4. A Casa de Trabalho
Jovens nascidas em meio rural profundo e criadas no campo, podiam fazer toda a sua vida sem horizonte que fosse para além de Monsanto ou de Penamacor. Grande parte das nossas adolescentes não frequentava a Escola e, assim, nasciam como “bichos” e quase como “bichos” cresciam e viviam. O seu “saber” não poderia estar muito além daquilo que, de suas mães, avós e vizinhas tinham aprendido. Portanto, uma educação e instrução reduzidas ao mínimo. Mas não quero confundir educação e instrução, pois educação não faltava, à nossa maneira.
Nesse tempo, a nossa Aldeia dispunha de um “elite” burguesa ligada à exploração dos campos e dos que neles suavam e calejavam de sol a sol. Vou dar mais relevo aos jovens filhos da Casa Grande. Haviam frequentado outras escolas, “tocavam piano e falavam francês”. De regresso ao lar paterno, à espera de casamento que lhes abrisse as portas de um mundo que se lhes descortinara, sensibilidade bem mais aberta que a dos seus progenitores na relação com os seus desafortunados conterrâneos, assentaram que era possível dar algo de melhor e diferente, um pouco de sonho e de magia à nossa gente nova. Assim, nasce a Casa de Trabalho, local de formação e doutrinação. Destinada exclusivamente a ser frequentada pelas nossas jovens, ali se ensinou e se aprendeu a falar melhor, a cantar, a representar, a bordar, a dançar, a "saber estar"... Como na UNIÃO ali se fez teatro de variedades. Numa rivalidade nem sempre sadia, chegou a haver estreia de espetáculos, em simultâneo, na mesma noite. Esclarece-se que a União acolhia os rapazes e a Casa de Trabalho recebia as moças.
Num tempo em que os bailes eram frequentes, a incompatibilidade entre as duas situações várias vezes foi notória, dando origem a questões entre familiares e namorados.
No desenvolvimento das atividades da Casa de Trabalho notabiliza-se, de novo, a Senhora D. Gervásia, como era de todos conhecida e por todos assim tratada, e a das Senhoras/Meninas das casas maiores.
O rigor na gestão desta Casa de Trabalho era de tal maneira que, no fim das atividades, pela noite dentro, cada jovem era entregue, pessoalmente, aos seus pais, em sua casa. Não fosse “o diabo tecê-las”…
Outros tempos, outros educadores, outras responsabilidades. Do oitenta para… o oito!
5. Os comediantes
5. Os comediantes
Apareciam, de vez em quando. Artistas pobres para gente pobre. Quase sempre um grupo familiar, palmilhando caminhos e estradas, de terra em terra, em busca de quem com fome lhes matasse a fome que traziam. Na Aldeia, havia sempre uma loja ou um palheiro a que se acolhessem. As “comédias” apresentavam-se quase sempre ao ar livre, roda de gente sentada no chão ou de pé, à luz de lampiões, lanternas e candeeiros. O “Petromax” já era de gente mais “rica”. No largo da Fonte ou no Largo do Pereiro. Aqui, a loja da Ti Emília Cartola, coração grande e generoso, servia-lhes de poiso e camarim. As habilidades de uma contorcionista menina, ossos a querer saltar da pele, ou uma rapariguinha, quase envergonhada de mostrar as pernas àqueles olhos gulosos, equilibrista numa tábua sobre um rolo em cima de uma mesa emprestada. O rapaz malabarista com as bolas ou archotes a "espantar" a nossa gente. A mãe e o pai a fazerem de quase tudo: truques de magia que soltavam ohs!!! de espanto, e o mais apreciado de todos os números, o dos palhaços, com brincadeiras divertidas alguma piada dirigida a membros da população – a informação era mais discreta do que a dos nossos SI's… - e com números simples e divertidos, que se fixavam nas memórias dos populares, por muito tempo:
- Ó Zé B’roa, ó Zé B’roa, olha o pau, olha a moca!!!
Este e outros motes seriam repetidos pela garotada e pelos adultos, até à exaustão.
