domingo, fevereiro 20, 2011

Medos na Aldeia 8

A Guerra do Ultramar 2
"Para Angola e em força", a frase proferida por Oliveira Salazar a 13 de Março de 1961, para responder aos ataques feitos sobre os colonos brancos e boa parte da população negra da maior das então Províncias Ultramarinas.
Um esforço desmesurado vai ser imposto ao País, em meios materiais e sobretudo, humanos.
Grande parte dos nossos Jovens, Adolescentes e até Crianças, naquele célebre dia daquela célebre frase, nem de longe nem de perto pôde alcançar de que maneira o seu futuro imediato e a curto e médio prazo havia de ser desenhado, sem que lhes fosse pedida qualquer opinião. Salazar mandava, o Povo não discutia, como sempre acontece nas ditaduras.
Desde Fevereiro de 1961 havia tropas mobilizadas para desembarcarem semanas depois no porto de Luanda. As condições para as receber eram de todo impróprias: nem instalações, nem armamento, nem fardamento, nem equipamento, nem preparação e treino militar. Nem motivação política ou patriótica. A grande maioria não sabia por que ia combater nem por que ia matar ou morrer. De repente, jovens lares acabavam de ser desfeitos, esposas sem marido, crianças sem pai, noivas sem noivo... parafraseando Fernando Pessoa.
Com o intensificar da guerra em Angola e a abertura das hostilidades na Guiné e em Moçambique foi imposta à Nação uma dolorosa sangria, com centenas e centenas de companhias e batalhões de combate,integrando o melhor de Portugal, a sua gente moça e generosa.
Depois de uma pequena esperança de que a guerra em Angola não passasse de pequenas escaramuças se ter esvaído, com as mobilizações para a Guiné e Moçambique, nós, os jovens e as nossas Famílias começámos a dar-nos conta de que alguém nos metera numa coisa que nenhum desejava, a quase certeza de uma mobilização geral para irmos matar ou morrer, nalguns casos as duas coisas, numa idade em que só queríamos viver,  divertir-nos, ser felizes e despreocupados. E a lutar por ideais que dificilmente percebíamos, pois ainda houve alguma esperança de a guerra fosse apenas um meio de pressão para criar condições políticas para as independência e não um tormento sem fim que ia deixando de rastos o melhor de nós, os nossos jovens.
Falo por mim e creio interpretar o sentir da grande maioria dos que foram jovens comigo: não queríamos guerra, não queríamos ir para a guerra, não queríamos matar "terroristas" nem, queríamos ser mortos por esses mesmos "terroristas" .
Com o aproximar dos 20 anos, as inspecções militares em que toda a GENTE (menos cegos, surdos e coxos) era apurada para todo o serviço militar, quer nos interessados quer nas famílias o medo da convocação para o serviço militar obrigatório era mais que evidente. Apesar de haver tropas especialistas em que apenas eram admitidos "voluntários" - comandos, rangers, paraquedistas e fuzileiros navais - era bem evidente que não queríamos a guerra e, muito menos, participar nela. Depois, findas as comissões de cerca de 24 meses, começaram a chegar menos do que foram, alguns metidos em caixões, outros com deficiência físicas e psíquicas notórias - mesmo os que aparentavam estar bem vinham marcado com sequelas que podem ter durado até aos dias de hoje. Na visão e na compreensão de tal desgraça tenho por mim que a maioria da nossa juventude temia a guerra e só participava porque era obrigada.
A certa altura, quando os mais esclarecidos começam a sentir que nada daquilo fazia sentido, sem intervenção política e negociações de paz, dá-se o princípio da deserção que, no entanto, nunca chegou a ter números verdadeiramente significativos. A grande maioria optava, contra vontade, por embarcar, sofrer, lutar e, com sorte, voltar com honra. Assim pensávamos. assim agíamos, com medo, claro, com medo corajoso, se é que faz algum sentido. Dezenas de nomes tornam-se rotineiros: Cais da Rocha Conde de Óbidos, Cais de Alcântara, navios Niassa, Índia, Infante D. Henrique, Vera Cruz, Príncipe Perfeito, Moçambique... marginal de Luanda, Grafanil, Nanbuanbongo, Pedra Preta, Negage, Marginal de Lourenço Marques, Tete, Niassa, Rovuma, Wiryamu, Dili, Bijagós, Ilhéu das Rolas... Walters, G3, Uzi's, morteiros, bazookas, napalm, lança-chamas, canhões com e sem recuo, morteiros de 60, 81..., ração de combate, "golpe de mão", catanas, canhangulos, minas... E também massacre, morte, invalidez pensões de sangue... FNLA, FRELIMO, UNITA, UPA, PAIGC... com gente muitas vezes interessada só no seu próprio interesse. Havia de ver-se!!!
Choros e gritos de dor e sofrimento nas partidas. Choros e gritos de alegria, não para todos, nas horas dos regressos e dos abraços. Para o bem - ainda havia mobilizações de "encher o olho", dois anos de férias em S. Tomé ou Cabo Verde - e para o mal: sofrer, lutar, matar, morrer, fome, sede, calor, febres, mosquitos, vacinas, aerogramas, madrinhas de guerra, fotografias, saudades, "ressuscitar", regressar. E ficar lá, vivos e mortos.
