segunda-feira, abril 26, 2010

A merenda - 1

O mês de Julho daquele 1953 decorria bem quente. Como de costume. Em direcção aos “calores da Santa Maria Madalena”, dizia-se em Aldeia.
Os milheirais, animados com as salvadoras “trovoadas de S. Pedro”, de que tanto dependia a vida da nossa gente, para o tudo e para o nada, cobriam vastas courelas e o seu produto havia de ser resgatado, depois de regado também com “sangue, suor e lágrimas” lá mais para depois da Ascensão. Sempre o calendário religioso a marcar a vida dos nossos camponeses. Nem havia outro. “P´lo Santo António”, “p’lo S. Pedro”, “p’lo S. Miguel”, “p´los Santos…” “lá p’ró Santo André”…
Os centeios haviam sido cortados e transportados para as eiras, aguardando a sua vez de passar pela malhadeira, quando não eram debulhados pelos manguais empunhados por gente valente, de “antes quebrar que torcer”, ao som de “Vai… vai… coradinha, vai… vai…”
À volta das eiras, bandos de rolas recolhiam os grãos caídos para a sua própria subsistência e para alimentarem as crias instaladas nos ninhos espalhados pelos sobreirais e pinhais, em volta. O seu alegre “trrutruu” era música para embalar bebés e animar os trabalhos bem pesados, pois o cantar do cuco já se fora, com a subida da temperatura de um Verão como tantos outros: quente e incerto nos resultados.
Os restolhos ocupavam uma grande parte dos campos aráveis da Freguesia e os rebanhos entravam por ali dentro, numa época em que alimentar tantos animais era uma forte “dor de cabeça”. As hortas vicejavam em redor dos poços e ao longo da Ribeira. Os batatais começavam a amarelecer, as flores das batateiras haviam dado lugar a frutos que ninguém comeria e os tubérculos estavam prontos para se arrancarem de debaixo da terra e serem armazenados na frescura das lojas, lá na povoação, ou debaixo da sombra quente das sobreiras ou das oliveiras.
A Escola havia fechado, dias antes, a catorze, com os exames da 4ª. classe a decorrerem, em Penamacor, até ao fim do mês.
Por isso, quase toda a garotada, já em férias, acompanhava os pais para o campo, alguns para tomar conta dos irmãos mais pequenos, outros para darem uma ajuda na “formação” para aquela “triste vida”…
O trabalho era muito e os braços poucos. E o dinheiro para contratar a mão de obra que escasseava, nesta época… era ainda mais escasso.
Estava então decidido que as batatas tinham de ser arrancadas naquela terça-feira. Os dois pastores haviam sido “conversados” para “alinharem” num trabalho mais pesado, sem dúvida. De enxada. Todo o dia. E os garotos é que tentariam levar o rebanho à pastagem, na Tapada da Barroca, a caminho do Salvador, distante quase dois quilómetros do “campo” onde “assentavam arraiais”, desde Abril até aos Santos.
Mal o Sol despontara, lá do lado da Senhora do Cabecinho, sentiu-se que o calor havia de fazer “estragos”, e os dois gaiatos foram levantados da cama pela Mãe, com a voz doce com que sempre os acordava:
- Vamos, filhos, têm de ir. Aproveitar a fresquinha. Vai fazer muito calor…
- Ó Mãe, tenho tanto sono…
- Vá. Depois dormem a sesta… quando o gado estiver a “rodear”. E logo à noite deitam-se mais cedo…
- Ó Mãe…
A muito custo, saltaram da cama, passaram a cara pela água fresca trazida da mina e, ainda pestanejando, com pouca vontade, foram petiscando do almoço geral, sem mimos nem esquisitices.
