domingo, dezembro 26, 2010

Dia da Família, da Sagrada Família

Carta aos Colossenses 3,12-21.
Como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos, pois, de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se alguém tiver razão de queixa contra outro. Tal como o Senhor vos perdoou, fazei-o vós também. E, acima de tudo isto, revesti-vos do amor, que é o laço da perfeição. Reine nos vossos corações a paz de Cristo, à qual fostes chamados num só corpo. E sede agradecidos. A palavra de Cristo habite em vós com toda a sua riqueza: ensinai-vos e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria; cantai a Deus, nos vossos corações, o vosso reconhecimento, com salmos, hinos e cânticos inspirados. E tudo quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças por Ele a Deus Pai. Esposas, sede submissas aos maridos, como convém no Senhor. Maridos, amai as esposas e não vos exaspereis contra elas. Filhos, obedecei em tudo aos pais, porque isso é agradável no Senhor. Pais, não irriteis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo.

Tomás, dois aninhos

Desde o Verão decidíramos, os Avós, que o dia 12 de Dezembro seria passado na companhia do nosso Tomás, nos seus dois aninhos. Deus quis que assim fosse. Lisboa . Colónia, de avião, faz-se em menos de 3 horas de vôo. Íamos apreensivos, pois o Inverno, por aquelas bandas, não é o mesmo que cá pelo Sul da Europa. Mas, "peito às balas", aterrámos, já noite dentro, nas margens do Reno.
Uma festa. Os contactos via Skype são uma forma de manter vida a memória dos que lhe querem bem. Beijos e abraços. Colinho! Que bom! Como se tivéssemos estado juntos nessa manhã.
Depois as horas de convívio voaram, na sala bem confortável, sentados na alcatifa . Brincadeira e mais brincadeira. Meiguices e mais meiguices. É uma Criança muito doce, o nosso Tomás!
O Domingo festivo, a chegada dos Amiguinhos alemães, pela tarde, o convívio, os parabéns, as palmas foram-se num instante. Aí estavam os dois aninhos completos. Demos e recebemos. De coração para coração.
Aquela ida aos mercadinhos de Natal,  em Colónia, foi uma aventura bem atrevida. Frio de rachar, vários graus negativos, as orelhas quase a congelarem, ali junto da bela e famosa catedral. No ar, mil cheiros de doces e bebidas, as canecas de vinho quente, milhares e milhares de luzes a darem brilho na noite escura. Um alívio regressar e entrar no conforto da casa dos nossos Filhos!
Ainda era noite quando, na madrugada do dia 15, nos começámos a preparar para o regresso. Corações apertados, sorrisos a custo.
 A viagem de regresso para o aeroporto fez-se através de uma negra estrada rodeada de um manto branco quase sem fim. Nevara abundantemente e a apreensão era agora justificada com factos: este Inverno não estava - não está! - para brincadeiras. Por oposição à chegada... a despedida é sempre triste. Nunca nos custou tanto como desta vez. O carinho dos Filhos, os mimos do Neto, do nosso Tomás, já estavam a fazer-nos falta, mesmo ali ao pé deles.
A custo foi transposta a passagem que nos havia de afastar. Por um tempo. Fisicamente, não em espírito que, mesmo querendo ser forte, faz unidade com a fraca carne.
Flocos de neve enbranqueceram ainda mais os cabelos da Avó quando, de semblante triste, subia as escadas que os levaram ao interior da aeronave.
Três horas depois, as margens do Tejo ali estavam, sob o Sol brilhante. Lá de cima é que nos apercebemos da razão por que o Interior está a desertificar: a Grande Lisboa com todas as suas grandezas e misérias - casas, muitas casas e mais casas.
Até breve?!

quinta-feira, novembro 18, 2010

A Bíblia para os dias de hoje?!

Evangelho segundo S. Lucas 19,1-10.
Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.» Jesus disse-lhe: «Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.»

domingo, outubro 31, 2010

Medos na Aldeia 3

A Trovoada
Sob o calor sufocante de final do mês de Julho, as malhas estavam feitas, as palhas arrecadadas, as rendas pagas e as arcas e arcazes dos que tanto haviam trabalhado e suado as camisas de cotim, naquele ano, ficaram de maneira a alegrar o coração. O alimento dos filhos estava garantido.
 Para as sementeiras… no Outono, logo se veria...
As terras dos milheirais, sachados e aterrados e as do feijão pequeno suspiravam por água como de pão ansiavam as bocas dos pobres. Dias e dias de calor intenso e nem uma nuvem que escondesse aquele sol abrasador, que aliviasse aquele ar quente que ardia as gargantas e secava os pulmões, respiração ofegante.
Pelas festas de S. João e de S. Pedro, alguns orvalhos e umas poucas chuvas ainda trouxeram um alento àquela vida que brotava da terra, mas nada que pudesse garantir colheita capaz de “tirar a barriga de misérias”.
Também a Padroeira, Santa Maria Madalena, era amiguinha de trazer aquela chuva bem chovida por que todos suspiravam. Mas haviam passado e nada… e os renovos, vergados ao peso daquele calor tão intenso, definhavam.
Ao jantar, comera-se da farta sopa camponesa, do pão e do queijo, à sombra dos eucaliptos, lá no alto do pequeno outeiro, declives suaves, a dar para a Ribeira. Uma soberba paisagem enchia os olhos e acalmava a alma. Monsanto, Aranhas, Salvador, Medelim ali em volta, até onde a vista podia alcançar. Com as altas temperaturas, o ar tremia como se estivesse com maleitas. Sob calor intenso, aproveitaram para gozar da hora da sesta num bem merecido e pouco reparador sono, em cama improvisada sobre a terra…
Primeiro como num sopro, depois a agitar as folhas das frondosas árvores uma brisa suave e refrescante começou a correr, vinda do Sul, da campina de Idanha, e lá muito ao longe as nuvens começaram a aparecer e a deslizar sempre subindo, subindo.
Não tardou que se ouvisse, ainda longe, o ribombar dos primeiros trovões. Depois, lenta e firmemente, com ruído e com estrondo, o céu azul foi desaparecendo e as nuvens negras, ameaçadoras, ocuparam todo o espaço.
As primeiras gotas da chuva cada vez mais intensa foram abafando o pó da terra sequiosa. No ar, começou a sentir-se o agradável odor do chão molhado. Entre relâmpagos e trovões, fazia-se a contagem para calcular a distância e, de repente, foi como se o céu se abrisse e a água desatou a cair de aluvião.
Refugiados debaixo do telhado da modesta habitação, os camponeses que, ainda há pouco, bendiziam a chuva como a salvação de toda uma colheita, fechavam os olhos à luz dos relâmpagos e estremeciam com o ruído ensurdecedor dos trovões, as crianças tapando os ouvidos. As telhas não suportavam todo o caudal e aqui e ali as goteiras caíam dentro do acanhado edifício. O largo em frente estava num “lago e, pelas encostas, as torrentes de águas desenfreadas traçavam sulcos e arrancavam as plantas. Lá, na “baixa”, em poucos minutos apareceu o “mar”. Tudo coberto de água.
Nesta altura, como em tantos outras, a Fé tomou o seu lugar: “Santa Bárbara bendita nos acuda!”
A chuvada era intensa, trovões e relâmpagos não paravam. As faíscas descarregavam em direcção à terra, em sulcos de luz fascinantes e medonhos. Splash… splash! Catra-pum…pum…puumm. E mais um, e outro, ainda outro, o mundo ia acabar. O altivo sobreiro, ali a pouca distância, que durante anos crescera na beira da caminho, atingido por uma poderosa descarga eléctrica, rachou de alto a baixo. Num abrir e fechar de olhos. Nem isso.
Os camponeses caem de joelhos.
- Nossa Senhora da Graça, valei-nos! Santa Maria Madalena, rogai por nós! Santíssimo Sacramento, tende piedade de nós. Almas benditas do Purgatório, rogai por nós!
A chuva torrencial não para da cair. Os trovões e relâmpagos atormentam olhos e ouvidos. Splash… splash… splash…. Catrapum…. Catrapum…. Pum…. Pummmm….. puuummm!!!
Regatos e ribeiros, valetas e barrocas, começaram a transbordar. A Ribeira, lá ao fundo, devia estar pelo meio, “de mar a monte!” Tanta chuva há muito que se não via. E não havia maneira de abrandar. Sempre mais e mais. Relâmpagos, raios em direcção à terra, iluminavam a tarde que se fizera noite. O ribombar dos trovões atemorizava as gentes, que se sentiam ainda mais pequeninas neste afirmar de força da Natureza.
Mesmo em frente, espreitando pela porta entreaberta, o olhar de águia do Pai, mais corajoso que curiosos, ia informando o que conseguia ver do espectáculo que enchia todo o horizonte:
- O Ribeiro do Forninho está já a deitar fora. A Ribeira deve ir de “entulho”. Olha, Ribeiro começou a pular para a horta do guarda-rios…
- Santa Bárbara Bendita, levai esta trovoada lá p’ràqueles matos maninhos, onde não haja mulher com menino nem vaca com bezerrinho… Aflita cheguei à Cruz, aflita cheguei a vós, Senhora do Carmo rogai por nós! – rezava a Mãe com os garotos agarrados a ela.
- O muro da horta do guarda-rios não vai resistir. A água está e pular. Olha…. já foi o muro e a horta…. A Ribeira acaba de pular para dentro da nossa Tapada. Sorte foi termos arrancado as batatas… O resto… logo se vê… - informava o Pai conformado e calmo.
- Senhora do Carmo, rogai por nós, Senhora da Graça, valei-nos! Senhor Jesus, tende piedade. Tanta falta que a água cá fazia e agora uma coisa assim!!!! Santa Bárbara bendita, levai esta trovoada… Sagrado Coração de Jesus, nós temos confiança em Vós! Avé Maria, cheia de graça...
A chuva começou a abrandar. Os relâmpagos e trovões mais esparsos. Os campos alagados, quase não deixando ver as plantas. Os pastores, encharcados dos pés às cabeça, mesmo recolhidos na choça, muito a custo mantiveram o rebanho unido, dentro do bardo, animais também aterrorizados e encharcados. O caminho transformara-se num ribeiro com a água da enxurrada arrastando pedras e terras.
O tempo fora passando, lentamente, como sempre em ocasiões de aflição. A trovoada amainara. Da capoeira saíram as galinhas com as penas a escorrer água, aventurando-se a caminhar sob a chuva que ainda caía. Os cães voltaram do palheiro, ainda amedrontados, sacudindo a água do pêlo. Adultos e crianças vão retomando a normalidade das conversas. Pai e mãe deitam contas à vida.
- Com estará a horta?! E o melancial?! – interrogou-se o pai, em voz alta. - Olha se não temos arrecadado as batatas… Podia ser pior… - acrescentou, tentando sempre olhar as situações pelo seu lado bom.
- Ah! O milho que se salvar é que vai agradecer tanta água… - acrescentou a mãe, procurando tirar proveito de uma situação que sempre a assustava. Havia um novo “podia ser pior”... Perdurava na memória da Aldeia a nunca esquecida “trovoada do Carriço”, durante uma noite, anos atrás, em que a Ribeira transbordara, já a caminho de Medelim, e levara o rebanho, o Carriço e a família, a dormir na choça, para nunca mais…
A tempestade, lentamente, afastou-se em direcção a Norte. As carregadas nuvens escuras deram lugar a outras que foram clareando a tarde que caminhava para o fim. Lagos de azul no céu e o sol ainda a espreitar a terra agora farta e cheia de esperança. Mesmo na calamidade que levou muros e hortas. A água… esperança e desespero da nossa terra, chegara. Uma bênção de meter medo.
 


