ao ar, pazada a pazada. Dividir. Ensacar. E levar para casa o que havia. Um verdadeiro "purgatório", que durava até Agosto. Alternando com alguns dias para tratar do feijão pequeno, ainda mais trabalhoso, apanhado vagem a vagem. Na hora da divisão, o rendeiro ficava com 2/3 do produto final e o outro terço ficava para todo o rancho dividir entre si.
E, não raro, num lamento se ouvia:
- Quase não deu para as passadas.
Mas ainda haviam arranjado forças para alegrar aqueles trabalhos tão duros, a cantar "Mondadeiras do meu milho/ Mondai o meu milho bem/ Não olheis para o caminho/ Que a merenda já lá vem." Ou "Viva o nosso ranchinho/ Viva e torne a viver/ Um ranchinho como o nosso/ Não o há nem pode haver". Em cada época e para cada trabalho aí estava a "moda" a condizer. Cantigas belas, dolentes, sofridas deixando na alma de quem as cantava e de quem as ouvia uma intensa nostalgia. De quê? De quem? De Justiça?
Retirado o milho, era tempo de o rebanho avançar para aproveitar tudo o que de comestível por lá ficasse. E não era muito.
O Verão era um tempo muito duro. Nos "intervalos" das "sachas", mondas e "aterros"" havia que assistir às hortas, às fruteiras, às vinhas. Colher e secar os figos. Homens e mulheres, grandes e pequenos, numa dobadoira imparável. Dormia-se nos campos, nas choças - raramente havia um casinhoto, quase sempre desconfortável - e ainda havia força para sacar de um pífaro de sabugueiro ou de um realejo comprado no mercado de Penamacor para alegrar a noite, quase sempre sob a luz das estrelas. As noites de luar, em Agosto, eram majestosas! Quantas "estrelas cadentes" avistei. Não se podiam contar, porque... "nascem verrugas"...
Outubro chegou, num instante!
As primeiras chuvas - se tardavam, mesmo antes delas - predispunham as terras para a sementeira dos campos, os melhores, que os mais fracos entravam "de pousio" e eram local de pastagens para os "gados".
De novo, as juntas de bois e os seus condutores voltaram a rasgar aquela terra mãe e madrasta, para as sementeira do centeio. O ano do tudo ou do nada. Outra vez à frente, atrás, adiante, vai e torna, "Ó Morena, mete ao rego", "Ó Cereja, cuidado", "Torna!!!" Uma conversa constante e íntima entre o homem e aqueles animais, mansos e vitais. Quase só eles e a vastidão do campo. E, lá mais adiante, outro conjunto. Os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas dificuldades, a mesma luta. E outro. E outro. Aqui e além os rebanhos. Conheciam-se os donos pelo chocalhar de cada um. Nestes períodos de falta de braços de uma agricultura intensiva e exploradora, os mais crescidotes eram retirados das escolas para ajudar. As sementeiras... um tormento para os professores. E para os gaiatos. E para os pais. A cooperação era uma necessidade. Para que a seara "rebentasse" com alguma simultaneidade, juntavam-se dois, três e até quatro ganhões, no mesmo trabalho, para que as sementes fossem enterradas, no tempo, com a maior proximidade possível. E depois iam para os campos do outro. E do outro...
Pelo meio-dia, apontado pelo Sol a Sul, um breve descanso para os animais comerem e o dono tomar a sua fugaz refeição, muitas vezes de pão com queijo. Um bocado de presunto ou chouriço. Umas azeitonas. Uma pinga.
- Então, António, este ano vamos ter sorte? - perguntava ela, entre a esperança e a angústia.
- Ó Carminda, está tudo a correr pelo melhor. Desta vez ficamos bem!
- Deus te oiça, homem. Não me canso de rezar a Nossa Senhora. E ao Santíssimo Sacramento. Deus tenha pena de nós e dos nossos filhos. Tanto trabalho! Mal posso com as dores no corpo. Do cansaço nem falo já... Que vida desgraçada me arranjaste. Se , ao menos, tivéssemos ido para a África...