Teve a guerra um significado positivo para as populações dos territórios ultramarinos: abertura de estradas, construção de escolas e hospitais, integração de antigos combatentes que optavam por não regressar à Metrópole, desenvolvimento da economia, nomeadamente da agricultura, da pesca e de algumas indústrias.
A dada altura pensa-se que a população branca das Províncias Ultramarinas poderia rondar um milhão de pessoas, com dezenas e dezenas de milhar de mestiços e  milhões de Negros, uns "convertidos" às teses de Salazar, continuadas por M. Caetano e outros verdadeiramente comprometidos numa independência política, social e económica para as suas terras, os seus países. Independência total. Com todas as consequências até as lutas fratricidas que levaram muitos dos mais entusiastas independentistas a refugiarem-se e a acabar os seus dias na velha Metrópole, com reformas pagas pelo Estado Português. E muitos outros milhares só não fugiram porque não puderam ou não deixaram e acabar vítimas de vinganças e ódios mais violentos que a própria Guerra Colonial. 
O 25 de Abril era inevitável, como foi ou como poderia ter sido. Impossível a País pequeno e com dificuldades em encontrar "carne para canhão" que a guerra pudesse ser continuada. Treze anos de duração foi já quase um "milagre". "Milagre" doloroso!
Pena foi que a Revolução dos Cravos, à medida que o tempo passava, "descambasse" ainda em mais medo, mais mortes no velho Ultramar, mais sofrimento. Que perdura até hoje. 
E, entre nós, não garanto que a "Democracia" em que agora vivemos não nos traga mais medos que a ditadura em que fomos mandados para a guerra: despedimentos arbitrários, desemprego, pobreza, fome, medo, mentira, subserviência, oportunismo, compadrio, nepotismo, favorecimentos, corrupção descarada, Educação..., Justiça...! "E uma Juventude à Rasca", sem conseguir vislumbrar qualquer luz ao fundo do túnel...
Que nos resta hoje? Já não há o medo de ser apurado para o SMO, de ser incorporado na recruta e especialização, em terras até então desconhecidas de muitos e que tanto podiam ser Tavira, Serra da Carregueira, Lamego, Tancos, Santa Margarida, Castelo Branco, Beja, Setúbal, Santarém, Vendas Novas... como Serra do Pilar, Viseu, Mafra ou Aveiro, em cujos quartéis se formavam as companhias e batalhões com "miúdos" quase imberbes e que haviam de ser largados no vasto sertão ou no denso matagal africano. Cheios de medo, uns chorando, outros envergonhando-se de o fazer, pois "um homem não chora"...
..
De uma Juventude louca e ingénua dos anos 60 restam, hoje,  velhos alquebrados.  Ainda muitos a curtir medos e outros a sentir saudades, saudades do que viveram, saudades do que não lhes deixaram vivver, saudades dos que não voltaram, ou voltaram para não contar.
Hoje, quem compreende porque e para que se fez esta guerra? A guerra é um flagelo e quase sempre a pior escolha. Nós, os que estamos vivos, enquanto o pudermos fazer e nos deixarem fazê-lo devemos tornar viva a memória daquela vidas em flor que foram sacrificadas ainda tão cheias de esperança, mal sentindo estarem a "cumprir o seu dever". Inclinemo-nos, respeitemo-los e saibamos preservar o que de bom nos deixaram, o sentir de uma Pátria que foi grande. E hoje tão pequena quão pequena é a pequenez da alma, da moral, da competência, da ética, do sentido de Estado e de Justiça, a tempo e horas, dos seus governantes e demais responsáveis de outros órgãos de soberania.
Depois que ao toque da alvorada se ergam vivos e mortos para celebrar o esplendor de Portugal.

Medos na Aldeia 7

A Guerra do Ultramar 1
As últimas guerras que haviam devastado a Europa e grande parte do Mundo iam caindo no esquecimento, a vida na Aldeia decorria monótona e sempre igual, com poucos momentos de festa e muitos de trabalho. A Criançada enchia largos e ruas e a escola nova tranbordava de garotadas a querer aprender. Os pais começavam a ter a certeza de que só a Escola livraria os filhos daquela "má vida" e faria a diferença entre um passado de servidão e um futuro com Esperança.
No alvorocer da década de 50 já o Seminário poderia ser uma porta de entrada - porque não de saída? - para uma maneira de encarar a vida que não fosse só trabalhar para os ricos.
Lá vinham as férias grandes, com o mês de Agosto/Setembro chegavam os "papa.figos" e os parentes da Aldeia, os tios e os primos, começavam a meter na cabeça que o arado e a enxada não eram tudo. Seriam até um impecilho para agarrar uma outra vida a que já aspiravam.
Com a chegada do Padre José Pedro, essse Homem de grande visão no anúncio do Evangelho e na promoção da pessoa, o ensino particular vem preencher o que o Estado não fora capaz de fazer: Escola para todos. Ou quase! A que se segue a gente a vestir melhor, calçar melhor, comer melhor. Sem luxos de espantar.
Mesmo no dealbar da década de 60 há dois acontecimentos que serão fracturantes e determinantes no futuro da(s) Aldeia (s): o início da Guerra do Ultramar e a Emigração.
