domingo, setembro 19, 2010

Baile na Aldeia 6

O arrebol anunciava a chegada do astro rei por detrás da Serra das Pedriças, quando o morteiro estoirou, “puuum”, lançando a confusão na canzoada que se entregava ao seu doce dormitar, depois de uma noite bem agitada, desatando a fugir em todas as direcções, num descoroçoado “cain-cain” como que adivinhando “o fim do mundo”. As pessoas, essas sabiam o significado real: saltarem da cama, o que muitos haviam já feito, e reunirem-se, no Largo do Rato, para ouvirem a Banda executar o toque de alvorada e assistir à primeira largada de foguetes do dia, anunciando, “urbi et orbi”, que a festa tinha chegado! Que, neste longínquo ano, num fim de semana, Prior novo, bonito, simpático, divertido, popular, o saudoso Padre José Pedro, havia de ser diferente. Para melhor. Não na devoção a Nossa Senhora da Graça, que essa era forte e consequente, mas na alegria popular e na maneira de a levar a cabo. Depois do toque de alvorada, a largada do foguetório foi motivo de alegria geral. Ou quase!
Seguiu-se a primeira "arruada" da Banda e, mal o sol nascia, já ninguém estava na cama.
Dos armários e baús sairam as roupas mais bonitas e garridas. Foi mesmo dia de estreia de coisas novas. Nas cozinhas, as Mães afadigavam-se para que a refeição alegrasse toda a gente. As ruas animavam-se como se se estivesse na grande Cidade.
Pelo meio-dia, a Missa festiva, concelebrada, o jovem Pároco, os padres nascidos em de Aldeia eram 3 de 4. (Sobrevive, hoje, o senhor Padre Agostinho, quase cem anos, comovente vê-lo no altar!). Vieram os convidados das Paróquias vizinhas. A igreja a rebentar pelas costuras, sem bancadas, mal se conseguindo respirar, suor a escorrer da cara de quase todos. Não raro acontecia um “chilique” aqui e ali, um copo de água "fria" para reanimar. Mulheres no corpo da igreja e homens na capela-mor ou no coro, lá no alto. Fiéis houve que não couberam no templo e, portas abertas, acompanharam a celebração, devotamente, cá de fora, com respeito e atenção. Ao sermão, lá do alto púlpito, o padre César Fatela, voz poderosa, verbo eloquente, proclamou as excelsas virtudes da Mãe de Jesus, nossa Mãe adoptiva e nosso Exemplo. Fez chorar mulheres. E pensar homens.
Repicavam os sinos tocados, com destreza e arte, pelas mãos do sacristão ou de uns tantos ajudantes voluntários e a procissão, quase interminável, percorreu as ruas do Povoado, cânticos melodiosos, nos intervalos do desempenho da Banda. Os “guiões” desfraldados, de cores vivas, eram empunhados e dominados pelos mais valentes dos nossos rapazes, pulsos firmes e braços fortes, membros de corpos esguios, musculados pelo trabalho de cada dia, entroncados, barrigas ausentes. Não havia jovens gordos...
Homens à frente, em duas filas, andores com as imagens de S. Miguel, de S. Sebastião, de Nossa Senhora da Graça, esta sempre transportada em ombros de rapazes solteiros, opas brancas, seguidos dos sacerdotes, sob o pálio, varas seguras por homens, opas vermelhas sobre os "fatos de ver a Deus". O Ti Iná, opa e bordão vermelhos, encarregava-se da boa ordem no cortejo. A única "autoridade" presente!
Na metade posterior do cortejo seguiam as mulheres, as jovens e as meninas, de lenço na cabeça, o xaile pelos ombros das casadas, vela acesa numa das mãos e o terço, devotamente, na outra.
De vez em quando, o estralejar de um foguete ou o ribombar de um morteiro, anunciava a progressão da caminhada pelas ruas engalanadas com colchas e colgaduras nas janelas e varandas, até o cortejo reentrar na igreja paroquial. Uma mancheia de foguetes, subiu e estoirou, lá no alto, e anunciou o recolher da procissão. Andores arrumados, uma bênção final. O consolo espiritual fora conseguido.
Chegou ao tempo de tratar dos corpos. Este jantar de festa quis-se melhorado. Um dia não eram dias. E Nossa Senhora da Graça, merecendo a veneração durante todo o ano, havia de ser festejada também em casa de cada um. Para sacrifício e privação sobravam muitas ocasiões.