- Ó Minda, deixa lá que agora é que vai ser!!!
Já "Os Santos" batiam à porta, quando a coisa começava a acalmar. Do castanho acinzentado dos campos iam surgindo pequenas hastes que os transformavam em verde verde. Serenava a alma camponesa - antes houvera o desassossego das vindimas e, a seguir, já aí estava o da azeitona - à noite, com as castanhas da ceia, assadas ou cozidas, regadas com a frescura dos vinhos novos. "Anda cá provar o meu". "Está aqui uma bela pinga" ou "Quiseste muito e vê no que deu. Vinho só da uva. A água da fonte só p'rós pés". E "parecia que estava forte...". Ou ainda "Tens mais olhos que barriga"...
O Sol e a Chuva iam fazendo o seu papel. A geada também. E o mês de Janeiro era altura de deitar contas à vida. Um bom agricultor começava a perceber o que o ia esperar, lá em Julho. Se a seara cobria bem a terra, se estava "forte" de mais - aqui era uma bênção para os rebanhos entrarem no "marfolho" e comerem do "bem bom" para atrasar o crescimento das searas - era a esperança. Se o "códão" provocado pelo frio intenso fazia mirrar as pequeninas plantas ou o Inverno fora "manhoso" a alma dos camponeses começava a "apertar-se". E o que se passava não era de muitas alegrias. No primeiro mês do ano, a geada quase fizera desaparecer o verde dos prados. Este Janeiro fora bem seco e frio. A fome perturbava os gados e, nas queijeiras, o leite era pouco para o que tanto se esperara: fazer queijos.
Um alívio, a Primavera. Os campos reverdesceram e foi nascendo uma nova alma na Aldeia. Podadas as vinhas, foi um encanto vê-las com os rebentos novos. Aqui e ali surgem as batateiras a despontar e as hortas vão tomando forma para gozar do bom tempo que a estação proporciona. As searas haviam ganhado força e, em Abril, chegara o encanto de vê-las "fugir" em ondas de verde empurradas pelo vento. Um espectáculo deslumbrante, inesquecível.
E a Ascensão chegou, com os primeiros calores, a sério, o verde desaparecer e a dar lugar à linda cor das searas maduras. Mas não, não tinham aquele aspecto que todo o camponês desejava: curvadas para o chão com o peso dos grãos. Antes se apresentam "nem cá, nem lá", "não sei se me inclino, se me tenho em pé". As expectativas eram, pois, reservadas.
- Ó António, não gosto do aspecto do "pão"... As espigas não estão "gradas"...
- Ora, isso é impressão tua. Talvez os nevoeiros de Maio não tenham sido o melhor. Mas ainda engrossam mais.
- Não vejo como. Não vês a cor delas?
- Deixa lá que tudo se há-de ajeitar.
- Deus queira!
Era preciso contratar quem ceifasse. E ainda ter o sentido da oportunidade. Tudo quer o seu tempo. E as searas não são excepção. Para os rendeiros, dificilmente se encontra quem queira trabalhar ao "quinto". Só as casas ricas, que dão trabalho todo o ano. Pobre tem que pagar. Em dinheiro. A lei da oferta e da procura também na Aldeia. Com direito almoço, antes de "pegar", a jantar (pelo meio dia), merenda (4 da tarde) e ceia (8 horas). Uma pobre e jovem mulher, na flor da vida, fazendo comida, carregando comida, estendendo comida para uma dezena de bocas esfomeadas. Uma distância enorme a percorrer com o cesto à cabeça. Todos os dias. Quase duas semanas. Um penoso, um doloroso sofrer. A mais cruel exploração de pobres por pobres, em proveito de uma meia dúzia, que fazia vida de luxo. Uma engrenagem bem montada, obra, com certeza, do Inferno.