Num saco de pano, que a Mãe entregou ao mais velho, estava a merenda que havia de dar para alimentar os filhos até ao fim do dia. Simples, como tudo era simples, naquele tempo. Pão amassado lá em casa e cozido no forno público, azeitonas, queijo, um bocado de toucinho. Uma navalha, que o mais velhomanipulava com alguma destreza. Receber a navalha das mãos do Pai era uma prova de maturidade, de confiança. Da primeira autonomia. Poder usar navalha, era das maiores aspirações dos candidatos a rapazes. Depois, conseguir partir fatias de pão, sem encostá-lo ao peito... A água seria bebida, bem fresca, nas límpidas fontes a escorrer das fendas dos enormes blocos de granito, os barrocos.
Ao verem a bolsa com a merenda, os miúdos desataram numa lamúria.
- Mas vamos levar isso tudo? Nós não temos fome. Não somos capazes de comer “tanta coisa”!
- O que sobrar… trazeis…
O Pai começava a ficar impaciente com as demoras. O rebanho devia estar já a caminho. E perto do destino, pelo menos. Com o calor, as ovelhas iam “amarrar” para debaixo das sombras, sem se alimentar. O que não seria bom para a “cobrição” das muitas das fêmeas, algumas já prenhas, com maior êxito nos animais melhor alimentados.
Habitualmente calmo, quase desesperava, quando o rebanho passou o portão de ferro, pintado de preto, da Tapada da Eira, a caminho do seu destino, levantando nuvens de poeira, com o dlim-dlim das campainhas e o dlão-dlão dos chocalhos, em diversos tons. Aqui e além viam-se outras nuvens de pó provocadas por outros rebanhos, todos à procura do mesmo, quase sempre com crianças a tomar conta. Que grande aflição passar um rebanho pelo outro, em caminhos estreitos e conseguir que ambos ficassem completos. Com carneiros de mau feitio, a marrarem-se ferozmente, podia acontecer que um deles morresse. Ou os dois. Chegou a acontecer.
Pelo caminho, no “chão” dos pais, tomado de renda, o João ajudava a mãe na rega da horta. O pai era carpinteiro e ficara a pregar tábuas, na povoação. Logo a seguir, o guiava a junta de burro e vaca que puxava o charrueco com que o Ti Vicente tentava lavrar um recanto, lá no seu campo também arrendado à Casa Grande. Para um melancial mais tardio? Ou a tentar uma leira de feijão pequeno, que talvez ainda desse?
- Mano, vai lá a frente, ali junto ao "chão da Rosa Esteves", e não deixes o gado seguir para a Tapada do Cabeço. Vamos para a da Barroca.
O Avô paterno represara a água da Ribeira e encaminhava-a pelas levadas, pelo que regava “a pé” o milheiral que se estendia nas margens do curso de água que lhe atravessava o seu melhor terreno. Um luxo. No custo e na ecologia, embora ninguém conhecesse esta palavra. Admirado, aos ver o "cortejo", inquiriu destes dois dos seus muitos netos a razão de tamanha responsabilidade.
- Até logo, Avô!
- Tenham juízo… recomendou na sua reconhecida gaguez, depois de satisfeita a sua curiosidade.
Aqui e ali os melros saíam dos silvados ou dos salgueirais e rasgavam o espaço em voos rápidos e esquivos. Ainda o calor não apertara e a passarada fazia pela vida, numa caça constante aos insectos que esvoaçavam. Tentilhões, pintassilgos, felosas, andorinhas, rouxinóis, verdelhões, milheiririnhas, pinta-roxos… eram os grandes aliados dos camponeses numa agricultura sem insecticidas. Aqui e ali levantava-se uma poupa assustada. O canto rouco dos gaios sobressaía naquela sinfonia de Deus. O cadenciado cantar das perdizes dava um sinal bem claro da sua presença. Um bando enorme, que causou susto, no seu repentino e ruidoso levantar voo. No meio de um lameiro, a cegonha tentava a sua sorte na procura de algum ser vivente, sapo, cobra, rã que pudesse fazer sossegar os seus rebentos, lá no alto da torre da igreja, sempre a reclamar por mais e mais comida...