sábado, outubro 30, 2010

A Bíblia para os dias de hoje?!

Evangelho segundo S. Lucas 14,1.7-11.
Tendo entrado, a um sábado, em casa de um dos principais fariseus para comer uma refeição, todos o observavam. Observando como os convidados escolhiam os primeiros lugares, disse-lhes esta parábola: «Quando fores convidado para um banquete, não ocupes o primeiro lugar; não suceda que tenha sido convidado alguém mais digno do que tu, venha o que vos convidou, a ti e ao outro, e te diga: 'Cede o teu lugar a este.' Ficarias envergonhado e passarias a ocupar o último lugar. Mas, quando fores convidado, senta-te no último lugar; e assim, quando vier o que te convidou, há-de dizer-te: 'Amigo, vem mais para cima.' Então, isto será uma honra para ti, aos olhos de todos os que estiverem contigo à mesa. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado.»
Da Bíblia Sagrada

quarta-feira, outubro 20, 2010

Medos da Aldeia 2

As Bruxas
As noites eram longas e os serões um momento de convívio e partilha das vidas de cada um e da Comunidade.
De fora, raramente chegavam notícias. Sem rádio nem TV, sem jornais nem revistas, um elevado número de analfabetos constituíam o alfobre ideal para que as bruxas aparecessem e por lá permanecessem.
As famílias reuniam-se à volta da lareira, fonte de calor e de luz, onde a ceia era cozida em panelas de ferro e também era aquecida a água para as lavagens e trato dos animais.
Acabada a ceia, o convívio estabelecia-se entre os mais velhos, as Crianças a escutar, enquanto o sono não as levasse para a cama.
Abundavam as castanhas e elas eram um sólido complemento das parcas refeições, cozidas ou assadas. De vez em quando, a Ti Vicenta entrava por ali dentro, na esperança de uma noite menos longa e também na de levar os pés quentes para a cama sem grande gasto na pouca lenha de que dispunha e também na de sair com o estômago mais confortado.
Não tendo novidades para dar, a conversa conduzia, quase sempre, à “certeza” de que havia bruxas pelo Mundo. E de que também na Aldeia elas tinham assentado arraiais. Até as conhecia. Depois… era um desfiar de histórias fascinantes e aterradoras, que faziam os gaiatos mexer-se, inquietos, nos seus assentos e sentir arrepios na espinha, enquanto se chegavam mais p’ra junto do lume crepitante da lareira.
- Estás com medo, filho?! – perguntava a jovem mãe.
- Não, Mãe, é frio… - encolhia-se o garoto armado em valente.
- Vejam bem – contava a vizinha, já sexagenária, numa voz calma e convicta – que ELA, mal entrou no forno de cima, logo o pão do tabuleiro da Angélica baixou no tabuleiro como se não tivesse levado crescente… E o Jaquim Bento apanhou-a mesmo em cima da vaca, que ficou doente e quase a morrer. Ainda hoje não sabe como entrou no palheiro. Talvez pela fechadura. Mas saiu pela porta com a vara das vacas a estalar-lhe no lombo… - rematava muito convencida.
As histórias de bruxas da Ti Vicenta, do Ti Jaquim Cabeco, da minha avó… tinham que se lhe dissesse. Não havia idoso que se considerasse digno desta sua condição que não tivesse contactado com uma bruxa, pelo menos uma vez na vida. Estávamos nos anos cinquenta!
Também conheci “bruxas”. Mulheres velhas antes do tempo, carregando um enorme peso insuportável de levar, em forma de carimbo: bruxa. Pobres, humildes, simples, cabisbaixas, olhos no chão, não fosse o “mau olhado” traí-las e complicar-lhes ainda mais uma vida já de si bem complicada. Não tinham trabalho, ninguém lhes confiava trabalho, "não fosse o Diabo tecê-las"... Sobreviviam da esmola, que não lhes era dada por solidariedade, mas por medo de que a sua recusa pudesse trazer coisa má à família.
Havia situações em que a “bruxa” podia ser um “bem”: havendo suspeita de que o bruxedo havia entrado em casa, nada melhor para o combater do que ir à “concorrência”. “Tirar os acidentes” com rezas e benzeduras e pingos de azeite em prato raso de água, defumadouros de alecrim, incenso e asperges de água benta. Muito antes de os garotos aprenderem a ler, já sabiam "fazer figas" para que as maléficas bruxas não lhes pudessem fazer mal. E, com a irreverência tão própria da infância, não "faziam figas", às escondidas, como os adultos, com as mãos escondidas nos bolsos ou debaixo do avental, antes hostilizavam as infelizes destinatárias com os punhos e dedos bem preparados para o esconjuro... e o anátema "Bruxa!"
Tudo e todos podiam ser vítimas das bruxas. Pessoa ou animal doentes… provavelmente embruxados. Cozedura de pão que corria mal por deficiências na farinha ou no amassar… embruxado, com certeza. Sementeira que não produzia o esperado… o “mau olhado” andara pelos campos.
Depois… a Escola, a Instrução e a Educação foram quase tão fatais para as bruxas como a própria Morte que as levou. Para seu e nosso descanso.
Nos tempos que correm… poucos acreditam em bruxas. Mas vendo e ouvindo os nossos políticos e governantes e tendo consciência do estado a que isto chegou havemos de exclamar:
- Mas lá havê-las… há!!!
Só por "mau olhado"!!!
(Vivências de Aldeia, com liberdade de escrita do autor. Foto e vídeo da internet)

quinta-feira, outubro 14, 2010

A Bíblia para os dias de hoje?!