Homens ao "corte" era sempre a ceifar, ceifar. Aquelas foices manejadas por mãos quase sempre hábeis, iam deixando atrás montes de "pão" acabadinho de cortar. As "paveias". Depois, em cada entardecer, era atá-las em molhos, formar os "rilheiros" dispersos pelo "restolho", pequenas obras de arte, onde a água não entraria, se houvesse a sorte de chover. Para os milhos, claro. Os rebanhos voltavam a ocupar o lugar em que crescera a seara, à procura de matar a fome.
Depois a "acarreja", que juntava aquelas centenas, talvez milhares de molhos, produto do trabalho de um ano, numa eira, mais perto da Aldeia, com o de outros rendeiros, cada um com sua "meda", deixando um intervalo no meio, onde havia de entrar a "malhadeira". Frequentemente, era debulhado, manualmente, com o "mangual", 3, 4 ou 5 ... malhadores de cada lado, encharcando as pobres roupas com o suor que saltava daqueles corpos magros, a ponto de se conhecer o sal nas camisas, depois de as enxugarem. E ainda arranjavam forças para cantar, com alguma brejeirice: "Coradinha já morreu/ Foi metida no caixão/ Deixaram-lhe o braço de fora/ P'ra pegar no garrafão". E o refrão sempre repetido "Vai, vai, Coradinha, vai, vai!" E os manguais pam! pam! pam! pam! faziam saltar o grão das espigas. O grão do nosso contentamento. O grão do nosso pão. E sempre a ser preciso dar de comer aquela gente heróica. E de beber. E pagar. Nem sempre havia com quê. E o recurso ao usurário... mais uma tragédia.

A malhadeira, pesadíssima, só a custo deslizava, na estrada "macadamizada", puxada por um tractor, a grande novidade deste Verão, para gáudio e espanto da garotada. Uma coisa nunca vista. Mas a maquineta era fraca para puxar o "monstro de ferro". Sempre que havia areia ou terra mole era uma "festa": as rodas derrapavam e a malhadeira nem se mexia. Lá vinham as mansas vacas e a força dos homens para que aquele "bicho" medonho avançasse e trouxesse um ar de "progresso" à vida da nossa Aldeia. Não foi sem enormes dificuldades que a máquina ficou colocada entre as "medas" de centeio. Depois foi preciso colocar-lhe as correias e ligá-la ao tractor por uma delas bem grande, que ainda "abriu" uma ou outra cabeça de alguém mais descuidado. E as histórias que se contavam destas debulhadoras. Que lá, na Terra Fria, uma rapariga solteira caíra naquele enorme alçapão por onde o cereal era introduzido e saíra aos bocados. Que para os lados da Idanha, uma outra se incendiara e ardera com toda a eira... Era mesmo um "animal" de meter respeito. Mil e um conselhos de quem pensava saber mais que os outros. Mas era um "delírio" para a "canalha", que até fugia da Escola para ir espreitar - as férias eram a 15 de Julho - e tinha de ser "encorrida". Não fosse o Diabo tecê-las...
(Vai continuar)

José Maria Fernandes Monteiro, um Amigo!