Também por esta via chegavam à Aldeia as canções da cidade. Sem acompanhamento musical ou com ele. Trompete, guitarra, realejo. Ou a solo. Com os palhaços…
Chegava a hora de receber o pagamento pelo trabalho apresentado. Chapéu na mão, quase sempre as Crianças, iam passando pela assistência, em roda, donde pingavam pequenas moedas, duas batatas, uma mancheia de feijões, um naco de pão, uma cebola, um bocado de queijo ou de toucinho… Alguns a fugirem das suas “responsabilidades” e a não contribuírem, trocando a sua condição de explorados pela de exploradores. Nem sempre tinham de seu para dar…
6. Os cantadores ambulantes
Apareciam muito nos mercados e feiras da Vila. Cá ao fundo, junto à loja do senhor Alberto, onde toda a gente “tinha” da passar. Ou no passeio em frente do jardim.
Ao som de uma velha sanfona, da viola, da guitarra, do bandolim, quase sempre desafinados, iam cantando e tentando vender as letras das canções estampadas em papel com fotografias difíceis de reconhecer dos nossos cantantes da época.
Muitas vezes, as músicas eram adaptadas a quadras que recontavam tragédias da nossa gente. “Uma rapariga solteira, que andava na malhadeira…” e que lá caiu. Morte certa, cantada de terra em terra. Por este meio podiam chegar-nos também músicas de sucesso lá na Capital e que, assim, passavam de boca em boca, sem grande preocupação de fidelidade ao original.
7. A Imprensa
Vivia-se quase na ignorância do “mundo longínquo” – que podia ser para lá de Castelo Branco As notícias chegavam pelos jornais - quase só interessavam as das guerras próximas, também a fazerem sofrer o nosso Povo - e, como as cantigas, iam de porta em porta, de boca em boca. Chegavam a Aldeia, diariamente, em exemplares do “Diário de Notícias” e de “O Século”.
Os dois diários eram recebidos pelos correspondentes, José Lopes Fixe e Pedro José do Amaral, em troca de eventual serviço a prestar com o envio de notícias locais, o que raramente acontecia. Chegavam pelo correio de Lisboa, de comboio até à Fatela; de camioneta, até Penamacor. Transportados dentro da “mala” de correio até Aldeia pela Ti Rosa Chora, fizesse frio ou calor, chovesse ou com “bom tempo”, a pé ou atrás da sua burra, todos os dias, sem falhar. Uma pessoa a lembrar aqui. Qualquer recado para a Vila ela aviava. Educada, simpática e meiga para todos, com ela não havia risco de o correio não chegar ou de os vales serem roubados. Uma Mulher!
Os jornais diários apareciam um ou dois dias após a sua publicação. Noticia rara que fosse enviada de Aldeia para as redações só dela se saberia, entre nós, 8 ou 10 dias depois. Os destinatários dos jornais informavam-se e informavam. Quase sempre coisas da Guerra. Da Espanha. Da Grande. E das sequelas... O "papel de jornal" impresso com tinta deixava as mãos bem sujas. Serviam depois para a garotada “forrar os livros”, trabalho pouco eficaz, dada a natureza do material empregado. Nesta complicada tarefa do manter limpos os livros, alguns dos gaiatos iam despertando a sua curiosidade pela leitura fora dos livros escolares.
O “Almanaque de S. Miguel”, editado pela Igreja, entrava em muitas das nossas casas. Para além do calendário anual com os dias e nomes dos Santos, ali poderia ser encontrada informação útil para a agricultura, datas de feiras e mercados, notícias de carácter geral, conselhos, adivinhas e pequenas anedotas. Apreciadas eram a segunda e penúltima páginas, numa se fazendo um “prognóstico” do ano que começava e na outra o “juízo da ano” que acabava.
“O Amigo da Verdade”, mensário católico ainda hoje editado na Guarda, nas suas quatro página informava a paróquia da vida da igreja diocesana e universal, com um ou outro artigo de formação e estudo. Num tempo bem “fechado” eram publicações ortodoxas e conservadoras.