Carta aos Gálatas 5,18-25.
Ora, se sois conduzidos pelo Espírito, não estais sob o domínio da Lei. Mas as obras da carne estão à vista. São estas: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contenda, ciúme, fúrias, ambições, discórdias, partidarismos, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas. Sobre elas vos previno, como já preveni: os que praticarem tais coisas não herdarão o Reino de Deus. Por seu lado, é este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra tais coisas não há lei. Mas os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões e desejos. Se vivemos no Espírito, sigamos também o Espírito.
Evangelho segundo S. Lucas 11,42-46.
Mas ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as plantas e descurais a justiça e o amor de Deus! Estas eram as coisas que devíeis praticar, sem omitir aquelas. Ai de vós, fariseus, porque gostais do primeiro lugar nas sinagogas e de ser cumprimentados nas praças! Ai de vós, porque sois como os túmulos, que não se vêem e sobre os quais as pessoas passam sem se aperceberem!» Um doutor da Lei tomou a palavra e disse-lhe: «Mestre, falando assim, também nos insultas a nós.» Mas Ele respondeu: «Ai de vós, também, doutores da Lei, porque carregais os homens com fardos insuportáveis e nem sequer com um dedo tocais nesses fardos!

quarta-feira, outubro 13, 2010

O Amor, por S. Paulo

1 Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. 2 Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas,  se não tiver amor, nada sou. 3 Ainda que eu distribua todos os meus bens  e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita.  4 O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, 5 nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. 6 Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. 7 Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. 8 O amor jamais passará. As profecias terão o seu fim, o dom das línguas terminará e a ciência vai ser inútil. 9 Pois o nosso conhecimento é imperfeito e também imperfeita é a nossa profecia. 10 Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. 11 Quando eu era criança,  falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Mas, quando me tornei homem, deixei o que era próprio de criança. 12 Agora, vemos como num espelho,  de maneira confusa; depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido. 13 Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior
 de todas é o amor.
 
                   

terça-feira, outubro 12, 2010

A Ribeira

Há 60 anos, a Ribeira continha, nas suas margens, grande parte da vida e da riqueza de Aldeia.
Desde o limite da freguesia vizinha de Aranhas até à raia do Concelho, lá para a Arrancada, a caminho de Medelim, alguns dos nossos melhores campos de cultivo ficavam na beira do nosso mais significativo curso de água.
Embora a maior parte dos terrenos adjacentes pertences- se às casas "grandes", os "remediados" na sua própria terra, e os rendeiros nos terrenos que alugavam, extraíam de lá o seu sustento com o suor do seu rosto e os calos das suas mãos.
Verdadeiramente, boa parte da vida da Aldeia, de Junho a Setembro, mudava-se para junto da Ribeira. Ali, Verão fora, salvo nas pausas dos trabalhos, abrigados à sombra de sobreiras e de oliveiras, nas poucas  "casas" de pedra cobertas com telha mourisca ou com palha, em choças de colmo de centeio, os nossos camponeses tinham mil tarefas para cumprir: lavras, cavas, sementeiras, sachas e mondas, ceifas, acarrejas, descamisas e malhas, regas e colheitas diversas. Também a sesta, sob um calor abrasador ou o descanso nocturno com a "música" e as picadas das melgas e dos mosquitos.
Eram interessantes os serões, lá nos campos, a contar as estrelas cadentes ou sob um luar sem paralelo. Habitualmente, um céu aclarado por milhares de pontos luminosos, "aliviava" uma escuridão de quase não se verem as "camas" em que cada um procurava alívio das canseiras passadas e forças para um novo dia de uma vida sem novidades.
Apenas dois ou três pontões existiam para a travessia da nossa Ribeira, enriquecida aqui e ali com os seus pequenos mas bem importantes afluentes. Fora dos pontões, na maior parte das passagens, na época de maior caudal, a travessia era feita a vau ou saltando de poldra em poldra, blocos de granito espetados no leito e que cada um tentava pular de modo a não meter os pés na água. Tarefa pouco fácil para os mais idosos ou para quem transportasse um pesado cesto à cabeça, um caldeiro quase sempre cheio enfiado no braço, uma criança de colo e outra um pouco maior, a choramingar "Mãe, pega-me que estou cansado..." Ou com um molho de lenha, um saco bem pesado às costas. O corpo humano era um dos mais disponíveis transportes da época e muito raro seria ver alguém entrar no Povoado, de regresso do trabalho, com o "corpinho ao alto". Grande parte da população nem tinha posses para adquirir e sustentar um burro que ajudasse a aliviar das muitas canseiras de cada dia. Era mesmo preciso "dar o corpo ao manifesto". Assim, carregando excesso de peso ninguém tinha peso em excesso...
As enxurradas do Inverno já lá iam, a Primavera fora amorosa e até meados de Julho a Ribeira levava água bastante que se pudesse aproveitar para regar hortas, batatais e milheirais. Sítios havia que, com pequenos açudes, se conseguia que a água irrigasse, no seu caminhar, as pequenas várzeas da vizinhança. Depois, numa charca aqui, numa represa acolá, na maior parte das situações, era tirada com caldeiros ou baldes de lata, a pulso, com auxílio da picota ou burra com varais de pinho ou eucalipto. O mesmo trabalho era feito para retirar a água dos numerosos poços abertos nos terrenos limítrofes da Ribeira, pois o motor de rega estava por inventar e as poucas noras se contavam pelos dedos das mão. Uma trabalheira.
O açude mais significativo era o que alimentava a azenha, ali na zona do "Pontão". Em toda a minha meninice ali se moía  trigo,  centeio e  milho em perfeita harmonia ambiental,: a água deslizava na levada e fazia girar a enorme roda de madeira a conseguir que uma engrenagem "misteriosa"   fizesse  trabalhar as mós de pedra que transformavam o grão em farinha...
Para usar a água da Ribeira era preciso obter a respectiva licença de utilização junto do guarda-rios. Também ele se encarregava de velar pelo cumprimento da obrigação de cada um, nos meses de Julho e Agosto, limpar as margens e o leito da nossa Ribeira, onde cresciam salgueiros, freixos, choupos e muitas silvas, onde rouxinóis e melros haviam feito os ninhos e, no Verão, se abrigavam do calor e dos predadores. Limpeza feita - os rebanhos também tinham nesta tarefa um papel importante - lá para fins de Setembro, as primeiras chuvadas e enxurradas teriam o caminho livre para chegarem ao seu destino sem grandes contratempos para os campos em redor, o que nem sempre se conseguia evitar, quando vinha uma daquelas "trovoadas a sério"...
Nos serões de Verão era frequente as vizinhanças falarem de cá para lá e de lá para cá, contando as "últimas" quase sempre já "velhas".
Só muito raramente se acendia outra luz que não fosse a da fogueira onde se cozinhava e os serões poderiam ser passados na mais completa escuridão, apenas à luz das estrelas. Raramente, uma candeia de azeite ou de petróleo...
Dada a proximidade das famílias por ali "acampadas", alguns namoros tiveram lugar por lá, nos arredores da nossa Ribeira e, de vez em quando, de lá saíam casamentos... Sem as "poucas vergonhas" e as "pressas" dos dias em que hoje vivemos... Tudo gente "séria", pois as raparigas bem sabiam que as "facilidades" de hoje podiam dar enormes complicações no futuro.
Mesmo às escuras, mas com especial encanto nas noites de lua cheia, se podia aproveitar o tempo para descamisar as maçarocas, tirar o feijão das vagens, cantar ao desafio, contar histórias de bruxas e lobisomens, descascar as batatas para o almoço da manhã seguinte, rezar. De vez em quando um habilidoso fazia ouvir o seu realejo, mas o som mais recordado era o do Zé Piolgo a tirar melodiosos sons do pífaro que ele próprio construía com pau de sabugueiro. As tardes eram longas, os serões curtos, pois o sol havia de aparecer bem cedo, ainda o sino lá da torre não batera as 6 horas da manhã.
Alguns dos mais conhecidos apelidos da nossa Aldeia tiveram que ver com a Ribeira: Baguinhas, Piolgos, Cabecos, Filipes, Passotas, Lãs-Brancas, Cácaus, Flachos, Dominós, Piorrecos, Burricos, Pirolitos, Fecos, Colhudos, Malaguetas, Pichins, Caixas, Carneiros, Cabos-Esteiros, Duartes, Choras, Chorelas, Paíchas, Ratinhos... um nunca acabar!
Ali cresceram, trabalharam, sofreram, amaram. Sempre pobres, quase sempre felizes, raramente zangados.
Solidariedade bastante num trabalho mais complicado ou numa aflição inesperada que exigisse o esforço de todos... era certo e sabido que todos diriam "aqui estou".
Hoje, tenho uma vida melhor?! Não estou certo disso.
Uma homenagem ao Grupo de Adufes de Proença-a-Velha, terra do meu coração. Algumas das cantigas ouvia-as nos dias e noites lá pela Ribeira.
Aqui são narradas situações reais, com a liberdade de escrita que o autor entendeu usar.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Masoquismo?!