Passada a vinha dos Avós paternos e, logo a seguir, os frondosos castanheiros, carregadinhos de ouriços, onde os pica-paus se esforçavam por abrir buracos nos troncos centenários, batalha sempre vencida no que parecia ser impossível, ouve-se a voz do mais novo:
- Tenho fome. Quero pão...
- Tivesses almoçado como deve ser. A merenda é para logo… - resmunga o mais velho.
- Mas eu tenho fome… - insistiu, ganhado a coragem que só a fome é capaz de dar.
Fosse porque sentisse pena do irmão ou também já com vontade de comer, o mais velho abriu a saca, ripou da navalha, partiu duas fatias de pão, um naco de queijo para cada um e, atrás dos animais, com pó e tudo o mais, a merenda começou a desaparecer. Com que apetite!
Os castanheiros haviam desaparecido nas suas costas dos garotos e os "Malharís" ficavam cada vez mais perto, quando o mais velho perguntou:
- Queres comer mais?
A resposta foi a óbvia, "sim". E saltaram dois nacos de pão, umas azeitonas, um bocado de toucinho.
Logo adiante, foram ultrapassados pelo ti Joãozinho, escarrapachado na albarda da sua burra, as angarelas uma para cada lado, com um simpático “bom-dia, rapazes!”, logo se distanciando. O Ti M'né Ribeiro, vindo de Aldeia do Bispo, sempre emproado no seu cavalo, passou-os também, sem abrir a boca. Em sentido contrário, vinha o ti Zé "Rato”, à frente da sua “junta”, puxando por uma última carrada de molhos de centeio, a caminho da eira. Conhecia-os desde bebés e um “Aí, valentes!”, com um largo sorriso, foi o seu cumprimento.
Cerca de meia hora depois de iniciada a jornada, o rebanho chegou ao destino e começou a espraiar-se por aquele campo com quase tantas pedras como terra e onde os animais esfomeados procuravam tudo o que fosse de comer: ervas, giestas, codeços, espigas restos de centeio, restolho, grama, junça, milhã, baldroegas... Eram tempos sem “luxos”. Mas de carne, leite e queijo com sabores que já se foram.
Os gaiatos recordavam as instruções do Pai:
- Ides os dois. Tu, que és o mais velho, tomas conta do teu irmão. E do gado. Quando entrarem na Tapada, cá ao fundo, sem correrias, devagarinho, começam a “dar a volta”. Os animais “sabem”. É só irem atrás deles. Há-de haver algumas que querem “amarrar” logo na sombra das oliveiras, aquelas à entrada, junto à primeira fonte. Outras “cabeças doidas” vão querer correr tudo, num instante. Não pode ser. Vão “empurrando” pela barroca acima, do lado do ti M’ Ribeiro. Ao lado estão lá as figueiras, o milho e o feijão pequeno dele. E ele não é para brincadeiras, quase ameaçava. Cuidado com as duas cabras “ladronas”, a "malhada" e a "castanha"… Só estão bem a fazer asneiras… Sempre devagarinho, repito, senão os animais não comem. Com o vento do lado do Salvador, e lá tão longe, não podeis ouvir as horas do sino. Tu medes o comprimento da sombra do teu irmão – dirigia-se ao mais velho - que vos vai dizer as horas de o gado “rodear” e do vosso jantar. Quando a sombra tiver um passo de comprimento, é meio-dia, as ovelhas e as cabras já deram metade da volta, estais lá ao cimo, ao pé da segunda fonte e de outro grupo de oliveiras. É aí, à sua sombra, que todos descansam, porque vai estar muito calor. Jantais e até podeis dormir a sesta. Deitados no chão, claro. Fazeis uma cama de fetos e restolho. As formigas não matam ninguém. E as cobras e os lagartos têm medo de vós - garantia sem convencer os miúdos, que lhes tinham muito "respeito". Em cima dos barrocos… não se deitam. Isso é mais na Primavera. Agora vão estar a ferver! Depois, quando o Sol começar a ficar para este lado da Aldeia, a vossa sombra começa a crescer e, com dois passos de tamanho, serão três horas. É altura de tirar os animais da sombra e pô-los, de novo, a pastar. Sem pressa, continuam a volta. O Sol vai passar para o lado da Serra, aguentam, durante algum tempo, as ovelhas e as cabras naquela “baixinha”, onde passa a segunda barroca, do lado dos "Malharís", sabeis, lá onde fica a terceira fonte. Aí, com a terra húmida, há ainda erva verde e elas vão estar calmas. Este ano não temos lá milho nem feijão e não vai “custar nada”. Depois, quando a sombra já tiver cinco passos, são horas de voltar, tocais o gado para o caminho e vindes embora. Eu, daqui, vou espreitando se tudo está bem.

