A Promessa
- Caramiinda, só faltam 7 semaanas…
- Sete semanas para quê, Maria???
- Para ir…irmoos à S’nhora da Pova a pé e m…me m…me ajuda…ares a cumpri…i…ir a po…prome…essa a Nonossa Senho…ora da Póva…a…a… - gaguejou.
- Ná! Desta vez não me enrolas. Já duas vezes que fui contigo e mesmo a chegar ao fim, estragas tudo. Isto é de mais e já não tenho idade para brincadeiras…
- Ooh!!! Caraminda po…or fa…avor não me deixes i…ir p’ro Infe…erno…o… - insistia a outra.
- Não, não desta vez não contes comigo.
Passou-se numa Semana Santa de há muitos anos atrás, precisamente no início da década de 70.
Maria era uma das figuras típicas da minha Aldeia, um tanto “abajoujada”, meio “tronga” e “desleixada”. De gente modesta, não tivera vida fácil, como quase todos os nossos aldeãos, que trabalhavam de sol e sol, ao frio e à chuva, para alimentar a preguiça dos das “casa grandes”. Não primava pelo aprumo nem pelo asseio, divertia e divertia-se com os remoques dos outros. Eventualmente, com um baixo coeficiente de inteligência, tinha muitas histórias que faziam com que uma “malta” cruel a “assanhasse” cada vez que passava sobretudo se algum engraçado se atrevia a chamar-lhe “parracha”, vocábulo muito pejorativo na terra que nos viu nascer. Era um despejar de asneiras em cima do atrevido, que chegavam e sobravam para ele e para todos os familiares, próximos ou distantes, até à quinta geração. E esta encenação não acontecia só de ano em ano, podendo a ocorrer várias vezes, no seu percurso, até ao fim da povoação, na estrada para Medelim. Uma figura castiça que, certamente nem a Reforma da Maria de Lurdes conseguiria pôr a ler. Muito menos a calcular. Pelo menos no papel que no resto governava-se com mais ou menos dificuldade.
“Sempre que nasce um sapo, também nasce uma sapa!” Quantas vezes ouvi esta frase lá pelo povoado onde nasci e percorri em dias felizes que já não voltam. Pois foi assim que, sem muito espanto, a Maria lá se casou e teve uma catrefada de filhos, todos pessoas de bem, com uma vida bem mais aliviada que a dos pais que, anos fio, foram sendo pastores de algum dos muitos rebanhos que, ao tempo, enchiam caminhos e pastos com o tilintar bucólico de chocalhos e campainhas, a vaidade dos donos daqueles animais que davam vida e algum ganho às nossas pobres gentes beiroas. Dormir na choça, parir filhos sem parteira nem maternidade, trabalhar muito e receber pouco foi o destino da nossa Maria, muitas vezes motivo de galhofa de muitos que se achavam engraçadinhos.
Carminda era prima da Maria. Talvez daí a amizade que as unia e uma certa cumplicidade com as suas “parvoíces”. Ficara órfã, ainda na adolescência, fora criada com 3 irmãos por uma jovem Mãe que nunca mais deixou o seu fato de viúva, e só se lembrava de sempre ter trabalhado. Ah! Aquele malfadado “rolho” “areando” a terra e separando volfrâmio para prolongar, cruel e inutilmente, uma guerra que devastava a Europa, enriquecendo uns, com extravagâncias inconcebíveis, e explorando os mais fracos, de maneira escandaloso e muito sofrimento!!! Mesmo assim, ainda fez a 3ª. classe, um “bacharelato” nos anos 30 – a “licenciatura” era “dada” pela quarta classe, numa das salas da Escola de Penamacor, onde a nossa Carminda nunca chegou a pôr os pés, não por falta de capacidade, mas sem oportunidade.
Por força das circunstâncias, aos 20 anos casou. Não foi o enlace que sonhara, mas o possível, já que detestava a vida do campo e saíra-lhe na rifa um “ganhão”. O destino de ambos estava traçado…
- Filha, uma casinha nova é o sonho de qualquer rapariga. É trabalhador, não tem vícios, uma junta de vacas… blá… blá..
Ah! A força de uma Mãe quando o candidato sabe namorar em dois dos campos.