Impiedoso perfil psicológico do povo português
Falho de espírito crítico, ávido de sensações, ignorante e pouco previdente confunde o ancestral de mândria e uma confiança estúpida nos que, por força o hão-de explorar. Indignado ao ver-se no ludíbrio é então feroz.
1 - “O português desinteressa-se colectivamente. Não vibra numa acção conjunta. Entusiasma-se facilmente, é um rastilho, mas com a mesma rapidez se aborrece. É uma faúlha. Impulsivo, ardente, consome-se como um fogueirão de palha. Para ele só existe o facto realizado. Falho de espírito crítico, ávido de sensações, ignorante e pouco previdente confunde o ancestral de mândria e uma confiança estúpida nos que, por força o hão-de explorar. Indignado ao ver-se no ludíbrio é então feroz. Pachola ante o fascinador, o intrujão, é pascácio e tolo como seu filho a quem venderam cordões de latão.
Em políticos já não acredita e hoje tem apenas um ideal à vista e outro escondido. O que mostra é ânsia de comer barato, o que oculta é o sonho de se alimentar de graça. Para o primeiro caso delicia-se na esperança de não produzir nada; fez do estado a sua providência, a sua varinha de condão. Depois de se empregar no funcionalismo levou para as repartições a mulher e os filhos e há lares onde à noite se podia dar despacho pois não faltaria nem o papel de ofício, que por via de regra também se leva para usos caseiros. Ninguém dá um passo que lhe custe. Uns porque andam descalços (é o único país da Europa onde isso se vê), outros, porque têm as botas apertadas, ao que parece.
Não são pessoas para cálculos nem para meditações. Aceitam os factos realizados, (…). Versátil por natureza, sem carácter firme, balouçando sempre entre várias opiniões como as ondas que banham as costas do país, entre os rochedos, mudando amiúde como os céus que o cobrem, desvairando rapidamente como o vento, que tão veloz ali se levanta, ele não é capaz de sustentar nem um princípio, nem um homem, quanto mais um programa.”
(Texto de Rocha Martins, figura marcante do jornalismo português da primeira metade do séc. XX, escrito em 1923, na revista Fantoches, lido na Antena um, no programa “Páginas da República”, de 8/9/2010, pelo historiador António Ventura).
2 - “Para sermos políticos, de acordo com o Oxford English Dictionary, que passamos a traduzir, devemos ser sagazes, prudentes, sensatos, oportunos, astutos e ter capacidade de planeamento. Assim sendo, o comportamento político numa organização pode ser desejável ou indesejável.
(…) Algumas pessoas acreditam realmente que utilizar meios políticos para atingir os seus objectivos beneficiará a organização e eles próprios. Há quem racionalize esta constatação e, ainda, quem tente perseguir declaradamente os seus objectivos. Este último grupo de pessoas poderá utilizar todo o seu poder de persuasão para legitimar os seus fins aos olhos dos seus colegas, mas o seu interesse próprio continua a ser prioritário. É este tipo de políticos corporativos que o Oxford English Dictionary descreve como «planeadores perspicazes, conspiradores astutos ou intrigantes». Os políticos no seio de organizações podem ser assim, manobrando nas costas das pessoas e boicotando propostas que não lhes agradam. É à custa dos outros que melhoram a sua reputação e desenvolvem sua carreira. Por outro lado, podem ser pessoas invejosas e ciumentas que agem em função disso. Em suma, são um perigo.”
(Michael Armstrong, Como Ser Ainda Melhor Gestor – Guia completo de técnicas e competências essenciais, Ed. Actual Editora, Lisboa, 2005).
3 - “Os políticos, em lugar de se ajudarem entre si e uns aos outros nesta tarefa difícil que é administrarem um país, em que se tem ao mesmo tempo que olhar o presente com todo o cuidado objectivo, e ter a maior confiança no que se pode concretizar de futuro, em lugar de os políticos se ajudarem uns aos outros, se auxiliarem, a realmente levar essa tarefa por diante, tantas vezes se entretêm, em todos os países, a lutar uns com os outros, a desacreditarem-se uns aos outros, como se isso pudesse fazer avançar seja o que for.” (Agostinho da Silva).
Por: Norberto de Oliveira Manso - (In "Jornal Cinco Quinas")

segunda-feira, outubro 04, 2010

Dia de S. Francisco de Assis no Dia do Animal...

São Francisco de Assis, nasceu na cidade de Assis, Úmbria, Itália, no ano de 1182, de pai comerciante, o jovem rebento de Bernardone, gostava das alegres companhias e gastava com certa prodigalidade o dinheiro do pai. Sonhou com as glórias militares, procurando desta maneira alcançar o "status" que sua condição exigia, e aos vinte anos, alistou-se como cavaleiro no exército de Gualtieri de Brienne, que combatia pelo papa, mas em Espoleto, teve um sonho revelador no qual era convidado a seguir de preferência o Patrão do que o servo, e em 1206 , aos 24 anos de idade para espanto de todos, Francisco de Assis abandonou tudo: riquezas, ambições, orgulho, e até da roupa que usava, para desposar a Senhora Pobreza e repropor ao mundo, em perfeita alegria, o ideal evangélico de humildade, pobreza e castidade, andando errante e maltrapilho, numa verdadeira afronta e protesto contra sua sociedade burguesa.