"O Verão quente de 1975 passara, deixando, em muitos, sequelas e frustrações. Para outros fora tempo de oportunidades e de oportunismos, que perduram até aos dias de hoje, frutos de uma revolução que não o chegou a ser. Na justa partilha dos bens e no aparecimento de novas mentalidades… muito continua por fazer. Começo por estas considerações, porque as ouvi repetidas vezes, da boca de um homem sábio e bom, com um conhecimento da natureza humana fora do vulgar, próprio das pessoas que muito caminharam, observaram e leram sinais nos sinais dos tempos. “O saber de experiência feito”, como nos fala Camões. Afinal, o homem, desprezados os Valores éticos e morais que o distinguem dos outros bichos, não deixa de ser um macaco. E que macaco! O Sr. Fernandes tinha razão. Infelizmente!!! A democracia que nos prometiam era boa para … os “chicos-espertos”…
Estávamos em Setembro de 1977, quando me apresentei na Escola da Azeda
, que escolhera porque se encontrava perto da casa onde eu morava, no bairro de S. Gabriel, em Setúbal. Naquele tempo, ficava fora da cidade e era constituída por dois pavilhões pré-fabricados, dentro de uma vedação, e uma sala bem desconfortável, no exterior da rede, que fora ocupada pela Comissão de Moradores, com apoio da Município, uma vez que o proprietário a abandonara, quando se ausentara para parte incerta, por força dos “ventos de Abril”. Fora destinada a ser escritório de uma firma que se propunha urbanizar os terrenos até ao farol, lá bem no alto. Os prédios haviam de chegar muito mais tarde. Não teriam nada que ver com o projecto de então passado ao esquecimento…
Éramos seis professores – a Odete Varela, a Odete Tavares, a Rita, a Margarida, a Maria Helena e eu próprio – com turmas enormes, mais de 30 alunos. Dado o abandono do meio rural e a “fuga” dos camponeses para as grandes cidades, com a consequente “explosão escolar”, ao lado ia-se erguendo um enorme e moderno edifício escolar, dos famosos "tipo P3", já em adiantado estado de construção. Era uma novidade, com salas abertas, refeitório, gabinetes, ginásio, campo de jogos. O modelo fora importado dos países nórdicos – soubemos depois que já estava por lá "fora de moda" quando, em Portugal, era o “ai Jesus” das construções escolares. Sempre "a reboque", como de costume… – e nós criávamos enormes expectativas para o ocupar, logo que possível. Aquele ano lectivo de 1977-78 decorreu num instante, mas a “certeza” de que, em Setembro próximo estaríamos "lá em cima" começou a deixar-nos enormes dúvidas. Havia sempre uma desculpa: a falta de mobiliário, a demora na entrega pelo construtor,
que impedia a ligação da água e da luz, a falta de estores, o enorme pátio cheio de entulho e ervas… uma série de contratempos. O bairro crescera, as crianças eram mais que muitas, uma escola novinha ali mesmo à mão, era um desafio. E, em Outubro seguinte, estávamos lá em cima, com a ajuda dos pais – os pais mais formidáveis que encontrei em toda a minha vida docente! – que participaram na limpeza do pátio e na do interior do edifício – já que, para todo aquele espaço, tínhamos apenas uma “contínua”, a querida D. Piedade! – que nunca poderia dar a resposta de que uma escola daquela envergadura precisava. E sabemos como os serviços oficiais são lentos para as decisões que servem, realmente, as populações. Enfim! Fechámos os antigos pavilhões e aí fomos, todos contentes, para a "casa nova", ainda longe de estar completa. Começámos sem luz eléctrica, sem estores, sem equipamento de ginásio nem de cozinha, o campo de jogos por asfaltar, bom… só com cadeiras, armários e mesas. Nada mau!
Pode dizer-se que, nessa altura, a escola ficava fora da Cidade. Assim, dada a abundância de espaço, cá fora, deram-nos aquele enorme pátio, quase um hectare, com 3 ou 4 oliveiras, 2 choupos, recém plantados, à entrada, e areia, muita areia. Um terreno assim, à volta de uma escola primária, era novidade. Nem na nossa Cidade nem nos arredores havia algo que se lhe parecesse. Não se podia chamar “terra” àquilo que ficou depois de todo aquele campo haver sido revolteado com as pesadas máquina, antes da implantação do belo edifício. Mais belo do que funcional, como rapidamente nos demos conta, com 3 turmas a funcionar em espaço aberto, cada uma delas a fazer trabalho diferente e em diferentes níveis de escolaridade. Uma confusão!!! Que saudades dos desconfortáveis pavilhões “lá em baixo”…
Bom, a partir de agora vamos deixar os problemas do edifício, que foram muitos, e cingirmo-nos, o mais possível, à “quinta”… Logo nas reuniões de pais, que foram muitas, se começou a pensar no que fazer daquele “enorme deserto”. A minha veia de camponês, “dizia-me” que aquilo ainda havia de ser um jardim. E uma quinta. E um pomar. Um sítio onde valesse a pena viver. E aprender. Afinal, o espaço “dava para tudo”.