Na altura, raramente os homens metiam o nariz na cozinha. Trabalho de mulheres, com todas as consequências, para o elogio de um banquete bem conseguido e para o desagrado de um pouco de sal a mais ou de um esturro que fizera tanto esforço saber a queimado. Todos se sentaram à mesa e os petiscos cuidadosamente preparados ali estavam. Ninguém se fez rogado. Cada um por si. A Mãe por todos! Especialmente atenta aos mais velhos e às Crianças! E a que nada faltasse.
Davam-se as últimas dentadas num jantar bem diferente do habitual, servido muito depois do meio-dia, e já os sinos repicavam, os foguetes subiam e rebentavam e a Banda – como é que raio os músicos comeram tão depressa?! – desfilava, rua da Torre acima, na direcção da igreja, para que a festa continuasse lá nas imediações.
A tarde pareceria pequena nesse sábado ameno de fim de Verão, com festa "de encher o olho". Chegara gente como nunca. A quermesse, sob os ramos de uma das árvore da "horta de cima", a deitar para a rua, ali na beira da estrada. A “barraca de chá”, à sombra do lagar da Casa Grande e com a orientação das Senhoras havia de dar que falar. A caminho do "ramo" de oferendas, vinha de quase tudo o que de melhor o suor da Aldeia havia produzido: frutas, bolos, travessas de arroz-doce, enchidos, queijos, vinho, azeitonas, nozes e amêndoas, jeropiga, figos secos, feijão, centeio, milho… Gente de enorme e generoso coração. O leiloeiro não se cansava de apregoar “Cinco escudos por este "pão leve"… seis escudos... dez escudos… quem dá mais?!” E as oferendas iam sendo "arrematadas" com maior ou menor "despique"... Nos intervalos, a Banda tocava. E então, a maior parte daquela nossa gentes, ocupava o alcatrão da estrada e dançava, dançava. Sem dúvida o maior baile do ano. A Banda. O Povo. Em sintonia perfeita.
Atraídos pelos foguetes e pela música, das aldeias vizinhas e da Vila apareciam os visitantes. Muitos. Engravatadinhos alguns. Os "carros de praça" lá de Penamacor não paravam. Trazendo e levando. A "carreira" das quatro chegara carregadinha. Também soldados. Soldados?! Sim, da 1ª. Companhia Disciplinar. Só muitos anos depois tive ocasião de saber quem eram os “corrécios” que, domingo a domingo ou noutros dias festivos, passeavam nas nossas ruas, tentando dançar com as nossas raparigas, sem nunca o conseguirem. Com alguns muito poucos desacatos, que a nossa rapaziada era pacífica, por natureza…
E o leilão sempre a "despique" - "50 escudos uma... 50 escudos duas... ninguém dá mais... três... arrematado!" - toda a gente sabia da qualidade e genuidades do que era ali entregue e posto à venda, mas raramente se chegava a uma nota de 50. O salário de um trabalhador, "de sol a sol"... era de dez escudos!
Na “barraca de chá”, as nossas Meninas serviam lanches bem apetitosos a quem tivesse dinheiro para ali se sentar. Que não a enorme parte dos aldeões, quase só os visitantes. Na quermesse, as prendas iam sendo rifadas. A Banda tocava e o Povo dançava. Dançava esquecido de toda a semana, de todo um Verão, de todo um ano de trabalho intenso. Coisas da festa! Via-se alegria nos olhos, pressentia-se a agitação nos corpos.
A camioneta da tarde levara para a Vila muitos dos que de lá tinham vindo. O tempo voara e era forçoso regressar. Com alguma pena, pois tinha fama esta nossa festa. E a daquele ano saíra bem conseguida.
O Sol escondera-se atrás da “Serra” e o crepúsculo começou a cobrir toda a Aldeia. Aconteceu uma última marcha tocada pela Banda, um revoltear
de pares que desejaram que o dia não terminasse. Ou mesmo que continuasse noutro sítio.
Uma derradeira “descarga de fogo” anunciou que a festa acabara. A Banda, estrada abaixo, marchou, tocando ainda um “ordinário”, a caminho da sua Sede, mesmo em frente da Escola, deixando no ouvido de cada um o som dos acordes de um encanto que se manteve por décadas e décadas. Mais de um século.
Depois... o silêncio foi caindo, restou o trabalho dos que deviam arrumar, conferir, fazer contas. A Aldeia ceou e sossegou. Por fim, adormeceu, com a certeza de que cada um dos que descansavam poderia deixar a chave na porta, ou até mesmo descansar, em sossego, com ela escancarada.