Já inteiramente mudado de coração, e a ponto de mudar de vida, passou um dia pela igreja de São Damião, abandonada e quase em ruínas. Levado pelo Espírito, entrou para rezar e se ajoelhou devotamente diante do crucifixo. Tocado por uma sensação insólita, sentiu-se todo transformado. Pouco depois, coisa inaudita, a imagem do Crucificado mexeu os lábios e falou com ele. Chamando-o pelo nome, disse: "Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está em ruinas".
Com a renúncia definitiva aos bens paternos, aos 25 anos, Francisco deu início à sua vida religiosa. Com alguns amigos deu início ao que seria a Ordem dos Frades Menores ou Franciscanos, cuja ordem foi aprovada pelo Papa Inocêncio III. Santa Clara, sua dilecta amiga, fundou a Ordem das Damas Pobres ou Clarissas. Em 1221, sob a inspiração de seu estilo de vida nasceu a Ordem Terceira para os leigos consagrados. Neste capítulo da vida do santo é caracterizado por intensa pregação e incessantes viagens missionárias, para levar aos homens, frequentemente armados uns contra os outros, a mensagem evangélica de Paz e Bem. Em 1220, voltou a Assis após ter-se aventurado a viagem à Terra Santa, à Síria e ao Egipto, redigindo a segunda Regra, aprovada pelo Papa Honório III. Já debilitado fisicamente pelas duras penitências, entrou na última etapa de sua vida, que assinalou a sua perfeita configuração a Cristo, até fisicamente, com o sigilo dos estigmas, recebidos no monte Alverne a 14 de setembro de 1224.
 

domingo, setembro 19, 2010

Baile na Aldeia 6

O arrebol anunciava a chegada do astro rei por detrás da Serra das Pedriças, quando o morteiro estoirou, “puuum”, lançando a confusão na canzoada que se entregava ao seu doce dormitar, depois de uma noite bem agitada, desatando a fugir em todas as direcções, num descoroçoado “cain-cain” como que adivinhando “o fim do mundo”. As pessoas, essas sabiam o significado real: saltarem da cama, o que muitos haviam já feito, e reunirem-se, no Largo do Rato, para ouvirem a Banda executar o toque de alvorada e assistir à primeira largada de foguetes do dia, anunciando, “urbi et orbi”, que a festa tinha chegado! Que, neste longínquo ano, num fim de semana, Prior novo, bonito, simpático, divertido, popular, o saudoso Padre José Pedro, havia de ser diferente. Para melhor. Não na devoção a Nossa Senhora da Graça, que essa era forte e consequente, mas na alegria popular e na maneira de a levar a cabo. Depois do toque de alvorada, a largada do foguetório foi motivo de alegria geral. Ou quase!
Seguiu-se a primeira "arruada" da Banda e, mal o sol nascia, já ninguém estava na cama.
Dos armários e baús sairam as roupas mais bonitas e garridas. Foi mesmo dia de estreia de coisas novas. Nas cozinhas, as Mães afadigavam-se para que a refeição alegrasse toda a gente. As ruas animavam-se como se se estivesse na grande Cidade.
Pelo meio-dia, a Missa festiva, concelebrada, o jovem Pároco, os padres nascidos em de Aldeia eram 3 de 4. (Sobrevive, hoje, o senhor Padre Agostinho, quase cem anos, comovente vê-lo no altar!). Vieram os convidados das Paróquias vizinhas. A igreja a rebentar pelas costuras, sem bancadas, mal se conseguindo respirar, suor a escorrer da cara de quase todos. Não raro acontecia um “chilique” aqui e ali, um copo de água "fria" para reanimar. Mulheres no corpo da igreja e homens na capela-mor ou no coro, lá no alto. Fiéis houve que não couberam no templo e, portas abertas, acompanharam a celebração, devotamente, cá de fora, com respeito e atenção. Ao sermão, lá do alto púlpito, o padre César Fatela, voz poderosa, verbo eloquente, proclamou as excelsas virtudes da Mãe de Jesus, nossa Mãe adoptiva e nosso Exemplo. Fez chorar mulheres. E pensar homens.
Repicavam os sinos tocados, com destreza e arte, pelas mãos do sacristão ou de uns tantos ajudantes voluntários e a procissão, quase interminável, percorreu as ruas do Povoado, cânticos melodiosos, nos intervalos do desempenho da Banda. Os “guiões” desfraldados, de cores vivas, eram empunhados e dominados pelos mais valentes dos nossos rapazes, pulsos firmes e braços fortes, membros de corpos esguios, musculados pelo trabalho de cada dia, entroncados, barrigas ausentes. Não havia jovens gordos...
Homens à frente, em duas filas, andores com as imagens de S. Miguel, de S. Sebastião, de Nossa Senhora da Graça, esta sempre transportada em ombros de rapazes solteiros, opas brancas, seguidos dos sacerdotes, sob o pálio, varas seguras por homens, opas vermelhas sobre os "fatos de ver a Deus". O Ti Iná, opa e bordão vermelhos, encarregava-se da boa ordem no cortejo. A única "autoridade" presente!
Na metade posterior do cortejo seguiam as mulheres, as jovens e as meninas, de lenço na cabeça, o xaile pelos ombros das casadas, vela acesa numa das mãos e o terço, devotamente, na outra.
De vez em quando, o estralejar de um foguete ou o ribombar de um morteiro, anunciava a progressão da caminhada pelas ruas engalanadas com colchas e colgaduras nas janelas e varandas, até o cortejo reentrar na igreja paroquial. Uma mancheia de foguetes, subiu e estoirou, lá no alto, e anunciou o recolher da procissão. Andores arrumados, uma bênção final. O consolo espiritual fora conseguido.
Chegou ao tempo de tratar dos corpos. Este jantar de festa quis-se melhorado. Um dia não eram dias. E Nossa Senhora da Graça, merecendo a veneração durante todo o ano, havia de ser festejada também em casa de cada um. Para sacrifício e privação sobravam muitas ocasiões.
Na altura, raramente os homens metiam o nariz na cozinha. Trabalho de mulheres, com todas as consequências, para o elogio de um banquete bem conseguido e para o desagrado de um pouco de sal a mais ou de um esturro que fizera tanto esforço saber a queimado. Todos se sentaram à mesa e os petiscos cuidadosamente preparados ali estavam. Ninguém se fez rogado. Cada um por si. A Mãe por todos! Especialmente atenta aos mais velhos e às Crianças! E a que nada faltasse.
Davam-se as últimas dentadas num jantar bem diferente do habitual, servido muito depois do meio-dia, e já os sinos repicavam, os foguetes subiam e rebentavam e a Banda – como é que raio os músicos comeram tão depressa?! – desfilava, rua da Torre acima, na direcção da igreja, para que a festa continuasse lá nas imediações.
A tarde pareceria pequena nesse sábado ameno de fim de Verão, com festa "de encher o olho". Chegara gente como nunca. A quermesse, sob os ramos de uma das árvore da "horta de cima", a deitar para a rua, ali na beira da estrada. A “barraca de chá”, à sombra do lagar da Casa Grande e com a orientação das Senhoras havia de dar que falar. A caminho do "ramo" de oferendas, vinha de quase tudo o que de melhor o suor da Aldeia havia produzido: frutas, bolos, travessas de arroz-doce, enchidos, queijos, vinho, azeitonas, nozes e amêndoas, jeropiga, figos secos, feijão, centeio, milho… Gente de enorme e generoso coração. O leiloeiro não se cansava de apregoar “Cinco escudos por este "pão leve"… seis escudos... dez escudos… quem dá mais?!” E as oferendas iam sendo "arrematadas" com maior ou menor "despique"... Nos intervalos, a Banda tocava. E então, a maior parte daquela nossa gentes, ocupava o alcatrão da estrada e dançava, dançava. Sem dúvida o maior baile do ano. A Banda. O Povo. Em sintonia perfeita.
Atraídos pelos foguetes e pela música, das aldeias vizinhas e da Vila apareciam os visitantes. Muitos. Engravatadinhos alguns. Os "carros de praça" lá de Penamacor não paravam. Trazendo e levando. A "carreira" das quatro chegara carregadinha. Também soldados. Soldados?! Sim, da 1ª. Companhia Disciplinar. Só muitos anos depois tive ocasião de saber quem eram os “corrécios” que, domingo a domingo ou noutros dias festivos, passeavam nas nossas ruas, tentando dançar com as nossas raparigas, sem nunca o conseguirem. Com alguns muito poucos desacatos, que a nossa rapaziada era pacífica, por natureza…
E o leilão sempre a "despique" - "50 escudos uma... 50 escudos duas... ninguém dá mais... três... arrematado!" - toda a gente sabia da qualidade e genuidades do que era ali entregue e posto à venda, mas raramente se chegava a uma nota de 50. O salário de um trabalhador, "de sol a sol"... era de dez escudos!
Na “barraca de chá”, as nossas Meninas serviam lanches bem apetitosos a quem tivesse dinheiro para ali se sentar. Que não a enorme parte dos aldeões, quase só os visitantes. Na quermesse, as prendas iam sendo rifadas. A Banda tocava e o Povo dançava. Dançava esquecido de toda a semana, de todo um Verão, de todo um ano de trabalho intenso. Coisas da festa! Via-se alegria nos olhos, pressentia-se a agitação nos corpos.
A camioneta da tarde levara para a Vila muitos dos que de lá tinham vindo. O tempo voara e era forçoso regressar. Com alguma pena, pois tinha fama esta nossa festa. E a daquele ano saíra bem conseguida.
O Sol escondera-se atrás da “Serra” e o crepúsculo começou a cobrir toda a Aldeia. Aconteceu uma última marcha tocada pela Banda, um revoltear
de pares que desejaram que o dia não terminasse. Ou mesmo que continuasse noutro sítio.
Uma derradeira “descarga de fogo” anunciou que a festa acabara. A Banda, estrada abaixo, marchou, tocando ainda um “ordinário”, a caminho da sua Sede, mesmo em frente da Escola, deixando no ouvido de cada um o som dos acordes de um encanto que se manteve por décadas e décadas. Mais de um século.
Depois... o silêncio foi caindo, restou o trabalho dos que deviam arrumar, conferir, fazer contas. A Aldeia ceou e sossegou. Por fim, adormeceu, com a certeza de que cada um dos que descansavam poderia deixar a chave na porta, ou até mesmo descansar, em sossego, com ela escancarada.
A manhã seguinte seria o domingo. Depois  a vida retomaria o seu ritmo: trabalhar, trabalhar... mesmo para muitos dos que tinham chegado para “férias”. As hortas, as vindimas, a secagem dos figos... O tempo urgia e a necessidade era grande.
Para BAILE já chega! Voltaremos com os "medos da Aldeia"!