Embora a Emigração tenha mudado de maneira muito acentuada a vida das gentes do nosso Interior, levando ao estado em que hoje se encontra, abandonado e desértico, as remesssas dos emigrantes permitiram que o aspecto dos nossos povoados mudasse radicalmente, nem sempre da melhor maneira e que as pessoas se habituassem a um nível de vida nunca antes sequer sonhado, pois dinheiro não faltava, mas a economia definhava, para chegar ao estado em que hoje a encontramos: morta.
No entanto, se o medo de emigrar bateu a muitas portas, normalmente levado de vencida, não é sobre este que vou reflectir, pois as consquências da Emigração foram mais positivas que negativas no desejo de se alcançar uma vida melhor para quem trabalhava e para os filhos.
Mas a guerrra!!! A guerra, um dos maiores flagelos que em todo o tempo vem afligindo a Humanidade!
De costas para a Europa, Salazar acreditava ser possível construir uma sociedade multirracial e pluricontinental que fosse do Minho a Timor. Era-nos ensinado, na Escola Primária, que a maior altitude de Portugal se chamava Ramelau, lá por terras da Oceânia e que o maior rio a regar terra portuguesa se chamava Zambeze. Qualquer menino ou menina para fazer exame da 4ª. Classe, nos seus 11 aninhos, tinha de saber rios, serras, afluentes, caminhos de ferro, capitaias, limites, cidades, produções, climas, montanhas, distritos, províncias, portos e praias e tanto se lhes pedia que os localizasse da Europa como na Ásia, na Áfria ou na Oceânia. E ainda com uma passagem pelas Américas, de onde se devia saber, pelo menos, que no Brasil se falava Português, que fora descoberto por Pedro Álvares Cabral, que a capital era o Rio de Janeiro, cidade onde habitara a Corte e até tivera Imperador...
Ainda hoje fico impressionado com o saber das nossas Crianças em dia de exame da 4ª. classe. Lá em Penamacor.
Portanto, "politicamente", a Nação estava preparada para se manter una e indivisível, quando se estava mesmo a ver que nem era una nem era indivisível.
Chegara a altura de as grandes potência coloniais começarem a dar a independência às suas colónias, normalmente colocando no poder governantes quase sempre de confiança dos ex-colonizadores, com grande apoio militar, político e técnico das antigas metrópoles. Quase sempre esses governantes se tornaram em tiranetes e ditadores, perpetuando-se no poder até à morte ou sendo apeados em golpes de força militar. Nalguns casos- Biafra, Katanga... - os interesses africanos nada tinham a ver com os dos imperialismos que ali se degladiavam pelos seus interessses estratégicos e económicos.
Não só perante a desgraça que se via nos novos paises "independentes" de África, mas também por cegueira política e falta de capacidade de diálogo com os movimentos independentistas das agora chamadas Províncias Ultramarinas, Salazar e a sua "corte" decidem que as novas independências eram inogociáveis e que Portugal seria sempre do Minho a Timor, como se vinha ensinando segundo o Programa Oficial para as Escolas. Decisão que, menos de duas décadas depois, se havia de revelar uma enorme desgraça. Homens como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondelane teriam que ser pedras basilares para que tanto a longa guerra e as consequentes sequelas pós 25 de Abril fossem evitadas e Angola e Moçambique, em ponto grande, as restantes Províncias, em ponto pequeno, se tornassem, verdadeiramente sociedades multirraciais justas e fraternas.
Mas o destino fora traçado, em 1961, 4 de Fevererio, com a eclosão do "terrorismo", em Angola, início da guerra colonial e anexação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, em Dezembro seguinte.
Fixemo-nos no que vai doer mais e era perfeitamente evitável, a Guerra Colonial.
De repente, jovens que haviam crescido sem a mínima ajuda do Estado Português, a não ser, para uma minoria, o acesso à Escola, em condições mais que deficientes, vê-se mobilizada, com uma fraca preparação militar de 3 ou 4 meses para uma luta de guerrilha, e embarcada, nas piores condições, com destino a terras que não conheciam nem queriam conhecer, lançados em matas quase impenetráveis, no meio das piores condições de sobrevivência e num grande sofrimento. Com a morte de muitos, do "nosso" lado e do lado "deles". Aos que caíram, de ambos os lados, sem saberem porquê nem para quê. E aos que sabiam porquê e e para quê deixo a minha homenagem neste  pungente toque de silêncio. (Para continuar)


Histórias de outros tempos... escritas por outros 1


Corria o ano de 1954. Era dia de 5ª-Feira Santa, 15 de Abril. Eu e a maior parte dos garotos da minha idade só pensavávamos em fazer as lanternas para levarmos na "Ladainha das Mulheres".
A Ladainha é uma espécie de procissão que se realiza na Aldeia todas as 6ª-feiras da Quaresma e à qual só têm acesso os homens. As velas eram substituídas por pinhas secas a arder, espetadas num pau. Na 5ª feira Santa, realiza-se a chamada "Ladainha das Mulheres" esta aberta a toda a população. sem diferenciação de sexos.
Aqui não entravam as pinhas, mas sim as velas e as lanternas. Estas eram formadas por uma roda de cortiça, um cilindro de papel branco e uma cana. A roda servia de base ao cilindro. Na superfície lateral do cilindro eram colados os símbolos da Paixão: a cruz, a lança, os cravos, a coroa de espinhos, o cálice a hóstia. Os ornamentos eram feitos de papel vegetal colorido, geralmente tirado dos envelopes das cartas que, na altura, eram forrados.