Na passagem para os anos 60, o transistor e a TV a chegarem e a guerra do Ultramar ali tão perto, por iniciativa do Pároco, José Martins Gonçalves Pedro, um Padre para quem os sinos do Vaticano II já tocavam, surge, entre nós um pequeno jornal, "Aldeias Unidas", destinado não a trazer, mas a levar notícias das Aldeias para os nossos migrantes internos e na Europa. A debandada começara. Até não haver mais quem debandasse.
Os nossos jovens avançavam para outros horizontes, outras escolas e os sonhos começavam. É um período em que a gente moça mantém a página do Concelho de Penamacor no semanário "Notícias da Covilhã", editada com regularidade. O direito a informar e a informar-se começa a dar outro sentido à vida da Aldeia, das aldeias. Os estudantes, com destaque para os seminaristas, e os filhos dos migrantes haviam de abrir estradas para um mundo novo. Não tenho a certeza, hoje, de que fosse melhor.
Na passagem para os anos 60, o transistor e a TV a chegarem e a guerra do Ultramar ali tão perto, por iniciativa do Pároco, José Martins Gonçalves Pedro, um Padre para quem os sinos do Vaticano II já tocavam, surge, entre nós um pequeno jornal, "Aldeias Unidas", destinado não a trazer, mas a levar notícias das Aldeias para os nossos migrantes internos e na Europa. A debandada começara. Até não haver mais quem debandasse.
Os nossos jovens avançavam para outros horizontes, outras escolas e os sonhos começavam. É um período em que a gente moça mantém a página do Concelho de Penamacor no semanário "Notícias da Covilhã", editada com regularidade. O direito a informar e a informar-se começa a dar outro sentido à vida da Aldeia, das aldeias. Os estudantes, com destaque para os seminaristas, e os filhos dos migrantes haviam de abrir estradas para um mundo novo. Não tenho a certeza, hoje, de que fosse melhor.
8. Os tocadores de concertina:
Fixos eram os bailes do madeiro, do fim da colheita da azeitona, do "dar o nome" ou do recenseamento militar e dos das "sortes", alguns já aqui contados. Também os das festas populares e das religiosas. Muitos ao ar livre. Épocas havia em que os bailes eram quase semanais. Nós tínhamos a Banda; aldeias em roda tinham o seu tocador. E até dois e três. Por aqui, os mais conhecidos e assíduos eram o Zé Manel e o Zé Fonseca, ambos da vizinha freguesia de Aranhas. Também o Silva, o Alziro, o Castilho... de mais longe.
Que tipo de cultura podemos tirar daqui? A dança, o canto, a música. “A cultura é aquilo que fica depois de esquecermos o que aprendemos”, escreveu alguém. E, no ouvido, na alma, no corpo, muita coisa ficou. Também as cantigas da cidade nos chegavam com estes homens. Assisti a tentativas dos nossos conterrâneos para cantarem com acompanhamento da concertina. Tínhamos dançadores exímios, à nossa moda. O meu Pai e a minha Mãe dançavam tão bem!!! Os jovens casais dançavam e as muitas crianças, de volta, a verem e a “ensaiarem”. Os bailes ocorriam na sede da União, em casas particulares, no alcatrão da estrada e nos largos. Também pelos tocadores vinha informação do que se passava nas localidades por onde passavam, nos arredores.
Sem conseguir ser exaustivo, não é o objetivo, fica para os leitores que tiveram fôlego para me acompanhar, a imagem do que se viveu entre nós num tempo em que a Aldeia palpitava de vida, ruído, música, tradições, trabalhos muitos e penosos. E onde muito se sonhava com melhores dias, melhores vidas. E termino sem ter a certeza de que tal nos aconteceu. Da Aldeia fizemos aquilo que ela é, hoje. Um "deserto"... uma grande saudade!
Texto composto a partir das memórias do autor. As duas primeiras fotos são do autor e as quatro restantes foram retiradas da internet.
Em homenagem à nossa maior acordeonista "tirei" do Youtube.