Aquele mês de Maio de meados da década de 50 do século XX estava a ser igual a tantos outros. Tudo o que era campo havia sido cultivado ou, em período de pousio, ocupado por rebanhos e rebanhos de ovelhas e cabras, em demanda da pouca pastagem que ainda por lá havia.
A Escola, com duas enormes salas, era insuficiente para acolher todas as Crianças da terra, que apenas poderiam começar a frequentá-la com sete anos completos no dia em que as aulas reabriam, a 7 de Outubro. Dois professores para cerca de uma centena de alunos nem era tarefa que se desejasse. Um bom número acabava por desistir e a percentagem de “chumbos” andava acima dos 30%. Não era raro ver, na Vila, rapazotes "a mudar a voz" e a fazer exame da 4ª. Classe, a caminho dos … 14 anos.
Nos campos não faltava que fazer, muito poucos trabalhando o seu próprio bocado, grande parte vivendo dos arrendamentos, e os restantes como jornaleiros das casas maiores ou dos rendeiros, numa exploração, até hoje não interrompida, do homem pelo homem.
As searas haviam deixado de “correr” pelos campos, no mês de Abril, empurradas pelos ventos suaves assemelhando-se a um mar verde a querer fugir para o terreno do vizinho e começavam a tomar o aspecto dourado, a indicar que o mês do S. João chegaria breve. Aqui e além, nos poucos trigais que se semeavam na nossa terra, um pouco mais atrasados que os centeios, as mondadeiras haviam-se esforçado por arrancar as ervas ruins, tentando que a colheita valesse a pena, enquanto entoaram os seus cantos tristes e dolentes. Agora, os milhos, semeados nos fins de Março e primeiros dias de Abril, verdejavam os campos, os mais atrasados numa primeira volta para a sacha e os mais adiantados já em fase de “aterrar” para que as raízes adventícias encontrassem o alimento que podiam dar algum sentido aquele trabalho, feito de “terças”, num esforço quase sempre ingrato e de retorno mais que incerto. Mesmo assim, aqui e ali se ia ouvindo, arrancado lá bem do fundo da alma, para que tão penoso trabalho menos penoso se tornasse, o canto de quem daquele penoso viver se não podia libertar:
A Escola, com duas enormes salas, era insuficiente para acolher todas as Crianças da terra, que apenas poderiam começar a frequentá-la com sete anos completos no dia em que as aulas reabriam, a 7 de Outubro. Dois professores para cerca de uma centena de alunos nem era tarefa que se desejasse. Um bom número acabava por desistir e a percentagem de “chumbos” andava acima dos 30%. Não era raro ver, na Vila, rapazotes "a mudar a voz" e a fazer exame da 4ª. Classe, a caminho dos … 14 anos.
Nos campos não faltava que fazer, muito poucos trabalhando o seu próprio bocado, grande parte vivendo dos arrendamentos, e os restantes como jornaleiros das casas maiores ou dos rendeiros, numa exploração, até hoje não interrompida, do homem pelo homem.
As searas haviam deixado de “correr” pelos campos, no mês de Abril, empurradas pelos ventos suaves assemelhando-se a um mar verde a querer fugir para o terreno do vizinho e começavam a tomar o aspecto dourado, a indicar que o mês do S. João chegaria breve. Aqui e além, nos poucos trigais que se semeavam na nossa terra, um pouco mais atrasados que os centeios, as mondadeiras haviam-se esforçado por arrancar as ervas ruins, tentando que a colheita valesse a pena, enquanto entoaram os seus cantos tristes e dolentes. Agora, os milhos, semeados nos fins de Março e primeiros dias de Abril, verdejavam os campos, os mais atrasados numa primeira volta para a sacha e os mais adiantados já em fase de “aterrar” para que as raízes adventícias encontrassem o alimento que podiam dar algum sentido aquele trabalho, feito de “terças”, num esforço quase sempre ingrato e de retorno mais que incerto. Mesmo assim, aqui e ali se ia ouvindo, arrancado lá bem do fundo da alma, para que tão penoso trabalho menos penoso se tornasse, o canto de quem daquele penoso viver se não podia libertar:
- Mondadeiras do meu milho,
Mondai o meu milho bem.
Não olheis para o caminho,
Que a merenda já lá vem.