Este material era-me fornecido, geralmente, pelas primas Lai, Irene e Arminda. ( Aqui fica a minha gratidão.)
Eu, com a ajuda do meu irmão, lá fiz a minha e se não era a mais bonita, havia verdadeiras obras de arte, não seria também a mais feia das que seguiram no cortejo nocturno.
Às 8 horas, a matraca tocava a última para ladainha e eu já «estava em pulgas», pois o pai ainda não tinha ceado e não queria chegar atrasado.
Às oito e meia, estava Igreja cheia e o ti Iná e o ti Foduchas deram início aos canticos e preces. Da igreja seguimos para o Espírito Santo e lá ia eu orgulhoso da minha lanterna.
Porém, uns mariolas dos mais velhos já tinham "lançado os dados" sobre ela e, naquele ano, a minha lanterna era  uma das que estava condenada a arder.
Entre rezas e cantos chegámos à capela. Eu estava acompanhado pelo meu pai e pelo meu padrinho.
Um dos rapazolas que estava em cima do coreto mirou o alvo, "tirou os azimutes" e disparou, mas como devia ser fraco a matemática os cálculos foram mal feitos e a pedra, em vez de acertar na lanterna, acertou no centro da testa do portador.
O sangue saíu em repuxo. A lanterna caiu no chão e ardeu, enquanto o dono era levado a casa da Srª D. Maria, onde foi sustida a hemorragia e posta uma ligadura a volta da cabeça..
Passei a Páscoa com um galo na testa.
O meu padrinho, o Sarra, afirmava que só podiam ser aqueles.
A minha mãe preferia não falar mais nisso. Nunca se soube quem fora o autor da proeza.
Estamos no ano de 2009, é 5ª-Feira Santa, dia da "Ladainha das Mulheres". Estou à conversa com uns velhos amigos e um diz-me:
- Ó Fernando, faz hoje anos que parti a cabeça ao teu irmão...
- Qual ao meu irmão?!!! Foi a mim!
- Foi a ti?! Eh pá, passei a vida convencido que tinha sido ao teu irmão.
-Já passou. Só resta um pequeno sinal na testa.
-Podia ter sido uma chatice. A malta quando é garoto não pensa.
E rimos os dois, 55 anos depois...
O «Sarra» não estava enganado, em parte. Era um dos do grupo mas não aquele em que ele pensara.
Homem da Serra

terça-feira, fevereiro 15, 2011

A cooperação de outros 1 - MINHA TERRA

~~~ Minha Terra ~~~

Minha terra amarga com sabor a mel,
Meu berço de vime é doce recordação,
Como o Farrusco, meu amigo fiel,
O Marquês e o Chico, um pequeno cão.

Ó terra amada, minha linda aldeia!
Vales e montes, regatos e ribeiras.
O encanto das janeiras à lua cheia,
Ou da Coradinha no labor das eiras.


Aromas de esteva, urzes, alecrim,
Tojos, carqueja, giesta e rosmaninho,
Sem esquecer os que deixaram em mim
As mão que me ajudaram no meu caminho.


Espinheiros duros e roseiras bravias,
A silveira pica mas dá doces amoras.
Entre as searas cantam as cotovias.
E tu, triste rouxinol, diz-me porque choras.


As águias-reais são do teu céu senhoras,
Os falcões peregrinos, soltai vosso grito,
Tu, agoirenta noitibó, vai te lá embora,
Que o teu chocalhar nunca foi bonito.


Sonhos lindos, ilusões, tive-os, em criança,
Quando ia às cerejas à quinta alheia…
Cresci, fui feliz, bebi a esperança
Nas tuas fontes, ó minha linda aldeia.


Minha terra agreste de granito duro
Que estala ao sol, calores de Verão!
O segador ceifava o trigo maduro
Cantando as mágoas do seu coração.


Num poema feito de tudo e de nada,
Escrito à luz do meu entardecer,
Terra minha, mais de mil vezes amada,
Digo-te tanto e tanto fica por dizer!


Minha terra que nenhum douto te julgue sua,
Porque sendo de tantos não és de ninguém!
Livre como o vento, o sol, o céu, a lua,
A rola, o pardal e o falcão também.


Porém, se há quem creia ser senhora tua,
E nem em ti nasceu e nem em ti cresceu,
Não sabe o que foi correr p’las tuas ruas,
Nem que o teu azul não é mais seu que meu.


Carrasqueiro bravo ou giesta em flor,
É o teu A.D.N. que me corre nas veias.
Menino sonhador,foi pastor, lavrador,
Até segador que com trigo fez paveias.
"Homem da Serra"

Solidariedade

IRS Solidário

Como sabem aproxima-se a entrega das declarações de IRS, e com ela uma oportunidade de um gesto solidário.
Ajude a Associação Solidariedade Sem Fronteiras com 0,5% do seu IRS, sem alterar em nada os seus impostos e sem qualquer custo.
Este é um direito de todos os contribuintes, que consiste no exercício de um direito legal e um dever de cidadania que é destinar gratuitamente 0,5% do valor do imposto liquidado, que pertenceria ao Estado, a uma instituição de apoio social como a Associação Solidariedade Sem Fronteiras.
Basta preencher 9 algarismos e colocar 1 cruz no Anexo H da Declaração do IRS.