Entregue ao seu triste destino de tratar dos “torrões” dos outros, aqueles arrendamentos e aqueles ricos exploradores e sem coração, nem por isso deixou de se fazer notar pela sua inteligência e sagacidade, argumento na ponta da língua de “mais vale perder um amigo do que guardar uma boa resposta”. Militante convincente do Catolicismo, nem sempre esclarecido, mas sem culpa própria, poucas iniciativas passavam por ali sem que estivesse presente. A sua devoção mariana tornavam-na uma grande fã, como hoje se diz, das peregrinações a pé, a pão e água… e das nossas romarias. Ah! Que ricas merendas ela sabia preparar!!!
Ora a nossa história começa uns quatro ou cinco anos antes da conversa que inicia este texto. Numa das suas muitas aflições, a Maria, uma língua de trapos, socorrera-se de Nossa Senhora da Póvoa:
- Virgem Santíssima, valei-me nesta aflição e eu prometo que irei à vossa romaria, a pé, desde Aldeia, sem dizer uma só palavra em todo o caminho…
Para quem a conhecesse, ou a aflição era grande ou a inconsciência do prometido quase irresponsável. Mas estava prometido, estava prometido. Pronto!
O pedido para tão grande desespero teve a resposta pretendida e “promessa de rei (rainha) não volta atrás”. Estávamos no tempo em que se vendiam prédios para sempre com uma “única palavra” ou, então, depois de bebido o “albroque” estava negócio fechado para sempre. Ah! Escrituras e simplex podiam ser dispensáveis, eram mesmo ignorados!
Ora pois. Havia a promessa para cumprir. Sem lugar para hesitações nem desculpas. Promessa era promessa. Deixemos os juízos de valor aos iluminados de hoje!!!
A Maria dava voltas e mais voltas e não tem dúvidas.
- A minha prima Carminda vai dar uma ajuda…
Conversa daqui, conversa dali, convida-se esta e aquela e tudo se arranjou. Até porque a Carminda estava em vésperas de ter os filhos lá pelas Africas, prontos a marchar para uma guerra sem sentido nem motivo. Acreditava, profundamente, que tendo a MÃE de Jesus por aliada as coisas poderiam correr da melhor maneira, como era o seu desejo mais profundo, abraçá-los vivos e escorreitas, no regresso. Oh! Mães de Portugal quanto sofrimento injusto e injustificado!!!
Foi assim que, lá pelas 3 da manhã de uma 2ª. Feira do Espírito Santo, aí vão elas, quase só elas – já nesse tempo era mais fácil levar os homens à taberna… - não sem que antes a cartilha tivesse sido bem lida:
- Maria, já sabes que não podes abrir a boca e nós não estamos aqui para brincadeiras!!!
- Está…á be…em… Sei be…em qual é o meu traba…a…a…alho…
Dada a partida, passa-se a Aldeia do Bispo – uma pêra doce – Penamacor – ui que já me dói um tornozelo – a Meimoa - ai os meus joelhos que nem os sinto – caminhado, rezando, cantando, falando. E a Maria “ moita carrasco” . Um poço de silêncio. Parecia, sim parecia, que a vitória era certa!!!
Ai aquele caminho depois da Meimoa que não mais chega ao fim. Upa que já falta pouco. E lá vão, passo a passo, quilómetro a quilómetro.
- Ui! Estes quilómetros são mais compridos que aquele dois até Aldeia do Bispo – exclama uma delas.
VSP já aparece lá ao fundo bem iluminado pelo sol brilhante de uma manhã suave de Maio.
- Força que estamos perto.
De repente, numa curva da estrada, vislumbra-se algo que todos julgam ser a capela de Nossa Senhora da Póvoa e ouve-se com entusiasmo e alegria:
- Mi...inha Senhoira da Pova, que já vos vejo!!!
O espanto deixa os peregrinos gelados. Faltavam uns poucos quilómetros e aquela desbocada não conseguira conter-se. Nem a caminhada, nem a Fé, nem a Esperança, nem a Caridade foram tidas em conta numa explosão de revolta e ira:
- Minha grande maluca, todo este sacrifício e estragaste tudo!!! Estava quase, quase e essa língua destravada só fala de mais…
A viagem vai até ao fim. Nessa já tão distante segunda feira a devoção a Nossa Senhora da Póvoa foi vivida por cada um dos caminheiros segundo o seu entendimento Mas a promessa … Ah! A promessa fica para um novo episódio…
(Esta narração é fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com situações reais é pura coincidência)
- Caramiinda, só faltam 7 semaanas…
- Sete semanas para quê, Maria???