Os gaiatos confiavam tanto no "olhar de águia" do Pai como se ele fosse acompanhá-los. Ouviam-no, de vez em quando, responsabilizar os pastores pelas "más voltas" dadas ao gado, como se lá tivesse estado junto deles... Com o Pai "presente" tudo havia de correr bem. Dali, da suave elevação onde se situava a habitação sazonal da Família, rodeada de sobreiras, a eira ali ao lado, sob a sombra de quatro enormes eucaliptos, ele "via tudo"...
- E os chapéus sempre na cabeça! – acrescentava a Mãe, angustiada com aquela primeira experiência pastoril “independente” dos filhos.
– E quero tudo comido, senão ficais doentes…
O Sol aquecia, enquanto progrediam na pastagem. O instinto guiava os animais e as Crianças quase só tinham de ir atrás do rebanho – houvera alguma barafunda quando se cruzaram com o do Ti Manel Candeias, conduzido pelo Rui, vizinho, primo e amigo um pouco mais velho – acompanhados pelo valente e fiel “Farrusco”, que lhes dava segurança e tomava parte nas brincadeiras. Distraídos, ora saltando num pé, ora no outro, pareciam mais dois pardais em liberdade do que vítimas da “exploração do trabalho infantil”. Desde pequeninos que viviam naquele mundo e os animais, pode dizer-se, eram “parte da família”. Tão descuidada foi a jornada que, quase por distracção, iam metendo a mão na saca e mastigando, mastigando sempre, desde que a mais nova das Crianças "abrira as hostilidades"...
Uma manhã diferente, em que não fora preciso a Mãe exclamar:
- Mas vós não comeis nada?!
- Não temos fome… - era a resposta, quase em simultâneo, pois a brincadeira era mais forte que a vontade de comer, com que respondiam todos os dias.
A “volta” pelo pasto chegara ao meio. O Sol fora subindo, subindo e a sombra cada vez mais pequena. De vez em quando, o mais velho media-a com o seu pequeno passo. Estava quase. Também os animais tosavam o pasto ali à volta da segunda fonte. Tudo decorria como o Pai explicara. Quase não era preciso fazerem nada, pois os animais “sabiam tudo”. Mais um “lameirão”, com “marradas”ainda verdes, ali junto às grandes herdades do Dr. F. Conde, a “cair”, no limite do Salvador, e as oliveiras logo a seguir, com as almejadas sombras destinadas ao “rodeio”, o descanso dos animais. E das Crianças. Que aproveitariam para jantar.
Animais sossegados, água bebida ali nas fontes. Pelo coucho. Às vezes, “de bruços”. Nas palmas das mãos. Ou numa folha de figueira, apanhada ali mesmo ao lado. A “desgraça do plástico” ainda havia de ser inventada.
Sentaram-se em duas pedras, num "arranjo" dos pastores, com outra no meio a servir de mesa.
De repente, um ah! de espanto solta-se da boca dos dois irmãos. Acabavam de se dar conta que a merenda, a “farta merenda” de que haviam reclamado, não estava lá… Pedaço a pedaço fora comida... antes do tempo!
(Para continuar)
Foto via internet, in Portal Alentejano. Com vénia.