Ao preencher o campo 901 do anexo H com o NIPC 509 095 836, está a destinar à associação solidária e recreativa – Solidariedade Sem Fronteiras - 0,5% do valor do seu imposto liquidado que pertenceria ao Estado.

Para conhecer a Associação clique em baixo:


http://solidariedadesf.blogspot.com/






segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Medos na Aldeia 6


A Fome e seus aliados(1)
A invernia caía travessa, cruel e não havia quem desse "um dia a ganhar". O pouco que se juntara, no Verão e no Outono, já só dava para sacudir as bolsas, os sacos e os taleigos na esperança de que ainda por lá ficara um grão.
Lares com 6 e 7 filhos. Era uma dor de alma vê-los enganar a fome de pais e filhos com água, um fio de azeite grosso e sal, umas couves mal amanhadas, cozidas em lume fumarento de lenha verde que mal dava para aquecer e alumiar aquela "cozinha" desconfortável e insalubre, de forma a que desse a aparência de um caldo decente. Um resto de castanhas que um vizinho oferecera podiam fazer uma enorme diferença,
- Mãe, quero pão.
Não se pedia com queijo, com azeitona, com um bocado de toucinho. Simplesmente PÁO.
A Guerra terminara, em meados de 1945 e, por todo o Mundo, o seu cortejo de misérias e necessidades, que também se estenderam ao nosso Portugal. O racionamento fora imposto, nos bens "essenciais", a toda a população: massa, arroz, açúcar, sabão, farinha, pó de café... um tanto por cabeça, quando não havia batota, ao tempo muito menos descarada do que nos dias em que hoje vivemos.
Quase todas as crianças iam descalças para a escola, grande parte delas enganando o estômago com água "suja" de café, uma gotas de leite uma riqueza. Almoço a sério era privilégio de muito poucos. Escola sem aquecimento, sem luz, dezenas e dezenas de alunos mal instalados, dois professores - uma para as raparigas e outro para os rapazes. Cantina escolar, na Aldeia, nunca se ouvira falar. Pelo meio dia, Casa Grande lá oferecia um prato de sopa a quem lá se chegasse. a tempo antes que acabasse. Outros iam a casa, no intervalo de jantar, na esperança de um milagre, que podia ser uma fatia de pão centeio e meia dúzia de azeitonas.
Nos dois fornos comunitários da Aldeia é que se cozia o pão com a pouca farinha que se ia conseguindo, moendo o grão lá nas azenhas da Baságueda, na do Ti Feco ali ao Açude, ou até na mó movida pela força braçal  da Maria Júlia. Também se podia trocar grão por farinha na fábrica do Salvador, na de Medelim, na de Aldeia do Bispo, a mais recente, ou até em Penamacor. Isto para quem tivesse ainda grão, ou com que comprá-lo junto daqueles a quem, atempadamente, haviam sido pagas as rendas. Pago com dinheiro que quase não havia ou com a força do seu corpo, dali a umas semanas, quando recomeçassem os trabalhos do campo: sachas, cavas, mondas, podas...
Mas voltemos aos fornos: o cheirinho do pão a cozer ainda fazia mais fome naqueles já por ela muito atormentados. Rara era a fornada que não tivesse, ao sair do pão, ali um grupo de crianças e até adolescentes a "obrigararem" que uma ou outra mulher mais generosa ali  partissse um dos seus pães e o distribuisse quase que num renovar do milagre da multiplicação evangélica. Sem direito ao "peixe"... Não eram esquisitas estas Crianças e a expressão "Não gosto" era-lhes desconhecida.
Frequentemente, os mendigos andavam de terra em terra a pedirem "o pão nosso de cada dia" e a ouvirem também a frequente resposta de que
- Nosso Senhor o ajude, que eu já não posso. Impossível dar a todos. Tenho bocas para sustentar...
Tanto na fome como na doença a Comunidade, cheia de necessidades, "bastava-se" a si própria, sofrendo e partilhando. Náo raro se passavam 5 ou 6 dias na cama com uma feroz amigdalite ou uma gripe em que o único remédio era o gemer constante e sofrido e uns chás e outras mezinhas caseiras, cujo resultado era mais fruto da Fé do que das qualidades curativas de alguns dos produtos usados. Curar a dor de ouvidos com azeite quente, a papeira ou qualquer mal da pele com "unto sem sal", a falta de apetite com passagem sob portas.... A bruxaria entrava, então em cena. Sempre era mais barato do que a vinda do médico. E, na ausência de dinheiro para aviar a receita... o efeito seria sempre o mesmo!!!. Na dor de dentes, nas dores de ouvidos... em tantas dores de corpos feridos e sofridos fisica, psíqica e espiritualmente. Ir a Penamacor ao Dr. Barbas, ou ao Dr. Rodrigão, ou ao Dr. Moutinho e passar pela Farmácia era um verdadeiro luxo de muito poucos. Mandar vir qualquer deles à Aldeia... então a coisa estava mesmo feia, o cheiro da Morte andaria por perto. Quase sempre para passar a certdão de óbito.
Mas voltemos ao tema da fome. Jamais poderei esquecer um episódio de que fui personagem oculta e atenta
Noite escura, casas escuras e cheias de medos - outros se seguirão a este - estava eu já na humildade de uma cama confortável, o vento a uivar e a chuva a cair e, que seria isto?  Ouve-se um leve roçar na porta da habitação. Já as nove horas haviam batido e com uma noitada daquelas quem andaria na rua...