A manhã seguinte seria o domingo. Depois  a vida retomaria o seu ritmo: trabalhar, trabalhar... mesmo para muitos dos que tinham chegado para “férias”. As hortas, as vindimas, a secagem dos figos... O tempo urgia e a necessidade era grande.
Para BAILE já chega! Voltaremos com os "medos da Aldeia"!

quarta-feira, setembro 08, 2010

Baile na Aldeia - 5

8 de Setembro de 2010. Ali estive eu, no adro da igreja, como há quase 60 anos atrás. A casa da senhora Hermínia desapareceu, o adro agora todo calcetado alargou, a fachada da igreja vê-se, assim, da estrada, por detrás da bem antiga fonte, mesmo ali à beira. Mas foi esta a mudança menor, ocorrida nestas dezenas de anos. Avós… estavam lá e eu fui um deles. Pais… sim, a minha Filha e os filhos dos meus amigos. Netos… os nossos e bem poucos. Não há Crianças na Aldeia. Não há cheiros. Nem sons. Nem cores. Nem sabores… Temos a Banda, mas tão diferente. Para melhor, confesso. Bem afinada, muita gente nova, de quase todo o Concelho, uma boa parte dos executantes são Meninas. E o baile? Nem um par se disponibilizou. A saudade, essa sim, abundou e sentiu-se em todos os rostos, lá bem no fundo dos olhos ou em gestos exuberantes, no reencontrar, ali, de amigos que não via há mais de 40 anos… E outros a quem falara no ano passado… E também a enorme saudade dos Avós e Pais que o eram, há muitos anos atrás!
Estava-se em meados da década de cinquenta, ano de 1956, exactamente. Nas margens da Ribeira e em volta dos poços e represas alimentadas das muitas nascentes então a dar vida a uma terra que tanto agradecia o trabalho e a água, as hortas vicejavam, aqui e ali enriquecidas pelos vultos das melancias, dos melões e das sempre úteis abóboras. Uma festa para os olhos e para o sabores. Debaixo das sobreiras e oliveiras montes e montes de canas de milho, cortadas aqui e ali, eram descamisadas e as maçarocas doiravam as amplas eiras, na esperança de uma compensação para tanta canseira. Os bandos das meigas rolas, já quase em véspera de abalada para novas terras, ainda por ali arrulhavam, na sombra, batendo as asas, em desespero, quando um ou outro caçador disparava aqui ou ali, à procura de um petisco. Com a partida das andorinhas, os numerosos "taralhões" e as "rabitas" estavam a chegar, invadindo os campos com a sua presença e enchendo os ares com o seu típico "chilreio", para serem vítimas fáceis das armadilhas dos predadores de duas pernas... Dezenas e dezenas de figueiras davam frutos para pessoas e animais e eram também estendidos sobre palha nova centeia, ou nas varandas e tabuleiros de madeira para secarem e fazerem alegrias lá para os Santos. E mais p’ra diante. Nas muitas vinhas de então as uvas eram apanhadas e nos “pios” de granito, homens de calças arregaçadase e pés descalços para as esmagar, subindo no ar o cheiro acre-doce do mosto a fermentar, prenunciando alegrias e também disparates lá pelos dias de S. Martinho. As fogueiras, por debaixo dos alambiques de cobre, faziam soltar os vapores de álcool, a dar aguardente que faria festa de poucos e tristeza de muitos. Castanheiros, de amplas copas, dobravam os ramos ao peso dos ouriços, fazendo adivinhar um Outono farto de magustos e um Inverno de preocupações aligeiradas. A castanha ainda matava a fome a muita gente!
As aulas, nesse tempo, começavam em Outubro e o mês de Setembro era o mais escolhido para “gozar férias” na Aldeia. Desde o primeiro dia deste mês – outros já na 2ª. quinzena da Agosto - que os “papafigos” estavam chegando, de comboio, a Castelo Branco, nas camionetas do “Martins Évora” até ao destino final. Gente nova, quase sempre com filhos crianças a juntarem-se às muitas Crianças que cá viviam durante todo o ano. Era bem animada a chegada das camionetas da carreira, pelas 8 e pelas 19 horas de cada dia, sem grandes preocupações de pontualidade. Quase a transbordar, com as bagagens mais simples ou esquisitas a ocupar espaço, ao sol e à chu
va, lá por cima do tejadilho daquele vagaroso e precioso transporte de passageiros.