Em 1978, eu tinha 35 anos e as forças que só são nossas naquela idade. O senhor Fernandes poderia ser meu pai, nos seus 74 anos. Mas ninguém o diria. A sua casa era a que mais perto ficava da escola. A D. Piedade trabalhava já lá como funcionária. “Uma trabalheira dos diabos”, primeiro, sozinha, com aquele enorme espaço interior e exterior para tratar. Sozinha, não, pois a presença e ajuda do marido, senhor Fernandes, era constante, sempre que as folgas e os intervalos do seu trabalho diário, lá numa das Empresas da zona industrial, o permitiam. Com 74 anos ainda trabalhava, por conta de outrem, todos os dias??? Ora, outros tempos, outras atitudes, outras maneiras de ser… Este é o Homem de quem vou passar a falar. Ambos Beirões. Ele “alto” e eu “baixo”. Naturais de concelhos limítrofes. Ele do Sabugal e eu de Penamacor. Rapidamente se estabeleceu, entre nós, uma corrente de simpatia que iria crescer, crescer até se transformar numa enorme e inapagável Amizade.
Eu tinha uma grande apetência pelas coisas da terra. Nascera nela e nela crescera. A directora, naquele ano lectivo, Prof. Odete Varela, era da Cidade e não tinha grande “queda” para estas coisas do campo. No entanto, “deu-me” “carta branca” para realizar o sonho que começara a crescer na minha cabeça. O Senhor Fernandes despertara-me a ideia, ao pedir licença para ali, naquele vasto espaço, lhe ser ”dado” um canto para fazer um pedaço de horta. Licença que lhe foi concedida e mais que merecida, pelo empenho no trabalho, pela ajuda que dava nas limpezas e arrumações e por ser um guarda dedicado e fiel de tudo aquilo que, de outro modo, ficaria ao abandono. E as Crianças poderiam assistir e participar do saber que o amanho da terra proporciona. O Sr. Fernandes, mesmo que o cansaço fosse muito, mal o seu cão ladrava, ali perto da escola, dando sinal de que algo poderia estar errado “lá em cima”, saltava da cama e “dava a volta”, apenas sossegando quando tinha a certeza de que tudo estaria bem.
Mas retomemos o fio à meada. Nas reuniões de pais e professores assentara-se que aquele espaço teria de mudar de aspecto. Feitos contactos com Alcácer do Sal, foi-nos oferecida “planta” que deu para colocar uma sebe, ao longo da vedação de rede, em toda a volta. Também com ajuda da Câmara Municipal de Setúbal. Estávamos em Janeiro de 1979. Logo a seguir, pedindo aqui e ali, foi a vez do enorme laranjal, com as Crianças a plantarem a sua própria laranjeira, que acompanhariam no seu crescimento e desenvolvimento. Depois, o espalhar árvores de sombra, por todo aquele espaço, foi obra de semanas. O aspecto daquele terreno modificara-se, Logo para a entrada do enorme pátio, ladeando a rampa de acesso, foi desenhado um jardim, com canteiros e um “lago” para serem construídos pelos pais, nos sábados, domingos de manhã e feriados. Outros aproveitavam mesmo as folgas para darem a sua parte. Que pais!!! - repito… Trabalhavam e arranjavam os materiais. Foi um desatino e, nesse memorável ano lectivo, a escola da Azeda ficou diferente, muito diferente, para melhor. Centenas de plantas, todas pequeninas…
Pois é … aqui é que a “porca torce o rabo”. O entusiasmo inicial esfriava, na medida em que as coisas funcionavam, de molde a tranquilizar os pais; aos sábados éramos cada vez menos e o último canteiro foi acabado já só por dois: eu e o José Godinho, um querido e também grande Amigo meu e da Escola, que a morte tão tragicamente nos roubou.