- Quem está aí?
A resposta foi tão suave  e acanhada que a pergunta teve de ser repetida.
- Quem é que bate à porta com uma noite destas?
- Sou eu...
- Eu quem?! Que queres tu ,miudo? Já devias estar na cama.
Cama?! Poder-se-ia chamar cama a um monte de palha em cima do qual dormiam meia dúzia de garotos enrolados em mantas de trapos?
. Sou o Tó Manel e não vou para a cama que tenho muita fome. Não tive nada para a ceia...
Adoçou-se a voz da dona da casa. O Tó Manel, de um pai que só sabia fazer filhos, homem de taberna, maus fígados, que tanto malhava na mulher como nas crianças... barbeiro que só trabalhava ao sábado e no domingo de manhã, à fugida da GNR....
- Ó meu filho, entra e aquece-te. Já sabes que somos pobres, não tanto como vós. Vá aquece-te. Os meus filhos já estão na cama. Toma lá esta malga de caldo, que sobrou. Leva lá este bocado de pão e  aquece-te e enxuga-te.
O Tó Manel tinha o meu nome e era da minha idade. Passados mais de 60 anos ainda recordo, doloridamente, esta cena tão comovente. Como hoje, uns de barriga cheia, a gastar dinheiro para emagrecerem, combaterem o colesterol e a diabetes e outros a estender a mão à Caridade na procura do que por Justiça lhes era devido.
O Tó Manel já não faz parte deste Mundo. Lembro-me sempre dele, com o dedo polegar direito amputado pela ferradura de um cavalo que lhe pisara a mão, enquanto brincava junto dele com as mãos no chão. Filho de pai alcoólico, não dei conta de que aprendesse, em tempo normal, o que era essencial nesse tempo: ler, escrever e contar... Não foi uma criança feliz, não foi um adolescente feliz, não podia ser um homem feliz. Faltou-lhe, como hoje continua a faltar, o Amor de uma  Família estruturada. Como acontece a muitos do nosso tempo, crianças ou velhinhos.
Verdadeiramente me questiono, hoje e agora, se esta democracia de brincadeira não nos vai aproximando de uma ditadura a sério?!
(1) Doença, maus tratos, trabalho infantil, falhas na educação e na instrução, desAmor, falta de trabalho ou trabalho mal remunerado, habitação indigna, vestuário de miséria, bem estar quase inexistente...
PS (Post Scriptum) A realidade foi conhecida e sentida pelo autor. As personagens  e a forma do texto são fruto da sua imaginaçao. Outros medos?! Talvez....

domingo, fevereiro 13, 2011

Medos da Aldeia 5


Borborinhos
Eram trabalhosos, monótonos e pacíficos os dias de Verão. Ceifas, malhas, regas, pastorícia. Ar quente e abafado, quase irrespirável, lábios ressequidos, aliviados com a água fresca das minas e de poços de maior confiança, donde não pudesse vir uma febre tifóide ou, no mínimo, uma dor de barriga de deitar a correr.
A melhor água era a que jorrava das fontes graníticas ou de um ou outro chafariz aqui e ali. A fonte da Tapada do Cabeço, a Fonte dos Leitões, as fontes da Tapada da Barroca, a da Cecília, a Fonte Fria, a da Tapada da Tenda, a da Malhada da Viseira... tantas... tantas. O Povo sabia que a água bem cuidada era quase garantia de um Verão sem cuidados de maior... para além dos "sarilhos" apanhados com fruta quente ou verde. Ou verde e quente.
Pela hora do jantar e naquele espaço de tempo que dava lugar a uma pequena sesta, tão repousante quanto o calor abrasador o permitia era vulgar haver redemoinhos aqui e ali mais ou menos bravos que podiam pôr tudo de pantanas e causar prejuízos de certa gravidade numa agricultura de subsistência.
Os borborinhos, a que hoje chamamos tornados e que vemos, de vez em quando, na TV. Pois, nos anos 40 e 50, muitos e muitos borborinhos tive ocasião de ver. A superstição popular ligava aqueles movimentos "diabólicos" a "coisas do outro mundo", "almas penadas", a cumprir danada missão, com "contas por ajustar".
De maneira geral, os nossos borborinhos levantavam mais pó do que davam prejuízos para contabilizar. Que nem valeria a pena, pois ajudas de ninguém da Terra lhes viria. Rezava-se então para que aquelas "almas danadas" fossem levadas lá para bem longe de todo o ser vivo, para que de lá não viesse mal algum.
Contavam-se as histórias mais incríveis. O Vieira, guardador de rebanhos, envolvera-se à paulada com um "endemoinhado" e fazia gala de contar que o "outro" não levara a melhor, apesar de apresentar as roupas bem esfarrapadas e a cara vermelhona como se as mais valentes chapadas lhe houvessem sido aplicadas, sem dó nem piedade. Também  a da Peta, uma Maria Rapaz, pronta para todos os desafios. Estava empoleirada numa figueira, quando ali por perto se começou a formar um borborinho. Atrevida e travessa não esteve com meias medidas e toca a desafiar, a chamar nomes "feios" ao borborinho. Atrevida esta rapariga, que nenhum rapaz lhe pusesse a mão. E a figueira a abanar, a abanar, e ela a gritar, a desafiar, a praguejar. E a figueira quase a soltar-se pelas raízes e a Peta a gritar agora de medo e de raiva e quem via rezava ou ficava mudo de espanto e temor. Uma luta de fazer medo. Eis senão quando as saias da rapariga vão pelos ares - contou quem viu e ouviu!!! - e três valentes palmadas foram aplicadas naquelas nalgas roliças e juvenis que - diz quem ouviu e viu - ficaram mais vermelhas que pimentos malaguetos. A Peta até ficou gaga por uns tempos e jurava que com outros é que não queria mais brincadeiras.