- Para ir…irmoos à S’nhora da Pova a pé e m…me m…me ajuda…ares a cumpri…i…ir a po…prome…essa a Nonossa Senho…ora da Póva…a…a… - gaguejou.
- Ná! Desta vez não me enrolas. Já duas vezes que fui contigo e mesmo a chegar ao fim, estragas tudo. Isto é de mais e já não tenho idade para brincadeiras…
- Ooh!!! Caraminda po…or fa…avor não me deixes i…ir p’ro Infe…erno…o… - insistia a outra.
- Não, não desta vez não contes comigo.
Passou-se numa Semana Santa de há muitos anos atrás, precisamente no início da década de 70.
Maria era uma das figuras típicas da minha Aldeia, um tanto “abajoujada”, meio “tronga” e “desleixada”. De gente modesta, não tivera vida fácil, como quase todos os nossos aldeãos, que trabalhavam de sol e sol, ao frio e à chuva, para alimentar a preguiça dos das “casa grandes”. Não primava pelo aprumo nem pelo asseio, divertia e divertia-se com os remoques dos outros. Eventualmente, com um baixo coeficiente de inteligência, tinha muitas histórias que faziam com que uma “malta” cruel a “assanhasse” cada vez que passava sobretudo se algum engraçado se atrevia a chamar-lhe “parracha”, vocábulo muito pejorativo na terra que nos viu nascer. Era um despejar de asneiras em cima do atrevido, que chegavam e sobravam para ele e para todos os familiares, próximos ou distantes, até à quinta geração. E esta encenação não acontecia só de ano em ano, podendo a ocorrer várias vezes, no seu percurso, até ao fim da povoação, na estrada para Medelim. Uma figura castiça que, certamente nem a Reforma da Maria de Lurdes conseguiria pôr a ler. Muito menos a calcular. Pelo menos no papel que no resto governava-se com mais ou menos dificuldade.
“Sempre que nasce um sapo, também nasce uma sapa!” Quantas vezes ouvi esta frase lá pelo povoado onde nasci e percorri em dias felizes que já não voltam. Pois foi assim que, sem muito espanto, a Maria lá se casou e teve uma catrefada de filhos, todos pessoas de bem, com uma vida bem mais aliviada que a dos pais que, anos fio, foram sendo pastores de algum dos muitos rebanhos que, ao tempo, enchiam caminhos e pastos com o tilintar bucólico de chocalhos e campainhas, a vaidade dos donos daqueles animais que davam vida e algum ganho às nossas pobres gentes beiroas. Dormir na choça, parir filhos sem parteira nem maternidade, trabalhar muito e receber pouco foi o destino da nossa Maria, muitas vezes motivo de galhofa de muitos que se achavam engraçadinhos.
Carminda era prima da Maria. Talvez daí a amizade que as unia e uma certa cumplicidade com as suas “parvoíces”. Ficara órfã, ainda na adolescência, fora criada com 3 irmãos por uma jovem Mãe que nunca mais deixou o seu fato de viúva, e só se lembrava de sempre ter trabalhado. Ah! Aquele malfadado “rolho” “areando” a terra e separando volfrâmio para prolongar, cruel e inutilmente, uma guerra que devastava a Europa, enriquecendo uns, com extravagâncias inconcebíveis, e explorando os mais fracos, de maneira escandaloso e muito sofrimento!!! Mesmo assim, ainda fez a 3ª. classe, um “bacharelato” nos anos 30 – a “licenciatura” era “dada” pela quarta classe, numa das salas da Escola de Penamacor, onde a nossa Carminda nunca chegou a pôr os pés, não por falta de capacidade, mas sem oportunidade.
Por força das circunstâncias, aos 20 anos casou. Não foi o enlace que sonhara, mas o possível, já que detestava a vida do campo e saíra-lhe na rifa um “ganhão”. O destino de ambos estava traçado…
- Filha, uma casinha nova é o sonho de qualquer rapariga. É trabalhador, não tem vícios, uma junta de vacas… blá… blá..
Ah! A força de uma Mãe quando o candidato sabe namorar em dois dos campos.