Aqui e além, nos sítios mais frescos e húmidos, pois rega não haveria, os ganhões e as suas juntas de vacas, sob a canga e puxando a charrua e a grade, iam semeando aqueles terrenos com alguma garantia de que o feijão pequeno mataria muita fome, no duro Inverno, que haveria de chegar, andasse por onde andasse. Ao longo da Ribeira e em volta dos poços que a ladeavam, pois o “sangue” daquelas terras passava muito por ali, apareciam as hortas a merecer todo o cuidado para que as alfaces, o feijão catarino e o feijão manteiga, os tomateiros, os pimenteiros, os alhos, as cebolas, as melancias, os melões e as abóboras pudessem compensar, de algum modo, o esforço que de todos era exigido. De todos mesmo, velhos e novos, homens e mulheres, quase desde o nascer ao pôr-do-sol, de segunda a sábado, com a reconfortante sesta, na hora do maior calor, ali à sombra de uma oliveira ou de um sobreiro. Quase sempre... no chão.
As hortas eram regadas de manhã ou à tardinha, os feijoeiros e tomateiros encanados, a água tirada “à burra”, raro sendo ouvir-se uma nora no seu t'lem-t'lem, puxada por mansa jumenta, a percorrer quilómetros e quilómetros, de olhos tapados com um velho casaco, ao engano, sem sair do mesmo sítio.
Os batatais ocupavam uma parte significativa do terreno de regadio. Leiras e leirões. De vez em quando, o “mal-murcho”, hoje o bem conhecido míldio, fazia das suas e lá se podia “ir ao ar” o esforço de uma época, começando-se a ter o saber de que o cobre e a cal podiam alcançar efeitos benéficos na “cura” de tão nefasto azar. Também nas belas e viçosas vinhas, que alegravam os nossos campos, à volta das quais apareciam, na época, frondosos castanheiros. Pela primeira vez, com importação da batata de semente lá das Américas, se viram batatais destruídos pelo "escaravelho da batata" a que se acudiu com o famigerado DDT, o primeiro grande atentado ecológico a vitimar os nossos campos e as nossas culturas.
O Sol escorria para detrás da Serra para as Águas, quando uma parte da população regressava ao Povoado para uma ceia frugal e um descanso merecido e necessário. Havia quem ficasse a dormir lá pelos campos, em choças e cabanas, condições bem precárias, para um melhor aproveitamento do tempo, podendo até trabalhar-se à luz da… Lua ou logo de manhã, bem cedo, pela fresca. Mas, na Aldeia, os homens, acomodados os animais, passavam pelas tabernas e os rapazes aproveitavam para umas voltas pelas ruas, provocando aqui e ali o sossego dos mais pacatos, nada que não estivesse bem dentro dos limites de um respeito que não tinha discussão: o direito de cada um descansar, em paz. As mulheres, as crianças e as jovens não tinham grande hipótese de andar fora de casa, a não ser até ao lusco-fusco para irem buscar água à fonte, passarem pela casa dos avós, ou fazerem uma compra tardia, numa das "lojas", às escondidas da Guarda.
Durante a tarde de cada dia, quase todas as Crianças, ao saírem da Escola, se haviam dirigido aos locais de trabalho dos pais para ajudarem na guarda dos animais que pastavam, encaminharem a água nas regas, entreterem os mais pequeninos… ou nem que fosse para estarem “debaixo de olho”. Não era tempo para facilidades. Não havia drogados e os fumadores eram poucos. Quase nunca jovens. Gentes desta Aldeia na cadeia seria uma raridade e a Autoridade dos pais era aceite, quase sem discussão, para bem de miúdos e graúdos.
De segunda a sábado o tempo sucedia-se monótono, sempre igual, apenas aliviado na esperança do desejado domingo, bem diferente, o sétimo dia, aquele em que até Deus precisara de descansar.
À “última” para a Missa dominical, pelas 10 horas, como que regatos de água a confluírem para o lago, a população da Aldeia encaminhava-se para o adro da igreja, mulheres com blusa e saia de “ver a Deus”, lenço na cabeça e xaile pelos ombros e homens, barba feita, camisa e calças lavadas, casaco e chapéu, mesmo que o calor já se fizesse anunciar... A celebração não tinha aquele rigoroso cumprimento de horário dos nossos dias e começaria quando o velho padre José Maria chegasse. Vindo de Aldeia do Bispo, no seu manso e também velho cavalo.