domingo, abril 11, 2010

Histórias de Aldeia

Estávamos a findar a década de 50 do século passado. Se havia um momento em que valia a pena andar pelas ruas de Aldeia, escolho o meu preferido, o do entardecer, com o Sol já escondido atrás da Serra. Uma boa parte dos gaiatos brincava nas ruas, como só se pôde brincar, naquela época. E o regresso dos camponeses tinha um não sei quê de repetitivo sempre renovado. Cestos ou baldes e caldeiros à cabeça das mulheres, homens de jaqueta ao ombro ou pelas costas e chapéu na cabeça, alguns conduzindo animais, um ou outro em cima da burra, pernas pendentes ou encaixado entre as angarelas, molhos de erva ou de lenha, aqui e ali os ganhões encaminhando as vacas, tão indispensáveis num mundo que só vira o tractor a puxar a malhadeira. E com ajuda dos mansos animais! Havia quem tivesse uma cabra, com sorte 2 ou 3, um ou outro borrego, que se iam criando, com esforço e cuidado, para lhes aproveitar o leite e serem garantia de duas ou três notas ( de 100!!!) lá na feira, em Penamacor, ou ali, se o comprador passasse para acertar um negócio que evitasse a sempre temida deslocação à Vila.
Não raro, por força do aproveitamento das pastagens, que faltavam, na hora da recolha havia rebanhos a atravessar o povoado, com o tão cativante tinir de chocalhos e campainhas, aqui e além entrecortadas pelas exclamações dos pastores a incentivar os gados, ou pelo latir de cães que não resistiam a uma boa pega, normalmente acalmada com duas pauladas nos lombos.
A Primavera afirmava-se e o caminhar para o Estio era inevitável. Como aquele sofrido viver.
Mas vamos às nossas duas histórias, a primeira ligada à Quaresma. A segunda também tem que ver com a forma como se vivia a Religião, ainda que, de modo um tanto descabido, quase desastrado, não fora a "santa inocência" das personagens intervenientes.
Ser diferente era um bocado complicado, ao tempo. Como pessoa ou até como bicho. O "normal" era que as cabras tivessem chifres e as ovelhas não. Se a Natureza se encarregava de proporcionar o contrário, podia "dar história". Foi assim que, nas 5 ou 6 cabras de um dos "condutores" das Ladainhas, havia de aparecer uma delas sem os tais... chifres. Foi-se esperando, esperando e, para desgosto do seu proprietário, os corninhos não apareciam. Nem haviam de aparecer. Pronto, o Ti F. tinha uma cabra "môtcha". Depois ele, ao chamá-las, lá ia clamando "malhada", "branca", "bargada"... e aquela, pronto, tinha de ser "môtcha". Não estivera ele em Aldeia, onde se apontavam para cima da centena de alcunhas, e aquilo até poderia não ser notado, mas daí a passar ele também a ser "Môtcha", Ti Môtcha e até "Môtcha-Môtcha" foi um passo. E quanto mais ele desesperava... mais o "Môtcha" ia sendo sussurrado, de modo audível, à medida que ele se encaminhava para casa, à procura do descanso ao fim de um um dia bem trabalhoso. As tardes eram sempre mais perigosas, com aquela garotada já fora da escola e ali sempre pronta para arreliar. E quanto mais ele se arreliava, mais o "Môtcha" ressoava por vielas e becos da pacata Aldeia. Um desespero. Um desassossego. Um calvário.
1. Era sexta-feira da Quaresma. A Ladainha estava, na hora habitual, frente à capela do Pereiro. Muita gente, como de costume. Já os "Senhor, tende piedade de nós!" haviam sido cantados e iniciavam-se os "Padre-nossos" pelo bem estar de presentes e ausentes, de vivos e defuntos.
A intenção fora proclamada e, em uníssono, começara-se a rezar "Padre Nosso que estais no céu..." quando, ali da esquina da casa da Ti Joaquina Rosa, uma estreita passagem do largo do "forno de cima" para o local da assembleia, se ouve a voz de um rapazão da nossa terra, conhecido pelas suas "brincadeiras", bradando por cima das vozes que rezavam:
- Môtcha!!!
