segunda-feira, setembro 15, 2008

A promessa…
A Ti’ Joaquina Rosa tinha já muitos, muitos anos, quando eu, muito criança, brincava, ali, na calçada do Largo do Pereiro, “à sombra” da minha avó Emília, enquanto os meus pais lidavam nos afazeres do campo. Era uma figura castiça, com fama e proveito de uma inteligência fora do normal, “danada para o negócio”, quase impossível de se deixar enganar. “Ladina como uma raposa” – dizia-se. Era conhecida na Aldeia e por toda a redondeza, andando de terra em terra, com o burro carregado de loiças de barro, raramente o poupando ao peso do seu corpo bem avantajado. Eram numerosas as histórias que se contavam da sua sagacidade, algumas ainda passadas de boca em boca até aos que agora são contemporâneos dos seus bisnetos. A maior parte das lendas conhecidas diz respeito à sua enorme apetência pela boa comida E nisto tenho de lhe gabar o bom gosto
Ora, no primeiro fim de semana deste mês, de muitas emoções e memórias, abraços para aqui e conversas para ali, veio à baila o meu passeio até à Senhora da Póvoa. Logo uma querida amiga de infância se havia de recordar de uma das muitas “aventuras” da Ti’ Joaquina Rosa.
No meio de gargalhadas e boa disposição as coisas ter-se-iam passado mais ou menos assim:
Ainda o século passado era menino e nenhum de nós tinha nascido, já a festa de Nossa Senhora da Póvoa dava brado por toda a Beira Baixa e até mais longe. Na parte Sul do nosso Concelho, era mesmo um dos poucos e fortes pontos de referência com o Norte, a par da “Terra Fria”, onde se iam fazer as ceifas e buscar sementes para renovar as culturas e tentar conseguir melhores colheitas. Mas vamos à Ti’ Joaquina Rosa, antes que ela nos escape.
Chegara a Primavera, os aleluias pascais já tinham ficado para trás e o mês de Abril cedera, no movimento perpétuo da Terra, lugar ao mês de Maio.
- Ó Emília, tenho vontade de ir à Senhora da Póvoa. Mas a merenda está-me a fazer confusão, pois lá em casa as farturas não são nenhumas…
- Ó Joaquina, tu nunca paras em casa, andas sempre no teu negócio. Que vais tu “cheirar” à Senhora da Póvoa??? Também cá temos a Senhora da Graça…
- Ó Emília, tenho mesmo de ir. Fiz uma promessa a Nossa Senhora…
- Estás sempre com as tuas… Que promessa foi, desta vez?
- Olha, prometi a Nossa Senhora estar lá no seu dia e comer da melhor merenda que se encontre no arraial…
- Tu estás boa do tino? Com a filharada que tens e com negócio que pouco dá, não te vejo maneira de comeres da “melhor merenda da festa”.
- Ando cá com ideias. À festa vou. A merenda também se há-de arranjar!
O tempo passou rápido, conversas de festa mais não houve.
Para espanto da minha avó materna, na segunda feira do Espírito Santo daquele tão longínquo ano, não viu a Ti’ Joaquina Rosa. Não ligou importância ao facto, dado que era normal ela sair, com o seu burro, alta madrugada, para efectuar o pequeno negócio a que se dedicava, tantas vezes trocando pratos, tigelas, jarros… por feijão, milho, centeio ou o que houvesse, pois dinheiro é que não abundava.
Já a semana ia alta, quando se reencontraram.
- Ó Joaquina, nem te tenho visto. Por onde andaste?
- Não te falei que tinha uma promessa à Senhora da Póvoa? Fui na segunda feira…
- Ora, ora. De burro lá foste?! Mas não tinhas falado em “comer a melhor merenda”… Não me cheirou a nada…
- Olha, Emília, essa foi a parte mais fácil…
- Fácil?! Como podes dizer uma coisas dessas, mulher? Não troces da miséria…
- Então, ouve-me com atenção. Levantei-me muito cedo, aparelhei o burro, a lua deu um jeitinho e aí vou eu. Chegada a hora da Missa, lá estava eu no meio daquela gente toda…
- Mas a merenda, a merenda?!
- Espera aí, que a merenda já aparece. Assisti à Missa, fui na procissão e não me esquecia de ir rezando “minha Senhora da Póvoa ajudai-me a cumprir a promessa”. Já viste como é. Acabada a parte religiosa, foi um estender de mantas e toalhas por cima daquela erva toda. Aproximei-me de cada família, cumprimentava “Boa tarde!!!!” “É servida?” diziam-me, simpáticos, “ Por enquanto, não, obrigada; tenho uma promessa a Nossa Senhora de comer da melhor merenda; pode ser que cá volte; até já!” Ó Emília, tu não vais acreditar, mas TODOS me disseram que ficavam à espera, com um sorriso.
- E depois? E depois? – questionou a minha avó, mais que conhecedora das artimanhas da vizinha, mas ansiosa.
- Tem calma, que vais saber o resto. Dei volta ao arraial, fiz a minha apresentação, à medida que ia passando, e ia deitando o olho. Quando já tinha visto o suficiente, voltei àquela que me agradou mais e apresentei-me “Há pouco convidaram-me para comer da vossa merenda, eu disse que tinha promessa de comer da melhor que cá estivesse; a vossa é, sem dúvida, a melhor merenda deste arraial, aceito o vosso convite”.
- Ó Rosa, é preciso descaramento. Que grande lata!!! – exclamou a minha avó indignada.
-Ó Emília!!! Havias de ver a cara de satisfação com que me receberam!!! Fui mais que mimada. Afinal, graças a mim, ficaram a saber que tinham a melhor merenda de todo o arraial de Nossa Senhora da Póvoa. Olha que ainda me podiam ter dado algum para o caminho…
- Francamente, Joaquina, francamente! Que descaramento!!! – murmurava, quase incrédula, a minha avó…

Nota:
Acho que a Ti’ Mari’ Rosa tinha razão: hoje, os nossos “provadores” fazem-se pagar “a peso de ouro”; estava avançada para a sua época.

1 comentário:

Em Certas Fases - Frases disse...

Antonio,
Você é um cronista? Uauuuu!!! E não me conta. Aproveita para escrever agora mais histórias, já que está aposentado. Entre uma viagem e outra, um bloquinho de anotações no bolso, ou mesmo um laptop. Vai ser uma delicia saber dessas proezas.