quarta-feira, setembro 08, 2010

Baile na Aldeia - 5

8 de Setembro de 2010. Ali estive eu, no adro da igreja, como há quase 60 anos atrás. A casa da senhora Hermínia desapareceu, o adro agora todo calcetado alargou, a fachada da igreja vê-se, assim, da estrada, por detrás da bem antiga fonte, mesmo ali à beira. Mas foi esta a mudança menor, ocorrida nestas dezenas de anos. Avós… estavam lá e eu fui um deles. Pais… sim, a minha Filha e os filhos dos meus amigos. Netos… os nossos e bem poucos. Não há Crianças na Aldeia. Não há cheiros. Nem sons. Nem cores. Nem sabores… Temos a Banda, mas tão diferente. Para melhor, confesso. Bem afinada, muita gente nova, de quase todo o Concelho, uma boa parte dos executantes são Meninas. E o baile? Nem um par se disponibilizou. A saudade, essa sim, abundou e sentiu-se em todos os rostos, lá bem no fundo dos olhos ou em gestos exuberantes, no reencontrar, ali, de amigos que não via há mais de 40 anos… E outros a quem falara no ano passado… E também a enorme saudade dos Avós e Pais que o eram, há muitos anos atrás!
Estava-se em meados da década de cinquenta, ano de 1956, exactamente. Nas margens da Ribeira e em volta dos poços e represas alimentadas das muitas nascentes então a dar vida a uma terra que tanto agradecia o trabalho e a água, as hortas vicejavam, aqui e ali enriquecidas pelos vultos das melancias, dos melões e das sempre úteis abóboras. Uma festa para os olhos e para o sabores. Debaixo das sobreiras e oliveiras montes e montes de canas de milho, cortadas aqui e ali, eram descamisadas e as maçarocas doiravam as amplas eiras, na esperança de uma compensação para tanta canseira. Os bandos das meigas rolas, já quase em véspera de abalada para novas terras, ainda por ali arrulhavam, na sombra, batendo as asas, em desespero, quando um ou outro caçador disparava aqui ou ali, à procura de um petisco. Com a partida das andorinhas, os numerosos "taralhões" e as "rabitas" estavam a chegar, invadindo os campos com a sua presença e enchendo os ares com o seu típico "chilreio", para serem vítimas fáceis das armadilhas dos predadores de duas pernas... Dezenas e dezenas de figueiras davam frutos para pessoas e animais e eram também estendidos sobre palha nova centeia, ou nas varandas e tabuleiros de madeira para secarem e fazerem alegrias lá para os Santos. E mais p’ra diante. Nas muitas vinhas de então as uvas eram apanhadas e nos “pios” de granito, homens de calças arregaçadase e pés descalços para as esmagar, subindo no ar o cheiro acre-doce do mosto a fermentar, prenunciando alegrias e também disparates lá pelos dias de S. Martinho. As fogueiras, por debaixo dos alambiques de cobre, faziam soltar os vapores de álcool, a dar aguardente que faria festa de poucos e tristeza de muitos. Castanheiros, de amplas copas, dobravam os ramos ao peso dos ouriços, fazendo adivinhar um Outono farto de magustos e um Inverno de preocupações aligeiradas. A castanha ainda matava a fome a muita gente!
As aulas, nesse tempo, começavam em Outubro e o mês de Setembro era o mais escolhido para “gozar férias” na Aldeia. Desde o primeiro dia deste mês – outros já na 2ª. quinzena da Agosto - que os “papafigos” estavam chegando, de comboio, a Castelo Branco, nas camionetas do “Martins Évora” até ao destino final. Gente nova, quase sempre com filhos crianças a juntarem-se às muitas Crianças que cá viviam durante todo o ano. Era bem animada a chegada das camionetas da carreira, pelas 8 e pelas 19 horas de cada dia, sem grandes preocupações de pontualidade. Quase a transbordar, com as bagagens mais simples ou esquisitas a ocupar espaço, ao sol e à chu
va, lá por cima do tejadilho daquele vagaroso e precioso transporte de passageiros.
Os “papafigos” agora de regresso temporário, haviam rumado à Cidade, na busca de uma vida mais "limpa", “à sombra”: ofícios de guarda, polícia, carteiro, bombeiro, militar do exército ou até da marinha, raramente para os aviões ainda escassos. As esposas ocupavam-se, habitualmente, das lidas de casa e dos filhos, com jeito para a costura, se possível a ganhar algum dinheiro, fazendo os mesmos trabalhos na casa de outros que os pudessem pagar. Portanto, aquele período era o mais escolhido para “descansar”, havia a fartura das hortas, das vinhas e dos pomares, e também para ajudarem os pais e familiares nos trabalhos mais agradáveis do ano, os das colheitas. Outro motivo bem forte era que, no dia 8, se reunia a grande família de Aldeia para a celebração da festividade de Nossa Senhora da Graça. Feriado e “Dia Santo” paroquial, a passar de geração em geração. Até hoje, sem se “render” à “mais valia” que a festa no fim de semana poderia trazer com mais uns trocos!
De véspera, os trabalhos no campo eram aliviados. Os fornos de “baixo” e de “cima” tinham um dia de eleição: alguns tabuleiros de “pão trigo” e bolos, muitos bolos, para irem até ao “ramo” de oferendas no dia da festa ou para serem consumidos, em casa, pelas famílias: “pães leves”, esquecidos, borrachões, bolos de leite, biscoitos… O belo galo que, durante o Verão, como se adivinhasse, tanto fizera, com “có-có-ró-có-có”s de encantar, para levar as galinhas a garantir a continuidade da espécie, tivera o destino para que nascera, a panela ou
o tacho, mesmo o forno. Na sua ausência, uma galinha que se fora esquecendo do dever de pôr ovos ocuparia o lugar para fornecer a uma canja bem saborosa e um sempre desejado “fricassé”. Dos “talhos" do Ti Domingos e do Ti “Sacoto” ou dos do Ti Xico Miguel ou Ti Zé Rolo, estes em Aldeia do Bispo, haviam de sair pedaços de chibo, de cabra, de ovelha “badana” ou de carneiro para serem utilizados em aprimorados cozinhados, juntando-se o seu odor aos cheiros dos mostos, do pão e dos bolos acabadinhos de sair do forno, das aguardentes, das flores que enfeitavam as hortas e coloriam casas e altares, das eiras, das cortiças e até das terras molhadas com as primeiras chuvas, a fazer tapar, em momentos de aflição, os figos que secavam sobre “passadeiras” de palha e também as vagens e maçarocas estendidas nas eiras. E ainda aquele inesquecível perfume, de manhã cedo, das ervas secas molhadas pelas primeiras maresias de um final de Verão que se aproximava, a passos largos.
Na véspera, pelo escurecer, uma descarga de foguetes prenunciava para a Comunidade em festa e para as terras da vizinhança que, desde há muito, 8 de Setembro tinha de s
er diferente, em Aldeia. Também o som dos morteiros e o cheiro da pólvora aconteciam. Podia dizer-se que, depois da chegada da camioneta da tarde, trazendo os retardatários, a Aldeia estava cheia como um ovo. Nem se sabe como se acomodava tanta gente!
Era uma noite bem diferente, bem festiva, cumprimentos e abraços, conversas de pé ou sentados nos “baturéis”, nas escadas e nos balcões de granito, nas soleiras das portas, noite fresca. Só os pastores, que pelo entardecer, haviam recolhido os seus rebanhos, tilintando chocalhos e campainhas por aqui e por ali, não haviam de ter lugar, em plenitude, na alegria geral. Que era de quase todos. Raramente deles.
Por fim, a escuridão de uma noite, na Aldeia, em que a energia eléctrica era desconhecida, tomou conta de tudo e de todos e aquela gente adormeceu.
O autor relata acontecimentos vividos por si mesmo, a que junta a liberdade de os recontar a seu gosto.
Para hoje, com a devida vénia, um excelente trabalho de Rui Canas Gaspar, no 5º. Festival de Bandas de Setúbal, a Cidade que muito amo e me acolheu por mais de 34 anos de trabalho docente, distinguido com a "Medalha de Ouro da Cidade", em 2000.
Lá volto, sempre que posso, com alegria e enorme prazer.
Oferta para os meus queridos "Cucos". Vós mereceis!
A nossa Banda não está aqui presente e passará, no episódio que se seguir...

