Tinha acabado a tropa?!
Agosto de 1965. A primeira fase da recruta, com o “juramento de
Bandeira” lá no “hotel” das Caldas da Rainha era já uma saudade e chegáramos a Tavira ainda “revoltados” de
não nos ter sido dado o fim de semana de folga com que tanto sonháramos e que
era quase obrigatório, no final de cada ciclo de instrução. “Não, ninguém vai a
casa, isto agora é tropa a valer”! O CMDT poderia ter tido problemas com a
mulher nessa noite, assim pensava a rapaziada sempre descomprometida.
Encatrafiados, à molhada, num comboio de muitas e velhas carruagens,
mesmo assim insuficientes para acomodar tantos passageiros, pela tarde – os
movimentos da “tropa” eram feitos de noite, por motivos cada vez mais óbvios –
aí vamos nós a caminho de umas “merecidas férias”, no Algarve, então uma região
pobre e quase desconhecida de portugueses e estrangeiros. Eram poucas e
fugidias as pessoas que se cruzavam com aquela massa humana, fardada a
preceito, a marcar passo, na baixa de Lisboa, da estação do Rossio à do
Terreiro do Paço, estação Sul e Sueste, de onde se haviam de acomodar, “em molhada”, no barco da CP que os
deixaria de costas para a velha capital do Império, navegando para a “outra
margem”. No percurso fluvial, avistavam-se, confusamente, na escuridão da noite
aliviada pelas luzes de Lisboa e Almada, os gigantescos pilares que haviam de
suportar a nova e tão falada ponte a inaugurar dali a um ano.
Cortando o negrume da noite avançada,
a potente locomotiva diesel, uma novidade nas nossas estradas de ferro,
ia galgando milhas e milhas pela vasta campina alentejana, em direcção ao Sul, rebocando velhas e desconfortáveis carruagens
superlotadas com centenas de jovens recrutas acomodados da melhor maneira que
podiam em bancos de madeira ou no chão, iluminados por fracas e poucas lâmpadas
acesas. O calor daquele quente mês de Agosto entrava pelas janelas escancaradas
e, enquanto alguns dormitavam, a maior parte, sem pregar olho, falava, jogava
ou pensava no sem presente sombrio e num futuro próximo angustiante. O
desconhecido estava à sua espera.
A um canto, acabrunhado, António revia o filme dos últimos dias
passados lá no “hotel” das Caldas, o RI 5.
O “juramento de bandeira” na vasta esplanada do quartel, o rancho
melhorado, a tarde livre, depois da grande decepção pela notícia de que, contra
o habitual, não havia fim-de-semana prolongado para ninguém. Nem prolongado nem
curto, “surpresas” com que “domavam” aquela juventude inquieta e generosa.
No dia seguinte ao do juramento,
afixadas as listas de especialidades e colocação, formação de novas unidades
por destinos, dando pulos de satisfação com a “sorte” que lhe calhara: analista
de informação transmissões, lá no BRT, soube depois, ali na Trafaria, mesmo à
beirinha de Lisboa. Que só seria muito tempo depois. Era "preciso "trabalhar" mais o corpo e a alma...
Cabendo à maior parte ter por “abrigo” o CISMI, lá bem no Sul de
Portugal. quartel de má fama pela dureza dos instrutores que, como havia de ser
provado, tinham por missão preparar para a guerra, fazer a guerra e sobreviver. Uma Unidade
especializada na formação de gente para combater, o Centro de Instrução de
Sargentos Milicianos de Infantaria. E lá iam parar os futuros sargentos da
Infantaria e especialidades de apoio: das Transmissões, das Minas e Armadilhas,
dos Morteiros... Ficariam depois a saber que haviam decidido acrescentar à sua
formação e treino mais três de Instrução geral para preparar aqueles que seriam
a espinha do Exército combatente em África, em guerras cada vez mais difíceis e
desastrosas, os Sargentos Milicianos.
Deitados nos beliches das velhas camaratas daquele velho quartel, os que iam
abrindo os olhos nem queriam acreditar. Acabara a tropa? Estremunhados, olhavam
para os relógios. Seis e meia, a hora do toque de alvorada, tempo de levantar,
preparar, rapidamente, barba bem rapadinha; formar para o café seria logo a seguir e logo depois a formatura para o dia de instrução militar… Sempre fora, assim, na
rotina dos últimos três meses. “I can’t stop loving you” com Ray Charles
ouvia-se, distinta e "carinhosamente".
Então… não estou na tropa; a tropa
acabou!!!! E a tentação de dar a volta para o outro lado e continuar a dormir
foi pronta!
Nisto, feito pesadelo, um vozeirão: “Olá, "meninos", queriam caminha, hein?! Toca a levantar que aqui a
tropa não é de brincadeira” ! Os mimadinhos das Caldas!!! Agora é que vão saber o
que é instrução. Toca a levantar, rápido!!!”, gritou o sargento que, soubemos depois, ser o Loureiro, lá de Chaves.
O sono e o sonho foram-se, num instante!
Mas com o Ray Charles continuou, todos os dias, por três meses, às seis
horas e meia. Em ponto.
I CAN STOP LOVING YOU!!!
1 comentário:
Tropecei neste blogue e gostei muito. Grande abraço. Parabéns.
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