Entregue ao seu triste destino de tratar dos “torrões” dos outros, aqueles arrendamentos e aqueles ricos exploradores e sem coração, nem por isso deixou de se fazer notar pela sua inteligência e sagacidade, argumento na ponta da língua de “mais vale perder um amigo do que guardar uma boa resposta”. Militante convincente do Catolicismo, nem sempre esclarecido, mas sem culpa própria, poucas iniciativas passavam por ali sem que estivesse presente. A sua devoção mariana tornavam-na uma grande fã, como hoje se diz, das peregrinações a pé, a pão e água… e das nossas romarias. Ah! Que ricas merendas ela sabia preparar!!!
Ora a nossa história começa uns quatro ou cinco anos antes da conversa que inicia este texto. Numa das suas muitas aflições, a Maria, uma língua de trapos, socorrera-se de Nossa Senhora da Póvoa:
- Virgem Santíssima, valei-me nesta aflição e eu prometo que irei à vossa romaria, a pé, desde Aldeia, sem dizer uma só palavra em todo o caminho…
Para quem a conhecesse, ou a aflição era grande ou a inconsciência do prometido quase irresponsável. Mas estava prometido, estava prometido. Pronto!
O pedido para tão grande desespero teve a resposta pretendida e “promessa de rei (rainha) não volta atrás”. Estávamos no tempo em que se vendiam prédios para sempre com uma “única palavra” ou, então, depois de bebido o “albroque” estava negócio fechado para sempre. Ah! Escrituras e simplex podiam ser dispensáveis, eram mesmo ignorados!
Ora pois. Havia a promessa para cumprir. Sem lugar para hesitações nem desculpas. Promessa era promessa. Deixemos os juízos de valor aos iluminados de hoje!!!
A Maria dava voltas e mais voltas e não tem dúvidas.
- A minha prima Carminda vai dar uma ajuda…
Conversa daqui, conversa dali, convida-se esta e aquela e tudo se arranjou. Até porque a Carminda estava em vésperas de ter os filhos lá pelas Africas, prontos a marchar para uma guerra sem sentido nem motivo. Acreditava, profundamente, que tendo a MÃE de Jesus por aliada as coisas poderiam correr da melhor maneira, como era o seu desejo mais profundo, abraçá-los vivos e escorreitas, no regresso. Oh! Mães de Portugal quanto sofrimento injusto e injustificado!!!
Foi assim que, lá pelas 3 da manhã de uma 2ª. Feira do Espírito Santo, aí vão elas, quase só elas – já nesse tempo era mais fácil levar os homens à taberna… - não sem que antes a cartilha tivesse sido bem lida:
- Maria, já sabes que não podes abrir a boca e nós não estamos aqui para brincadeiras!!!
- Está…á be…em… Sei be…em qual é o meu traba…a…a…alho…
Dada a partida, passa-se a Aldeia do Bispo – uma pêra doce – Penamacor – ui que já me dói um tornozelo – a Meimoa - ai os meus joelhos que nem os sinto – caminhado, rezando, cantando, falando. E a Maria “ moita carrasco” . Um poço de silêncio. Parecia, sim parecia, que a vitória era certa!!!
Ai aquele caminho depois da Meimoa que não mais chega ao fim. Upa que já falta pouco. E lá vão, passo a passo, quilómetro a quilómetro.
- Ui! Estes quilómetros são mais compridos que aquele dois até Aldeia do Bispo – exclama uma delas.
VSP já aparece lá ao fundo bem iluminado pelo sol brilhante de uma manhã suave de Maio.
- Força que estamos perto.
De repente, numa curva da estrada, vislumbra-se algo que todos julgam ser a capela de Nossa Senhora da Póvoa e ouve-se com entusiasmo e alegria:
- Mi...inha Senhoira da Pova, que já vos vejo!!!
O espanto deixa os peregrinos gelados. Faltavam uns poucos quilómetros e aquela desbocada não conseguira conter-se. Nem a caminhada, nem a Fé, nem a Esperança, nem a Caridade foram tidas em conta numa explosão de revolta e ira:
- Minha grande maluca, todo este sacrifício e estragaste tudo!!! Estava quase, quase e essa língua destravada só fala de mais…
A viagem vai até ao fim. Nessa já tão distante segunda feira a devoção a Nossa Senhora da Póvoa foi vivida por cada um dos caminheiros segundo o seu entendimento Mas a promessa … Ah! A promessa fica para um novo episódio…
(Esta narração é fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com situações reais é pura coincidência)