Os “papafigos” agora de regresso temporário, haviam rumado à Cidade, na busca de uma vida mais "limpa", “à sombra”: ofícios de guarda, polícia, carteiro, bombeiro, militar do exército ou até da marinha, raramente para os aviões ainda escassos. As esposas ocupavam-se, habitualmente, das lidas de casa e dos filhos, com jeito para a costura, se possível a ganhar algum dinheiro, fazendo os mesmos trabalhos na casa de outros que os pudessem pagar. Portanto, aquele período era o mais escolhido para “descansar”, havia a fartura das hortas, das vinhas e dos pomares, e também para ajudarem os pais e familiares nos trabalhos mais agradáveis do ano, os das colheitas. Outro motivo bem forte era que, no dia 8, se reunia a grande família de Aldeia para a celebração da festividade de Nossa Senhora da Graça. Feriado e “Dia Santo” paroquial, a passar de geração em geração. Até hoje, sem se “render” à “mais valia” que a festa no fim de semana poderia trazer com mais uns trocos!
De véspera, os trabalhos no campo eram aliviados. Os fornos de “baixo” e de “cima” tinham um dia de eleição: alguns tabuleiros de “pão trigo” e bolos, muitos bolos, para irem até ao “ramo” de oferendas no dia da festa ou para serem consumidos, em casa, pelas famílias: “pães leves”, esquecidos, borrachões, bolos de leite, biscoitos… O belo galo que, durante o Verão, como se adivinhasse, tanto fizera, com “có-có-ró-có-có”s de encantar, para levar as galinhas a garantir a continuidade da espécie, tivera o destino para que nascera, a panela ou
o tacho, mesmo o forno. Na sua ausência, uma galinha que se fora esquecendo do dever de pôr ovos ocuparia o lugar para fornecer a uma canja bem saborosa e um sempre desejado “fricassé”. Dos “talhos" do Ti Domingos e do Ti “Sacoto” ou dos do Ti Xico Miguel ou Ti Zé Rolo, estes em Aldeia do Bispo, haviam de sair pedaços de chibo, de cabra, de ovelha “badana” ou de carneiro para serem utilizados em aprimorados cozinhados, juntando-se o seu odor aos cheiros dos mostos, do pão e dos bolos acabadinhos de sair do forno, das aguardentes, das flores que enfeitavam as hortas e coloriam casas e altares, das eiras, das cortiças e até das terras molhadas com as primeiras chuvas, a fazer tapar, em momentos de aflição, os figos que secavam sobre “passadeiras” de palha e também as vagens e maçarocas estendidas nas eiras. E ainda aquele inesquecível perfume, de manhã cedo, das ervas secas molhadas pelas primeiras maresias de um final de Verão que se aproximava, a passos largos.
Na véspera, pelo escurecer, uma descarga de foguetes prenunciava para a Comunidade em festa e para as terras da vizinhança que, desde há muito, 8 de Setembro tinha de s
er diferente, em Aldeia. Também o som dos morteiros e o cheiro da pólvora aconteciam. Podia dizer-se que, depois da chegada da camioneta da tarde, trazendo os retardatários, a Aldeia estava cheia como um ovo. Nem se sabe como se acomodava tanta gente!
Era uma noite bem diferente, bem festiva, cumprimentos e abraços, conversas de pé ou sentados nos “baturéis”, nas escadas e nos balcões de granito, nas soleiras das portas, noite fresca. Só os pastores, que pelo entardecer, haviam recolhido os seus rebanhos, tilintando chocalhos e campainhas por aqui e por ali, não haviam de ter lugar, em plenitude, na alegria geral. Que era de quase todos. Raramente deles.
Por fim, a escuridão de uma noite, na Aldeia, em que a energia eléctrica era desconhecida, tomou conta de tudo e de todos e aquela gente adormeceu.
O autor relata acontecimentos vividos por si mesmo, a que junta a liberdade de os recontar a seu gosto.
Para hoje, com a devida vénia, um excelente trabalho de Rui Canas Gaspar, no 5º. Festival de Bandas de Setúbal, a Cidade que muito amo e me acolheu por mais de 34 anos de trabalho docente, distinguido com a "Medalha de Ouro da Cidade", em 2000.
Lá volto, sempre que posso, com alegria e enorme prazer.
Oferta para os meus queridos "Cucos". Vós mereceis!
A nossa Banda não está aqui presente e passará, no episódio que se seguir...

sábado, setembro 04, 2010

Medos da Aldeia... 1

A giesta
O mês de Maio, naquele final da década de 40, do século passado, não dava folga aos nossos camponeses: as regas, as mondas, as sachas, as caldas, a guarda do rebanhos, a aterra dos pés de milho...