À volta do templo, formavam-se grupos discutindo …. gados, sementeiras, hortas, pastos, searas, ajustavam-se negócios, combinavam-se trabalhos. Muitas das actividades eram feitas em acordos de “toma lá dá cá” ou “eu vou p’ra ti e tu vais p’ra mim”. A “moeda” que mais circulava era a força daqueles corpos secos e musculados, mãos calejadas, sempre prontas para mais um esforço.
Quando o sacerdote se preparava para subir ao altar, o sacristão dava um último toque de campainha para que os homens entrassem, uma vez que as mulheres já se haviam acomodado o melhor possível, apertadas e sentadas no chão, desfiando as contas do rosário. A celebração, em Latim, padre de costas para o Povo, que enchia o então pequeno templo, dava azo a que mais rosários fossem desfiados e a que os homens, lá no coro alto, fossem "passando pelas brasas" e só a homilia, o “sermão”, era ouvido e entendido com o agrado de alguns e o desagrado de muitos, pois “o padre está sempre a meter o nariz onde não é chamado…”
O jantar de pobres, pelo meio-dia, não era tão pobre como no resto da semana. A Família juntava-se à volta da mesa, se fosse caso de a haver disponível, normalmente na cozinha, acontecendo, nalguns lares, comerem todos da mesma vasilha, que podia ser um grande alguidar de barro. E era dia do feijão grande, do grão, uma talhada de farinheira ou de chouriça, um bocado de toucinho. Às vezes só um sabor a cebola sobre a pratada de feijão pequeno, azeite a fugir e umas azeitonas. Ou nem isso. Dizer “não gosto”, “não quero” ou “não me apetece” causaria tanta admiração como ouvir-se, hoje, “não gosto de gelado”, “não brinco com a consola” ou "não quero o telemóvel". À uma hora, a refeição estava despachada, muito mais vezes por defeito do que por virtude.
As hortas eram regadas de manhã ou à tardinha, os feijoeiros e tomateiros encanados, a água tirada “à burra”, raro sendo ouvir-se uma nora no seu t'lem-t'lem, puxada por mansa jumenta, a percorrer quilómetros e quilómetros, de olhos tapados com um velho casaco, ao engano, sem sair do mesmo sítio.
Os batatais ocupavam uma parte significativa do terreno de regadio. Leiras e leirões. De vez em quando, o “mal-murcho”, hoje o bem conhecido míldio, fazia das suas e lá se podia “ir ao ar” o esforço de uma época, começando-se a ter o saber de que o cobre e a cal podiam alcançar efeitos benéficos na “cura” de tão nefasto azar. Também nas belas e viçosas vinhas, que alegravam os nossos campos, à volta das quais apareciam, na época, frondosos castanheiros. Pela primeira vez, com importação da batata de semente lá das Américas, se viram batatais destruídos pelo "escaravelho da batata" a que se acudiu com o famigerado DDT, o primeiro grande atentado ecológico a vitimar os nossos campos e as nossas culturas.
O Sol escorria para detrás da Serra para as Águas, quando uma parte da população regressava ao Povoado para uma ceia frugal e um descanso merecido e necessário. Havia quem ficasse a dormir lá pelos campos, em choças e cabanas, condições bem precárias, para um melhor aproveitamento do tempo, podendo até trabalhar-se à luz da… Lua ou logo de manhã, bem cedo, pela fresca. Mas, na Aldeia, os homens, acomodados os animais, passavam pelas tabernas e os rapazes aproveitavam para umas voltas pelas ruas, provocando aqui e ali o sossego dos mais pacatos, nada que não estivesse bem dentro dos limites de um respeito que não tinha discussão: o direito de cada um descansar, em paz. As mulheres, as crianças e as jovens não tinham grande hipótese de andar fora de casa, a não ser até ao lusco-fusco para irem buscar água à fonte, passarem pela casa dos avós, ou fazerem uma compra tardia, numa das "lojas", às escondidas da Guarda.
Durante a tarde de cada dia, quase todas as Crianças, ao saírem da Escola, se haviam dirigido aos locais de trabalho dos pais para ajudarem na guarda dos animais que pastavam, encaminharem a água nas regas, entreterem os mais pequeninos… ou nem que fosse para estarem “debaixo de olho”. Não era tempo para facilidades. Não havia drogados e os fumadores eram poucos. Quase nunca jovens. Gentes desta Aldeia na cadeia seria uma raridade e a Autoridade dos pais era aceite, quase sem discussão, para bem de miúdos e graúdos.
De segunda a sábado o tempo sucedia-se monótono, sempre igual, apenas aliviado na esperança do desejado domingo, bem diferente, o sétimo dia, aquele em que até Deus precisara de descansar.