sábado, setembro 04, 2010

Medos da Aldeia... 1

A giesta
O mês de Maio, naquele final da década de 40, do século passado, não dava folga aos nossos camponeses: as regas, as mondas, as sachas, as caldas, a guarda do rebanhos, a aterra dos pés de milho...
Saía-se cedo de casa e só depois do sol posto se começava a pensar em regressar à Povoação. Dormir nas choças havia de ser dali a poucas semanas. Para ganhar tempo e "matar" ainda mais aqueles corpos sempre prontos para deitar mais uma gota de suor e para fazer mais um esforço. Era, pois, um mês decisivo na existência das nossas Gentes.
Aquele dia fora igual a tantos outros e era preciso regressar. O jovem casal ia reparando nas Crianças, dois meninos, de pouca idade, enquanto as vacas, mansamente, iam pastando na farta relva à volta da represa da Tapada do Cabeço. Ali trabalhavam, de renda, desde o seu casamento, fizera meia dúzia de anos.
- Carminda, vai andando com os Garotos, que eu já carrego os molhos de erva, ponho as vacas a caminho e apanho-te, num instante. Vai ficar noite, não tarda...
Cesto a transbordar à cabeça, cesta de verga enfiada no braço, dá a mão ao mais pequeno e diz para o mais velhinho:
- Vamos, Filhos, está a fazer-se tarde. Vá! Vamos depressa.
Até casa poderiam gastar o que restava de luz dos longos entardeceres da Primavera. Fora mesmo um dia e tantos!
Mãe e filhos meteram-se a andar, passaram, com dificuldade, pelas "poldras" da Ribeira, onde a água ainda não faltara, saudando os já poucos que, ainda nas hortas e vinhas adjacentes ao caminho, davam também por findas as tarefas dessa jornada. Na suave encosta para a Aldeia, ali estava o "Bacelo", grande vinha, castanheiros frondosos, depois o pinhal, as sobreiras e as oliveiras pontilhando os campos ou na borda do caminho assoreado aqui e ravinado além pelas chuvas da longa invernia já distante. Não havia sombra desta ou daquela árvore, mas um crepúsculo geral que ia envolvendo toda a paisagem.
Ali, na curva da vinha do Ti Félix, começava a última ladeira, antes de se chegar a um nível em que de lá se avistaria a Aldeia.
- Ó Mãe, está ali um homem agachado... - murmurou o mais crescido dos miúdos.
A Mãe, jovem bela e desempenada, nos seus 27 anos, era um pouco assustadiça e também notara, mal chegara ao fundo do pequeno declive, que algo não estava bem, lá no cimo.
- Então, Filho, não vejo nada... - retrucou, aparentando a valentia que não sentia.
- Sim, Mãe, está ali um homem agachado à nossa espera! - teimou o pequeno, voz ténue, pernas a tremer, agarrando-se à saia materna.
O andar dos três tornou-se mais vagaroso, quase a marcar passo. Sabiam que atrás vinha o homem da casa e o "problema" poderia resolver-se "de igual para igual".
Mas, nestas coisas de medos, os minutos tornam-se eternidades e as dúvidas pequenas em certeza enormes.
Não havia mais hesitações! Estava ali um homem agachado, à espera de Mãe e filhos...
Com um nó na garganta, conseguiu clamar para o marido, que devia estar já ali mesmo atrás e não havia maneira de aparecer:
- António, ó António!!!
Nem resposta. Fosse pelo bater dos canelos dos animais nas pedras e areia do caminho, fosse porque a distância se tornara maior do que se pensara, o Pai das Crianças é que não deu resposta.
- António, ó António, onde é que tu estás, homem?!- gritou, de novo, quase em desespero, agora com a marcha interrompida.
- Que ééé, Mulheeer?! Então o que é que se passa?! Eu estou bem e já passei aqui o portão do senhor Amaral... - exclamou ele, voz forte, sabendo quanto ela era "medricas"
A voz do Pai e marido voltou a encorajar o trio, que retomou o caminhar em direcção ao Lar. Devagarinho, não fosse o "Inimigo tecê-las"...
Já sentiam o andar dos animais e a presença tranquilizadora do "chefe de família" nas suas costas, quando atingiram o cimo da rampa.
Cá estava "ele", o "autor" de tamanho susto, o "homem agachado" ali mesmo, à saída da vinha do Ti Félix, uma GIESTA "negra" que quase todos os dias viam duas vezes. Pelo menos...
- Olha... é a giesta!!!- murmuraram quase em simultâneo.
Um suspiro de alívio, um sorriso amarelo e uma gargalhada nervosa.
Depois... o retomar do caminhar apressado, em direcção à ceia parca. E à caminha.
Em memória da voz de minha Mãe.

segunda-feira, agosto 16, 2010

Baile na Aldeia 4

Baile das “Sortes”
O esplendor do Sol fez alguns catrapiscarem, enquanto o suor lhes começava a escorrer pelo rosto. Na lapela dos casacos, tirados quase de seguida, apenas um laço branco indicava que o Quim ficara livre. Outro resultado não seria possível, perante o que era evidente. Para seu mal e para seu bem, não tomaria parte na aventura que toda aquela gente nova acabava de iniciar. O lacinho vermelho, qual prenúncio, assim o garantia, “apurado para todo o serviço militar”.
A sede e a fome apertavam e na Vila havia diversas pensões e tabernas que poderiam dar a resposta que aquela rapaziada cheia de energia agora estava a pedir, de comer e de beber. Decidira-se que a Pensão Seguro era o lugar com melhor possibilidade de servir, adequadamente, em dia de tanto movimento e o seu bem gentil proprietário fora alertado, em tempo.
Grupo composto, o Tocador faz deslizar os dedos pelos teclas da concertina e aí seguem pelo Largo do Sumagral, Rua da Botica, Alto da Praça, Rua Padre Mestre, apanhando a descida na Rua de Santo Estêvão… Numa Região em que o jantar ocorria pelo meio-dia, grande parte das pessoas havia já “tratado da saúde”. Mesmo assim, o acolhimento não foi fácil. Fregueses em excesso…
Depois, o arroz de tomate, as pataniscas de bacalhau, o vinho “traçado” com pirolito do Teixeira, a cerveja, a laranjada do Soito foram acalmando o desassossego de estômagos e cabeças.
As frondosas tílias do Jardim da República acolheram tanta agitação, depois, até chegar a hora da camioneta, previdentemente “desdobrada”. A repetir-se, a situação da manhã tornar-se-ia insuportável