Ainda um pastor, o Tó Quim, se atreveu a lutar à navalhada com um borborinho que lhe passou perto. Navalha lançada na guerra e, sem saber como, é-lhe arrebatada da mão... Pois quando mais tarde foi recuperada, suja de sangue, nunca se chegou a saber se do próprio dono, o que ele sempre negou, se da "alma de outro mundo" que ele conseguira "fazer sangrar".
Estas algumas das histórias que ouvi.
Vi borborinhos que levantaram canas de milho espalhadas. em paveias,  pelas baixas, indo cair a centenas de metros do local do "roubo". Vi levantar a palha de uma eira , ficando espalhada por aqueles campos, levada em cone medonho e fascinante.
O Povo rezava a todos os Santos do Céu e a Deus e a Nossa Senhora e ao Santíssimo Sacramento para que o Mafarrico fosse pregar partidas lá para aqueles matos maninhos. Respeitinho e medo, superstição e Fé tudo misturado num fenómeno de que ninguém sabia dar explicações.
"O Latas".
Foi o maior borborinho que vi, lá nos tempos em que andei pelas margens da nossa Ribeira.
A tarde estava quente, abafada e, de repente, quase se sentiu frio. Ali na pequena várzea, com o milho para ser apanhado, começa a formar-se um pequeno cone de poeira, terra, canas de milho. Sempre a crescer, a crescer, um barulho surdo e medonho começa a assustar a Mãe e as Crianças. Joelhos em terra, rezas fervorosas para que aquele "demónio" se vá dali. Depois vai o restolho, e os ramos  cortados e os quebrados. E as silvas espalhadas pelos valados. Um roncar atroador enche de terror e espanto os que assistem, ali na margem esquerda da Ribeira, na Tapada do Cabeço. De repente, começa a deslocar-se e leva tudo o que pode apanhar, ora numa das margens da ribeira ora na outra. Por fim,. decide-se por caminhar em direcção a Sul, seguindo para jusante. Baldes, caldeiros, latas, choças, cancelas, canas de milho, restolho, chapas de zinco, tudo a bater num estranho som, quase infernal. Por onde foi passando deixou marcas, "varrendo" ambas as margens da Ribeira, ora a esquerda, ora  a direita, num serpentear caprichoso e medonho. Depois, lá para a Tapada da Ribeira foi abrandando, a luz do sol recomeçou a clarear a tarde, os objectos voadores foram aterrando e, durante muito tempo, "o Latas", como o batizou a Ti Belarmina do "Caixa", deu que falar. Ninguém se lembrava de um borborinho assim, a tocar latas, num barulho ensurdecedor. Nem consta que viesse outro depois. Para sossego dos nossos Camponeses.
Nota: histórias ouvidas ou vividas pelo autor. Nomes quase todos imaginados. Tratamento do texto da livre criatividade do autor. Bom "As Janeiras" é porque estamos em Fevereiro....



      

sábado, fevereiro 12, 2011

Medos da Aldeia 4

Lacraus

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Raparigas cantai todas, rapazes cantai com elas.
Que não haja um dizer, nem nos rapazes nem nelas.
Óloai larilólou!!!! Óloai larilólela!!!
O mês de Agosto avançava e o calor torrava campos e pessoas. Para serem descamisadas, carradas de canas de milho haviam sido transportadas e colocadas à sombra das oliveiras e sobreiras, numa espécie de círculo cujo centro era o tronco das próprias árvores.
Depois, os ranchos que haviam sachado e mondado, aterrado e cortado os "seus" milhos ali estavam, num trabalho bem mais feliz e alegre, a separar as loiras maçarocas, que haviam de dar as alegrias da farinha para as broas e do “carolo” das papas, a matar a fome lá nas noites de invernia.
A maioria das personagens empenhadas nesta alegre tarefa campesina eram mulheres e adolescentes, por vezes crianças em jeito de que “de pequenino se torce o pepino, e a eira, ali ao lado, ia ficando composta, oferecendo o esplendoroso espectáculo das douradas maçarocas a brilhar sob o quente e refulgente Sol de Verão. Para completar a secagem que havia de conduzir à tão desejada malha, sob o bater dos manguais empunhados por homens de “antes partir que torcer”.
A descamisa. Depois da vindima, era, por certo, o mais alegre trabalho campestre lá pelos anos 50. Feito à sombra, em alegre cavaqueira, histórias de anos passados eram ali trazidas à conversa, e toda a novidade de um meio sem notícias passava por um trabalho que ocupava a maior parte da Aldeia, a Norte e a Sul, a Nascente e a Poente. No meio de alguma brejeirice, um piropo para aqui uma "ferroada ali e o   trabalho decorria repetitivo e a gosto.
