sábado, setembro 04, 2010

Medos da Aldeia... 1

A giesta
O mês de Maio, naquele final da década de 40, do século passado, não dava folga aos nossos camponeses: as regas, as mondas, as sachas, as caldas, a guarda do rebanhos, a aterra dos pés de milho...
Saía-se cedo de casa e só depois do sol posto se começava a pensar em regressar à Povoação. Dormir nas choças havia de ser dali a poucas semanas. Para ganhar tempo e "matar" ainda mais aqueles corpos sempre prontos para deitar mais uma gota de suor e para fazer mais um esforço. Era, pois, um mês decisivo na existência das nossas Gentes.
Aquele dia fora igual a tantos outros e era preciso regressar. O jovem casal ia reparando nas Crianças, dois meninos, de pouca idade, enquanto as vacas, mansamente, iam pastando na farta relva à volta da represa da Tapada do Cabeço. Ali trabalhavam, de renda, desde o seu casamento, fizera meia dúzia de anos.
- Carminda, vai andando com os Garotos, que eu já carrego os molhos de erva, ponho as vacas a caminho e apanho-te, num instante. Vai ficar noite, não tarda...
Cesto a transbordar à cabeça, cesta de verga enfiada no braço, dá a mão ao mais pequeno e diz para o mais velhinho:
- Vamos, Filhos, está a fazer-se tarde. Vá! Vamos depressa.
Até casa poderiam gastar o que restava de luz dos longos entardeceres da Primavera. Fora mesmo um dia e tantos!
Mãe e filhos meteram-se a andar, passaram, com dificuldade, pelas "poldras" da Ribeira, onde a água ainda não faltara, saudando os já poucos que, ainda nas hortas e vinhas adjacentes ao caminho, davam também por findas as tarefas dessa jornada. Na suave encosta para a Aldeia, ali estava o "Bacelo", grande vinha, castanheiros frondosos, depois o pinhal, as sobreiras e as oliveiras pontilhando os campos ou na borda do caminho assoreado aqui e ravinado além pelas chuvas da longa invernia já distante. Não havia sombra desta ou daquela árvore, mas um crepúsculo geral que ia envolvendo toda a paisagem.
Ali, na curva da vinha do Ti Félix, começava a última ladeira, antes de se chegar a um nível em que de lá se avistaria a Aldeia.
- Ó Mãe, está ali um homem agachado... - murmurou o mais crescido dos miúdos.
A Mãe, jovem bela e desempenada, nos seus 27 anos, era um pouco assustadiça e também notara, mal chegara ao fundo do pequeno declive, que algo não estava bem, lá no cimo.
- Então, Filho, não vejo nada... - retrucou, aparentando a valentia que não sentia.
- Sim, Mãe, está ali um homem agachado à nossa espera! - teimou o pequeno, voz ténue, pernas a tremer, agarrando-se à saia materna.
O andar dos três tornou-se mais vagaroso, quase a marcar passo. Sabiam que atrás vinha o homem da casa e o "problema" poderia resolver-se "de igual para igual".
Mas, nestas coisas de medos, os minutos tornam-se eternidades e as dúvidas pequenas em certeza enormes.
Não havia mais hesitações! Estava ali um homem agachado, à espera de Mãe e filhos...
Com um nó na garganta, conseguiu clamar para o marido, que devia estar já ali mesmo atrás e não havia maneira de aparecer:
- António, ó António!!!
Nem resposta. Fosse pelo bater dos canelos dos animais nas pedras e areia do caminho, fosse porque a distância se tornara maior do que se pensara, o Pai das Crianças é que não deu resposta.
- António, ó António, onde é que tu estás, homem?!- gritou, de novo, quase em desespero, agora com a marcha interrompida.
- Que ééé, Mulheeer?! Então o que é que se passa?! Eu estou bem e já passei aqui o portão do senhor Amaral... - exclamou ele, voz forte, sabendo quanto ela era "medricas"
A voz do Pai e marido voltou a encorajar o trio, que retomou o caminhar em direcção ao Lar. Devagarinho, não fosse o "Inimigo tecê-las"...
Já sentiam o andar dos animais e a presença tranquilizadora do "chefe de família" nas suas costas, quando atingiram o cimo da rampa.
Cá estava "ele", o "autor" de tamanho susto, o "homem agachado" ali mesmo, à saída da vinha do Ti Félix, uma GIESTA "negra" que quase todos os dias viam duas vezes. Pelo menos...
- Olha... é a giesta!!!- murmuraram quase em simultâneo.
Um suspiro de alívio, um sorriso amarelo e uma gargalhada nervosa.
Depois... o retomar do caminhar apressado, em direcção à ceia parca. E à caminha.
Em memória da voz de minha Mãe.

4 comentários:

prohensa disse...

"Medos da Aldeia...", os reais, os imaginados e sobretudo os sonhados, depois dos serões de histórias de bruxas e lobisomens!...
Saudades... É isso que sinto (cada vez mais), cada vez que regresso à minha aldeia e me apercebo que, dia a dia, e aos poucos, vão faltando as pessoas que encheram a minha infância de tantos sonhos e tanta felicidade!...
Obrigado pelo seu texto, professor Serrano, e por esta homenagem, tão bonita, à memória da sua mãe.

Zé Rainho disse...

Caro amigo e colega Serrano,
Que bela prosa poética da ruralidade mais genuína. Que forma tão inteligente de descrever o quotidiano de antanho.
Não sabe como me emocionei e recuei aos meus tempos de menino. Eu lembro situações tão similares que até parece que fui eu que as vivi.
Gostei, igualmente, da forma encantadora como lembrou a sua meninice e a juventude de seus pais.
Que Deus lhe mantenha a memória tão fresca por muito mais anos e lhe dê a vontade de nos presentear com este tipo de "prosa poética".
Um fraterno abraço.
Caldeira

Zé Morgas disse...

Olá Professor Serrano.
Mais uma vez, o Professor me conduz aos cantinhos da memória que já julgava esquecidos. Recordo uma frase, que tantas vezes ouvi ao meu Avô materno, o Ti Domingos.
Domingos à tarde, tinha por hábito fazer uma ronda pelas tabernas da vila e beber uns valentes copitos de três com, os que como ele trabalhavam a terra de sol a sol, durante toda a semana.
Eram "normais" as histórias ouvidas de algumas valentias vividas. Sem na altura o entender muito bem, lá ouvia o meu Avô dizer, depois das histórias escutar:
" Oh damonho, o medo têm cá porras..."
Abraço Amigo

Maria Helena disse...

Bom Professor,já estava com saudade do seu quintalzinho. Com saudades também do Fado, este é um cantinho onde posso descansar e relaxar um pouco. O senhor nos conduz ao passado, junto de nossas mães, com nossos medos infantis e femininos, sempre apoiadas na figura masculina, que naquele tempo fazia sentido tal segurança. Obrigada pelo carinho do texto, que aliás está sempre presente. Vou salvar esta música.Abraços e muita Paz!