16h 30. Um morteiro “clandestino” anunciou “Cá estamos, na nossa Aldeia!” Mudar aquelas roupas suadas, largar casacos, passar a cara por água fresca é uma urgência. “Liberta-se” o acordeonista para que “mate a sede” e ganhe forças numa das tabernas, num tempo em que não havia frigoríficos e os pirolitos eram “arrefecidos” mergulhados em alguidares com água da Fonte. A água da Fonte. Lá bem funda, era o máximo de “frio” possível!
Habitualmente, não havia bailes nos dias de trabalho. Este ou o de um ou outro casamento seriam a excepção.
Nos campos, os mais novos metiam pressa no acabar das canseiras deste dia, com os pais a resmungar: “Esta malta nova só quer é boa vida!”. Os que tinham ficado no Povo, vão-se achegando ao Largo da Fonte, onde a sombra do Lagar ainda escasseia e o calor aperta. Acordeonista e “rapazes das sortes” dão uma última volta pelo Povoado. Uma arca da azeitona emprestada pela Casa Grande serviu de estrado sobre o qual, numa cadeira empalhada, o Artista se acomodou. E então, naquele salão improvisado, no alcatrão da estrada, vai de dançar, dançar, corpos suados e frenéticos, a puxar para a festança. Poucas ainda, avós e mães encostam-se à parede, procurando a sombra, algumas a fazerem o gosto ao pé. A vida difícil não lhes levara a jeito! V
iras, malhões, "passo-dobles" e marchas - sempre preferidas pelos de “pés de chumbo”, "pois é só marcar passo”… - tangos, valsas, corridinhos, fandangos, … quase sem parar. Também do estrangeiro vinham músicas de Paul Anka, Roberto Carlos, Ângela Maria, Elvis, Françoise Hardy, Modugno, Rafael… O nosso Castilho, jovem e actualizado, tocava tudo o que desse para “abanar o capacete”… Com idas à Fonte, ali tão perto, ou à taberna próxima para dessedentar.
A tarde foi caindo e a sombra crescendo, cobrindo todo o Largo. Uma aragem suave vem que nem de propósito. Viva o Tocador. Viva este! Viva aquele! Viva a malta das “sortes”. Viva a Casa Grande. Ali mesmo "nas barbas" ficava "bem"...
No regresso dos campos, houve quem não resistisse a poisar o cesto no chão e “Anda cá , Maria!” ou “Anda cá Manel!” e foi numa dança. Ou até duas. Não faria grande transtorno que a ceia atrasasse um pouco.
O crepúsculo chegou, sem iluminação eléctrica. Tempo de intervalo. Para cear. A noite caiu breve.
Com as obras de adaptação da sede de “A União”, a instalar-se o Centro Social no rés-do-chão e a Banda lá para o primeiro andar, não foi fácil arranjar um espaço que acolhesse a festa nocturna, em condições razoáveis.
O Ti Leonel e a Ti Esperança, a tratarem da vida na dureza das Minas da Panasqueira, haviam arranjado a sua casa, ali no Largo do Pereiro, ficando um bonito salão, na parte baixa. A “conversa” do sobrinho foi mais que muita e, com ajuda da Prima Alcinda, a coisa ficou combinada: o baile seria lá. Até hoje, não foi esquecido.
Ceias papadas, caras relavadas, roupas mudadas, o baile da noite havia de ser só para convidados, os das “sortes”, algumas namoradas, irmãs, amigas, quase sempre do mesmo ano, de 1943. O Largo havia de ser o apoio espacial tão necessário para esta ocasião de excepção, em noite estival. À luz de um “Petromax”, um luxo, candeeiro especial, a petróleo, com uma luz especial para as ocasiões especiais.
Em volta da sala, bancos e cadeiras insuficientes, acolhiam avós e mães, sempre “com um olho no burro e outro no cigano”. “Não, que eu não quero cá abusos nem falatórios!!!” Os pais conversavam no Largo. Ou na taberna.
Rapazes para um lado, moçoilas para o outro, lá se iam entendendo de forma a que nunca faltasse quem se balançasse ao som ora suave, ora atiçado das músicas do vasto reportório do jovem Tocador, partindo a iniciativa da escolha do par aos rapazes “A Menina dança?!” ou “Queres dançar comigo?!” Como era normal, havia mais homens que mulheres e o “Bota cá licença?!” tanto podia ser recebido como um alívio ou dar origem a cenas desagradáveis, sobretudo se a jovem não queria mesmo dançar com o autor do pedido, ou se, entre aqueles que já dançavam, havia interesses “conversados” ou a “conversar”...
Era sempre um momento bem desejado dedicar uma modinha para “Damas aos pares”, em que cada uma das jovens po
dia escolher, sem recusa, o parceiro que todo o baile lhe agradara e não houvera maneira de por ela se decidir.
A noite ia avançando, ouvia-se o pedido insistente de “A Coroínha, a Coroínha!!!” e o Zé Castilho a fazer-se de surdo. "A Coroínha" era uma “moda mandada”, o culminar de qualquer baile que, na Aldeia, merecesse tal nome. Diga-se que tudo o que se dançasse antes era “os preliminares” e n’”A Coroínha” se atingiria o clímax… Depois, o baile podia continuar… mas já não era a mesma coisa.
Por fim, o Tocador cedeu. A música para “A Coroínha” aconteceu. Os pares começaram por dançar “agarrados” e, sempre sob a voz firme do “mandador”, foram desenvolvendo uma coreografia que fazia o encanto de velhos e novos. Depois, sempre a “mando”, a roda de pares, as rodas concêntricas de raparigas e rapazes, mais chegados/as “ao centro”, “à retaguarda”, “um passo à frente”, “um passo atrás”, “aos seus pares”, “bater palmas”, “estalar dedos”, “oh! virou!!!…, “aos seus lugares!”… as rodas girando na mesma direcção ou em sentidos o
postos, num agitar de braços, corpos balançando, peitos ofegantes, rostos corados, testas suadas, dedos estalando, batendo palmas, pés voando, braços agitados, pernas ligeiras, sorrisos nos lábios, olhos em fogo… até se ouvir a exclamação “À Coroínha!”. As rodas concêntricas estacaram. Homens pelo exterior. As mãos dadas, delas e deles, sem se largarem, vão passando por cima das cabeças, entrelaçando-se por baixo dos peitos e por cima das ancas. Conseguiu-se a maior “intimidade” possível, neste baile. A concertina não se cansa, “puxa” pelos dançarinos e eles não se fazem rogados. Bem entrelaçados, emparelhados, mãos bem juntas e mais apertadas, vão ainda uma vez obedecer à voz do "mandador", quase repetindo o que já fora feito, mas agora no doce enlevo de o/a ter bem juntinho. A roda mista não pára, girando num e noutro sentido. Vai à frente, vai atrás, uma fascinação, sentindo-se toda a sensualidade do momento naquelas caras rosadas, respiração apressada, corações palpitantes. Ainda o acelerar possível da melodia por mais uns minutos bem fugazes e o acordar do sonho “Cada um com seu par!!!” “A Coroínha” desfez-se, o êxtase esvaíu-se e , num instante, os pares vão desacelerando e o encanto que passou... ficou ainda no ar… a pairar.. a pairar…
Limpam-se os rostos suados, agitam-se os lenços, alguns saem para o Largo. É preciso respirar um pouco do ar da noite! É preciso acalmar. E beber, pois fome ninguém tem. De comida, pelos menos.
Aproxima-se a meia-noite. Ainda uma ou duas modinhas. Ninguém dispensará a Valsa das doze badaladas.
Novo dia, nascido na noite. A vida há-de continuar. Dura na sua realidade de todos os dias da Aldeia. O das “sortes” foi uma vez no Ano. Quem lá estaria, no ano seguinte?!

Notas:
1.Para os hipotéticos leitores brasileiros explico que o termo “rapariga”, entre nós, tem o sentido de jovem, moça, mocinha.
2.Procurando retratar uma época com a fidelidade possível, há situações que o autor descreve
de acordo com o que a imaginação lhe ditou.
3.Fotos de Zé Morgas e do Face Book de AJP, que agradeço aos autores.