As plantas estavam lá. Pela experiência vivida noutras escolas, sabia que o Verão, com as férias, era fatal para elas. E o deserto aí estaria, de novo, em Setembro seguinte. Apesar da colocação de mais uma contínua, mesmo com a ajuda das Crianças, sabia-se que manobrar aquela enorme mangueira, 50 metros de plástico de uma polegada de diâmetro, tinha de ser obra de “gigantes”. Já se experimentara isso, quando a Primavera chegara, sobretudo nos meses de Maio e Junho… Sem rega, tudo morreria e nunca se passaria da “cepa torta”…
O nosso Amigo já dera mostras de ser a pessoa de quem a Escola precisava. Sempre que podia, aparecia e colaborava, desinteressadamente. Foi o senhor Fernandes que nos valeu, que me valeu. Eu decidira que aquelas plantas não morreriam. E ele “chegou-se à frente”. Com a esposa, a D. Piedade, sempre a não contar os minutos, as horas, os dias, as semanas que deram à Escola. No ano lectivo seguinte, fui eleito director, cargo que desempenhei até ser destacado no ME. O senhor Fernandes teve um papel fundamental no crescimento e embelezamento daquela Escola. Os canteiros encheram-se de roseiras, malmequeres e flores diversas, que estavam por todo o lado. As laranjeiras cresceram e deram frutos. Frutos abundantes e deliciosos. Ali se “fez” uma bela figueira que dava figos como nunca comi antes. Nêsperas bem doces. Até lá provei uma banana “maçã” que já não via, desde África. Bananeira que a “esperteza saloia” de quem queria fazer uma horta, sem nunca ter mexido na terra, arrancara. A ignorância, a presunção e a inveja juntas dão resultados desastrosos. Foi difícil perdoar esta barbaridade de uma colega…
Por todo o lado as árvores de sombra foram dando o que tinham para dar. Mimosas, pinheiros, plátanos, choupos, palmeiras. Já nem me lembro de todos os nomes… E o senhor Fernandes, sempre presente. As minhas poucas e breves ausência não eram notadas, pois nada ali falhava. Os cuidados eram sempre os mesmos, como se a Escola fosse a sua própria casa: regar, mondar, cavar, adubar, podar, estrumar… proteger, defender. Ele era o grande amigo de toda aquela vida vegetal. Hastear e retirar a Bandeira Nacional, nos domingos e feriados. Acender e apagar as luzes, ao anoitecer e de manhã, como se a conta da luz fosse paga do seu próprio bolso. Manter aquele espaço com aspecto agradável. A celebração da Missa, na Escola, um serviço à Comunidade Católica, uma ideia sua, que acolhi com agrado. Sempre o salão polivalente, à 2ª. feira, estava como se nada lá tivesse acontecido, no dia anterior. Uma Comunidade bem responsável, a da Azeda. A vigilância e defesa da Escola sempre activa. Quantos desacatos e prejuízos o senhor Fernandes lá evitou. Um homem decidido. Um cidadão respeitado.
Então os anos passavam e ele não envelhecia? Não, homens como ele são "eternos".
Já falei do amigo da Escola… E do meu Amigo?
Costuma-se dizer que, depois de mortos, todos são bons… Não gostaria que se pensasse isso daquilo que vão ler…
Conhecer este Homem grande foi para mim uma sorte e uma dádiva de Deus. A obra que realizei naquela Escola, a certa altura “ex-libris” da Cidade, visitada por professores e educadores de várias nacionalidade, mesmo do Japão, sem o Senhor Fernandes seria impossível. Foi meu braço direito, meu braço esquerdo. Substituiu-me, quase sempre com vantagens, nos trabalhos exteriores, como homem do campo que se orgulhava de ser, para que aquele belo jardim fosse realidade. Com a mangueira, com a enxada, com o sacho, com o ancinho, aquelas belas plantas foram suas filhas. Sempre que nos encontrávamos, o trato era sereno e afável. Dava gosto conversar com ele. Tinha sempre uma história para contar, uma frase para incentivar, um bom conselho para dar. Fui seu confidente. Foi meu confidente, quase um pai. Às seis e meia, fosse qual fosse o trabalho a fazer, aí ele largava tudo, “A minha Maria está à espera para rezarmos o terço”. Homem de Fé, Pai amoroso, Marido extremoso. Amigo insubstituível.