Nem houve tempo para reacção de mais ninguém. Com igual energia ouve-se:
- Môtcha a p. que te pariu!!!
E "... santificado seja o Vosso Nome venha a nós o Vosso Reino..." Até ao fim!
Como não podia deixar de ser, a Ladainha só acabou na igreja paroquial.
De certeza de que Nosso Senhor perdoou a ambos. Perdoarem-se um ao outro... demorou mais tempo, mas o "Môtcha" foi caindo em desuso.
É que "Deus escreve direito por linhas tortas".
2. Ah! O Latim ou o "latim" também podia originar algumas confusões. Talvez mais do que seria desejável... Por isso, saudou-se o aparecimento das celebrações no vernáculo nacional.
Aquele princípio do mês de Maio até nem correria mal, se não fosse o acontecimento inusitado de os "amigos do alheio", gente de fora, certamente, terem feito desaparecer dois ou três burros, uma notícia do outro mundo para alimentar o "jornal" local e causar grande alarme na Povoação, onde algumas das portas nem sequer tinham chave e ficavam presas, noite e dia, por um pequeno ferrolho, ou até uma "cravelha" de madeira fixa por um prego que lhe servia de eixo.
As Ladainhas de Maio acabavam de ocorrer e haviam sido lançadas as bênçãos aos campos, aos animais e às sementeiras e também a estas invocações o Povo respondia "TÉ ROGAMUS, AUDÍ NÓS!"
No aconchego de uma bela tarde primaveril, uma das abastadas proprietárias da Aldeia, já viúva, como de costume visitava a sua quinta, ali na falda do Chão dos Prados. Em permanência, tinha lá um casal de quinteiros que se iam encarregando de fazer render um dos melhores bocados de terra da Aldeia, com a vantagem de uma nora num poço poderoso, um luxo de ricos, na época, puxada pela energia de uma burra bem tratada, que dava água farta para horta e batatal, milhos e pomar. Uma beleza.
Lá no meio da horta, tratando do "viço" ou "renovo", mondando e sachando, andava a quinteira a fazer pela vida da patroa e a tentar merecer - sem dúvida que o merecia - o seu "pão nosso de cada dia".
À medida que se aproximava da horta, a Senhora ia dando conta de que a empregada cantarolava a "música" das ladainhas de Maio. Entendeu mesmo que, à música, se juntava o "latim". Não lhe parecendo "muito católico", a Senhora pergunta:
- Ó Maria, o que é que estás a cantar?
- Ai, m'nha Senhora, então o que todos cantam agora...
- Então, repete lá....
- SE ROUBAMOS... MAL DE NÓS!!!
- Oh! Maria! Mas SE ROUBAMOS o quê? e MAL DE NÓS porquê?
- Ora, SE ROUBAMOS ... os burros! MAL DE NÓS... porque ficamos sem eles!
Notas:
1. Em Latim, não havia acentos; acentuei para ajudar na pronúncia mais aproximada...
2. As situações e personagens são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com situações vividas, realmente, são pura coincidência...
3. A foto é de Marta Vicente, in página de FaceBook de AJP.
4. Ver mais em
e a
5. A nossa Banda em

quarta-feira, abril 07, 2010

Domingo de Páscoa

As alegrias das alvíssaras deram o mote para a grande festa da Ressurreição.
Repicaram, por três vezes, os sinos para a Missa de Domingo de Páscoa. Não era uma Missa qualquer, mas a da festa do triunfo da Vida sobre a Morte.
Liturgicamente, era a única Missa do ano precedida de procissão, a celebração da Ressurreição pelas ruas da nossa Aldeia, com o Santíssimo Sacramento.