Nesse Verão, motivo de chacota era aquela de "O Presunto", um monsantino, em "história de amores e ciúmes" ainda hoje mal contada, quando chamado a passar dos "considerandos" aos "finalmente" haver pegado num cacete e haver posto o "rancho d'Aldeia" em debandada.
Num "povo de poetas e músicos" a brincadeira pegou logo e era cantada por aqui e por ali, no meio de gargalhadas e dichotes bem atrevidos:
"A tia Fidalga Velha, óai, a tia Fidalga Velha,
ai..,fugiu toda atrapalhada....
Para detrás de um barroco, óai, para detrás de um barroco,
Ai, só p´ra dizer que não viu nada."

"Não me digas que sim, não me digas que não,
O rancho do carvalhal já não vale um tostão.
Já não vale um tostão, já não vale um pataco,
O "Presunto", sozinho,  fez fugir vinte e quatro..."
E a cantiga ia crescendo, crescendo, conforme a arte e o engenho malicioso de cada um.
Com espetos de pau de esteva ou de marmeleiro, ou com facas e navalhas a preceito, as camisas do milho, caneira a caneira, eram rasgadas e as maçarocas libertadas iam enchendo cesto, baldes e caldeiros para serem despejados nas lajes da eira, quase sempre perto. Quando a colheita já assumia algum significado, era ali que se juntava o que fora semeado, tratado e recolhido em campos dispersos e colocado, ali, à beira daquele espaço formado de duras lajes de granito, a eira.
Este trabalho quase leve e de alegre boa disposição, à sombra,  culminava na recolha do fruto de longas semanas de trabalho, que começaram pela sementeira do milho lá quando o cuco e as andorinhas apareciam a anunciar a Primavera a dizer que era tempo de arar.
Nesta alegre tarefa de descamisar o milho, havia sempre um certo “jogar à defesa”, não tanto dos mais afoitos, mas quase sempre dos mais medricas. Naquele tempo, ainda havia lacraus. Muitos mesmo. Era fácil encontrá-los, havendo quase um debaixo de cada pedra que se levantasse. E a sua picada era conhecida de todos, uns de experiência própria... outros de ouvirem e verem. Nada de brincar!!!
Ora, estes simpáticos bichinhos, cuja picada tão dolorosa bem senti, tinham por hábito esconder-se debaixo dos montes de milho cortado. Assim, era com alguma precaução e olhos bem abertos que se iam puxando os caules empilhados para serem trabalhados sem dissabores de maior.
Mesmo assim, não se passava uma descamisa sem que houvesse um mau encontro com aquele que era capaz de, em golpe rápido, vir agarrado e ferrado num dedo, mesmo na mão. O “artista” acabava mal e a vítima ia padecer um bocado.
Estava quase na hora do jantar, sol a pique, ondas de calor a cortar a respiração. Caule a caule, cada um ia tomando conta no seu trabalho: maçarocas no cesto, canas bem alinhadas para serem bem secas, atadas, para alimento dos animais, nas longas e frias noites do Inverno que chegava sempre, a seu tempo. A conversa estava agora mais calma, os cantares mais esparsos e menos vivos, a fome e a sede  a apertarem e o calor sempre a aquecer.
- Olha, o sacana, apanhou-me mesmo em cheio!!! E não larga… E logo havia de ser na “berra” do calor.
O alarido generaliza-se, opiniões de “faz assim” “faz assado” eram de sobra. Uma sacudidela mais forte faz o lacrau largar o dedo que ferrara, mas não teve êxito na tentativa de se voltar a esconder debaixo das canas. Ou do que quer que fosse. A partir do momento em que atacara o homem… o seu destino só podia ser um… morrer.
Todos sabiam que a picada do lacrau não era para brincadeiras, num tempo em que só a medicina caseira havia inventado algum antídoto.
Homem de "mais vale partir que torcer", o Fernando, a custo retinha as lágrimas, enquanto ia praguejando e soltando alguns ais bem doridos. Com a navalha bem afiada, "a frio", alargara-se o orifício da picada, espremera-se o sangue “envenenado”, que gotejava lentamente. Um mais afoito mete a ferida na boca, chupa e cospe repetidas vezes não vá o diabo tecê-las.
Devagar, o pessoal vai-se preparando para a refeição do meio dia.
Alguém se lembra de que na modesta casa campestre, ali perto da eira, haveria “Gaiacol” o remédio com que se aliviavam as dores dos dentes tão frequentes numa época em que apenas se ia ao “dentista” para arrancar, a frio, dentes cujas dores já se tornavam insuportáveis.
Realmente, o efeito analgésico do “Gaiocol” fez-se sentir.
O Fernando não jantou, nesse dia. Como se tivesse maleita, enrolou-se numa manta de farrapos e ali, à sombra da sobreira, foi sofrendo, gemendo e dormitando.
Quando o sol já se escorria para trás da serra, num repente, levantou-se, em meio de risadas e palmas e exclama:
- Maria, larga o milho e vamos regar a horta , que este calor deixou tudo murcho.
Eram assim, os nossos camponeses, sem direito a baixas nem a greves. Só o trabalho os esperava, nem sempre certo, quase sempre mal pago.
Notas:
1. Fotos retiradas da Internet;
2. Texto fora de época, mas há meses a aguardar publicação.