À “última” para a Missa dominical, pelas 10 horas, como que regatos de água a confluírem para o lago, a população da Aldeia encaminhava-se para o adro da igreja, mulheres com blusa e saia de “ver a Deus”, lenço na cabeça e xaile pelos ombros e homens, barba feita, camisa e calças lavadas, casaco e chapéu, mesmo que o calor já se fizesse anunciar... A celebração não tinha aquele rigoroso cumprimento de horário dos nossos dias e começaria quando o velho padre José Maria chegasse. Vindo de Aldeia do Bispo, no seu manso e também velho cavalo.
À volta do templo, formavam-se grupos discutindo …. gados, sementeiras, hortas, pastos, searas, ajustavam-se negócios, combinavam-se trabalhos. Muitas das actividades eram feitas em acordos de “toma lá dá cá” ou “eu vou p’ra ti e tu vais p’ra mim”. A “moeda” que mais circulava era a força daqueles corpos secos e musculados, mãos calejadas, sempre prontas para mais um esforço.
Quando o sacerdote se preparava para subir ao altar, o sacristão dava um último toque de campainha para que os homens entrassem, uma vez que as mulheres já se haviam acomodado o melhor possível, apertadas e sentadas no chão, desfiando as contas do rosário. A celebração, em Latim, padre de costas para o Povo, que enchia o então pequeno templo, dava azo a que mais rosários fossem desfiados e a que os homens, lá no coro alto, fossem "passando pelas brasas" e só a homilia, o “sermão”, era ouvido e entendido com o agrado de alguns e o desagrado de muitos, pois “o padre está sempre a meter o nariz onde não é chamado…”
O jantar de pobres, pelo meio-dia, não era tão pobre como no resto da semana. A Família juntava-se à volta da mesa, se fosse caso de a haver disponível, normalmente na cozinha, acontecendo, nalguns lares, comerem todos da mesma vasilha, que podia ser um grande alguidar de barro. E era dia do feijão grande, do grão, uma talhada de farinheira ou de chouriça, um bocado de toucinho. Às vezes só um sabor a cebola sobre a pratada de feijão pequeno, azeite a fugir e umas azeitonas. Ou nem isso. Dizer “não gosto”, “não quero” ou “não me apetece” causaria tanta admiração como ouvir-se, hoje, “não gosto de gelado”, “não brinco com a consola” ou "não quero o telemóvel". À uma hora, a refeição estava despachada, muito mais vezes por defeito do que por virtude.
Fotos in Infiernitum.com e em http://www.geocaching.com/, by Diogo112, com especial pedido de deferência.
5 comentários:
Nem sei...aqui só acrescentaria a salada de meruje e de rabaça que crescia nos lameiros verdejantes onde os animais pastavam!!
PARABÉNS em dobro!!! ADOREI
Salada de "maruja" e esparregado de "labaças" - cada terra com seu "nome"!!! Realmente... não se pode ter tudo. Mas lá que "marchavam, marchavam". E já!
Obrigado
Então saladas de meruge e rabaça, hoje dizem que não se podem comer, por causa das doenças, e uns "talos da nossa" não seriam bem vindos?
Prof. Serrano eu insisto mais uma vez, para quando o livro? Crónicas soltas da vida na Beira. Estou a ser metediça, mas que gostava de as ver publicadas, gostava. Já viu que são lidas com tanto prazer, por tanta gente. Então e os que não têm este instrumento? Olhe que bela lembrança de Natal para tanta gente. Esta é a minha maneira de lhe dizer como gosto de o ler.
professor,o comentário foi feito, não sei se consegui enviá-lo.Se não voltarei depois!
Muita Luz na redação!
Bom Dia Professor! Relendo o seu texto lembrei-me que a primeira es cola que freqüentei ficava em Bela Floresta município de Pereira Barreto a oitocentros metros da fazenda onde morava.Já estava em idade escolar (sete anos) mas perdi a inscriçõ não colégio para onde iria. Atendendo meu desejo minha mãe enviou-me junto com os filhos dos empregados. Nesta sala abrigava alunas da primeira série à quarta. A professora escreveu a palavra "professora" e eu tentei desenhá-la. Um susto enorme, ficando travada. Não voltei mais! Só no outro ano, interna em outra cidade! Obrigada pelo resgate da infância! O Tempo passa,mas está sempre voltando no doce encontro da família humana! Obrigada irmão!
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