A Confraria estava quase em peso, os Irmãos, às dezenas, com as suas opas encarnadas, uns para pegar ao pálio, nas lanternas, à bandeira-guião; a maior parte, com a vela acesa na mão, para alumiar a Jesus Sacramentado. Para o Pároco, uma dor de cabeça, procissões e missas em ambas as aldeias, visita pascal numa delas. Mal havia de ter tempo para almoçar. Mas também não o deixariam passar fome.
A Missa fora anunciada para as 10 horas e, desde as nove, por todas as ruas, a população dirigia-se à igreja paroquial. Com ou sem a participação da Banda, o cortejo havia de sair, logo que a meia batesse. Tinham saltado das arcas e malas os fatos dos "dias santos". Xailes e lenços a estrear. Botas - e sapato, poucos - fatos, calças, camisas e chapéus tinham este dia como privilegiado.
Formava-se o cortejo, talvez o mais respeitoso do ano. Semelhante ao do 3º. Domingo de Outubro, a festa na Confraria do Santíssimo Sacramento.
Percurso habitual. Passagem pela Rua Nova, frente à loja do Senhor Mendonça, "forno de baixo", subir ao Largo do Pereiro. Um momento de adoração na capela aqui existente, passagem pelo "forno de cima" e largo do Poço Novo, com término na igreja matriz, que ficava a abarrotar de gente de todas as idades. A igreja lindíssima, montes de flores, alfaias novas.
Durante a procissão, o Povo - e a Banda, se presente - respondiam, em uníssono, como só a nossa gente sabe fazer, às invocações do celebrante, ainda em Latim, de compreensão acessível:
- Regina Coeli, laetare!
-Alleluia! Alleluia! Alleluia! Alleluia!
- Quia quem meruisti portare!
- Alleluia! Alleluia! Alleluia! Alleluia!
- Resurrexit, sicut dixit!
- Alleluia! Alleluia! Alleluia! Alleluia!
- Gaude et laetare, Virgo Maria!
- Alleluia! Alleluia! Alleluia! Alleluia!
- Ora pro nobis Deum!
- Alleluia! Alleluia! Alleluia! Alleluia!
- Quia surexit Dominus, vere!
- Alleluia! Alleluia! Alleluia! Alleluia!
Todos nós conhecemos os acordes que acompanham tão significativos louvores. Há 50 anos, a música ficava como que a pairar pelas ruas, largos e becos da Aldeia, até que a campainha, anunciasse, por toda a tarde, a passagem do Senhor e do cortejo pascal, levando as "boas festas" a cada casa de cada família.
- Boas festas, aleluia, aleluia! Jesus ressuscitou!
- Boas festas também p´ra si, Senhor Prior. Aleluia!
Havia sempre uma amêndoa, um esquecido, uma jeropiguinha, ou apenas um copo de vinho com um bolo de leite... Também algumas moedas para as despesas da igreja e "sustentação do clero". A cesta dos ovos, que se enchia mais de uma vez, fazia parte cortejo e do seu transporte todos se queriam esquivar. Quem fosse "demasiado" glutão ou descuidado com a "pinga", era certo e sabido que, antes de o sol se pôr, teria reunido "condições para desistir"... Em cada casa, a conversa era curta, pois a jornada havia de ser terminada, antes que escurecesse.l
Acontecia uma tarde em ebulição, pois os parentes e amigos queriam estar uns em casa dos outros para receber o Senhor e beijar o Crucifixo. E para as guloseimas. Ruas e escadarias alindadas com alecrim e rosmaninho, deixando, no ar, um odor tão próprio da Primavera. E da Festa.
O cortejo terminava sempre na Casa Grande. O Pároco e todo os acompanhantes, suspirando de alívio. Podiam comer e beber o que ainda fosse possível. E já não era muito!
Notas:
1. Fiz parte destas celebrações como adolescente e na Juventude, até já profissionalizado . Recordo, com saudade e alegria, estas vivências, das mais belas da minha vida.
2. As fotos, de autor desconhecido, foram retiradas da página Face-Book de A.J.P.