Saía-se cedo de casa e só depois do sol posto se começava a pensar em regressar à Povoação. Dormir nas choças havia de ser dali a poucas semanas. Para ganhar tempo e "matar" ainda mais aqueles corpos sempre prontos para deitar mais uma gota de suor e para fazer mais um esforço. Era, pois, um mês decisivo na existência das nossas Gentes.
Aquele dia fora igual a tantos outros e era preciso regressar. O jovem casal ia reparando nas Crianças, dois meninos, de pouca idade, enquanto as vacas, mansamente, iam pastando na farta relva à volta da represa da Tapada do Cabeço. Ali trabalhavam, de renda, desde o seu casamento, fizera meia dúzia de anos.
- Carminda, vai andando com os Garotos, que eu já carrego os molhos de erva, ponho as vacas a caminho e apanho-te, num instante. Vai ficar noite, não tarda...
Cesto a transbordar à cabeça, cesta de verga enfiada no braço, dá a mão ao mais pequeno e diz para o mais velhinho:
- Vamos, Filhos, está a fazer-se tarde. Vá! Vamos depressa.
Até casa poderiam gastar o que restava de luz dos longos entardeceres da Primavera. Fora mesmo um dia e tantos!
Mãe e filhos meteram-se a andar, passaram, com dificuldade, pelas "poldras" da Ribeira, onde a água ainda não faltara, saudando os já poucos que, ainda nas hortas e vinhas adjacentes ao caminho, davam também por findas as tarefas dessa jornada. Na suave encosta para a Aldeia, ali estava o "Bacelo", grande vinha, castanheiros frondosos, depois o pinhal, as sobreiras e as oliveiras pontilhando os campos ou na borda do caminho assoreado aqui e ravinado além pelas chuvas da longa invernia já distante. Não havia sombra desta ou daquela árvore, mas um crepúsculo geral que ia envolvendo toda a paisagem.
Ali, na curva da vinha do Ti Félix, começava a última ladeira, antes de se chegar a um nível em que de lá se avistaria a Aldeia.
- Ó Mãe, está ali um homem agachado... - murmurou o mais crescido dos miúdos.
A Mãe, jovem bela e desempenada, nos seus 27 anos, era um pouco assustadiça e também notara, mal chegara ao fundo do pequeno declive, que algo não estava bem, lá no cimo.
- Então, Filho, não vejo nada... - retrucou, aparentando a valentia que não sentia.
- Sim, Mãe, está ali um homem agachado à nossa espera! - teimou o pequeno, voz ténue, pernas a tremer, agarrando-se à saia materna.
O andar dos três tornou-se mais vagaroso, quase a marcar passo. Sabiam que atrás vinha o homem da casa e o "problema" poderia resolver-se "de igual para igual".
Mas, nestas coisas de medos, os minutos tornam-se eternidades e as dúvidas pequenas em certeza enormes.
Não havia mais hesitações! Estava ali um homem agachado, à espera de Mãe e filhos...
Com um nó na garganta, conseguiu clamar para o marido, que devia estar já ali mesmo atrás e não havia maneira de aparecer:
- António, ó António!!!
Nem resposta. Fosse pelo bater dos canelos dos animais nas pedras e areia do caminho, fosse porque a distância se tornara maior do que se pensara, o Pai das Crianças é que não deu resposta.
- António, ó António, onde é que tu estás, homem?!- gritou, de novo, quase em desespero, agora com a marcha interrompida.
- Que ééé, Mulheeer?! Então o que é que se passa?! Eu estou bem e já passei aqui o portão do senhor Amaral... - exclamou ele, voz forte, sabendo quanto ela era "medricas"
A voz do Pai e marido voltou a encorajar o trio, que retomou o caminhar em direcção ao Lar. Devagarinho, não fosse o "Inimigo tecê-las"...
Já sentiam o andar dos animais e a presença tranquilizadora do "chefe de família" nas suas costas, quando atingiram o cimo da rampa.
Cá estava "ele", o "autor" de tamanho susto, o "homem agachado" ali mesmo, à saída da vinha do Ti Félix, uma GIESTA "negra" que quase todos os dias viam duas vezes. Pelo menos...
- Olha... é a giesta!!!- murmuraram quase em simultâneo.
Um suspiro de alívio, um sorriso amarelo e uma gargalhada nervosa.
Depois... o retomar do caminhar apressado, em direcção à ceia parca. E à caminha.
Em memória da voz de minha Mãe.