Perguntar-se-á, com razão: “Então a vossa relação era tão perfeita que estavam sempre de acordo?” No que respeita aos interesses da Escola, posso dizer que sim. Como seriam melhor realizados ou conseguidos, nem sempre. Uma pequena história, para ilustrar. No espaço que existe ao fundo dos canteiros, que tantas vezes nos deliciarem com a beleza e cheiro das suas rosas, pensei, um dia, fazer um pequeno recanto de pinheiros mansos. Mesmo atrás do actual gabinete de recepção. Comprei os pinhões, falei com o senhor Fernandes e a sementeira lá se fez. As leis da natureza cumpriram-se, os pinheiros nasceram, lindos, lindos. Confesso que é uma árvore que me encanta. Cerca de duas dezenas, na altura de verem a luz do sol. O tempo foi passando, um ano … dois anos, eles cada vez maiores. Um dia, reparei que teria desaparecido uma meia dúzia deles. Chamei o Senhor Fernandes e perguntei-lhe o que tinha acontecido. “Estavam muito bastos e é preciso desmatá-los”. “Senhor Fernandes, vemo-nos todos os dias, sou o director da escola e devia ter falado comigo”. “Pensei que não fosse preciso…” “Mas é…” No entanto, para arrelia minha, de vez em quando mais um, dois ou três pinheiros “perdiam-se em combate”. Eu quase desesperava, com este desafio. “Ainda há-de ter pinheiros de sobra” – garantia-me quando já eram menos de uma dezena. Em 1990, cessou a minha relação institucional com a Escola, por destacamento pedagógico na DREL. O meu espanto, um dia, foi grande que dei conta que já só havia dois pinheiros. Hoje só lá está um. Enorme, lindo, com uma larga copa, ocupando todo o espaço onde os irmãos nasceram. Realmente, hoje é o pinheiro justo para o tal espaço. Um dia será “pinheiro de sobra”…
José Maria Fernandes Monteiro, sem si, sem a sua ajuda, sem o seu estímulo jamais me teria sido atribuída a “Medalha de Oiro da cidade de Setúbal" pelo Bem que foi esta Escola para a nossa popuplação. Partilho-a, pois, consigo, numa homenagem mais que merecida, que a Escola da Azeda lhe ficou a dever. Muito injusta foi tal falha.
Obrigado, meu Amigo. Acompanhá-lo, à sua última morada, foi um sofrimento. Ficar sem a sua Amizade, uma perda irreparável. Tenho muitas saudades suas. Sabe que nunca o esquecerei. Felizes os filhos que tal Pai tiveram.
À D. Piedade, muito querida Amiga, já tão velhinha e tão doce, aos filhos e netos que permitiram que participasse, nesta obra, reveladora de um grande Pai que tais filhos teve, aqui fica o meu abraço, com enorme gratidão.
António Serrano, no primeiro dia da Quaresma, Quarta-feira de Cinzas de 2009."

Do livro "Um Justo Pater Familias", de Ezequiel Alves Fernandes, ontem vindo a público.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Manuel André, um Aluno inesquecível!

Manuel,
O Outono de 1968 entrara, havia duas semanas, quando te conheci. Lá, em Penamacor. Lindo, pequenino, olhar vivo, inteligente. Sentaste-te na primeira carteira, em frente à porta, e lá ficaste nos 3 anos que frequentaste, comigo, a escola primária, da 2ª. à 4ª. classe. Quando alguém não sabia, não podia ou não era capaz o Manuel André... resolvia!
Impecável como Aluno. Excepcional como Pessoa. O filho que todos os Pais desejam criar; o aluno que todos os Professores querem ensinar; o amigo c0m que todos os Colegas sonham brincar. Juntamente com a tua irmã, a Natália, éreis, no meu entender, os melhores alunos da nossa Escola. A magnífica educação dos vossos Pais, gente humilde e boa, foi decisiva para que todos fossem teus amigos.
Mesmo a minha partida para S. Tomé, em 1971, só serviu para nos manter unidos. Regularmente, lá recebia notícias tuas, dos teus colegas, dos antigos alunos - por ti soube da morte do Adriano, tão criança, numa brincadeira com um tractor... - da nossa Vila e seu Concelho. Tinhas apenas 11-12 anos, mas já decidiras bem o que querias.
Quando voltei de África, depois do 25 de Abril, continuei a "seguir-te" e tu a "acompanhar-me". Aluno brilhante em qualquer das escolas que foste frequentando, o teu leque de amigos alargava-se sempre e sempre. Felizmente, no teu grande coração, eu ia conservando o meu lugar. Era uma festa em cada reencontro. Com que alegria me contaste que a tua mana, entrara na Faculdade de Medicina e que era também esse o teu desejo. Bem sei que a situação não ia ser fácil para os teus Pais, com tempos tão diferentes dos de hoje, mas não seria obstáculo que o seu Amor por vós não ultrapassasse. Assim foi. Findava a década de 70 e vós, os dois irmãos, os dois excelentes Alunos, as duas pessoas de Bem, éreis Colegas da mesma Faculdade, a mana no 3º ano e tu um destemido caloiro. Depois, tudo começou a "correr sobre rodas".
Mas... há sempre um mas...
Estávamos da Primavera e a Páscoa calhara a 10 de Abril. Na segunda feira, temos a grande festa do nosso Concelho, em honra de Nossa Senhora do Incenso. Digamos que, por acaso, embora não acredite muito neles, durante a Missa campal, a minha Família ficou ao lado da tua: eu, a minha mulher e os meus filhos; tu, a Natália e os vossos Pais. O coração ficou-me apertado quando reparei na tua cara, com os teus vinte e poucos anos. Falámos. Soube que os estudos estavam um tanto prejudicados. Outro aperto no coração. Não era coisa para ti.
- Ó Manelito, estás tão pálido? Que se passa, meu filho?
- Ó professor, tive aqui um problema de dentes e apanhei uma forte anemia. Mas isto já está no bom caminho. Vai ser coisa para agora passar depressa! Fique tranquilo.
Querido Amigo, tu sabias que não era caso para ficar tranquilo. Mas não quiseste dizer-mo. Sempre valente!
Dois meses depois desloquei-me lá, à nossa Beira, e encontrei o teu Pai, carregado de luto, repentinamente envelhecido, à porta do Jardim municipal.
- Então, Senhor André, quem lhe morreu? O seu Pai? A sua Mãe?
- Morreu o nosso Manuel! - ouvi num sussurro doloroso, pungente, tão sofrido.
- Não!!! - gemi , a custo.
Agarrámo-nos um ao outro e chorámos, convulsivamente. Partilhei com o teu Pai um fardo tão pesado que ele carregava, desde o anterior 25 de Abril. Foi-me dito, depois, que tu sabias que não eu te veria mais. A leucemia não te ia poupar. Duas semanas apenas te separaram da Eternidade em que Deus te quis.
Nós é que ficámos mais pobres: os teus Pais, os teus Amigos, os que seriam teus doentes. Que bem que eles haviam de dizer de ti. Ficou a Natália, a curar por ti e por ela. E por outros que se descuidam com os que tanto precisam.
Manuel, tu sabes que, antes de nos deixares, já eras o meu Aluno preferido. Depois, durante muitas dezenas de anos, foram milhares os que conheci. Lindos, encantadores, reguilas, sossegado, desinquietos, trabalhadores, preguiçosos, educados, malandrecos... Uma imensidão.
Mas tu, Manuel André, foste único para mim, como disse a raposa, no Principezinho, cativaste-me para sempre!
Assim, até ao nosso reencontro, fica a saudade, a admiração do teu velho professor,
António A. Serrano
PS. Olha, Manelito, o Zé Morgas, teu companheiro de carteira, continua um "maluco das motas" e a escrever umas coisas, no seu blog. Passo por lá, de vez em quando, mas tu sabes como ele é. Um dia destes vamos almoçar juntos. Também ele sente saudades tuas...