segunda-feira, agosto 16, 2010

Baile na Aldeia 4

Baile das “Sortes”
O esplendor do Sol fez alguns catrapiscarem, enquanto o suor lhes começava a escorrer pelo rosto. Na lapela dos casacos, tirados quase de seguida, apenas um laço branco indicava que o Quim ficara livre. Outro resultado não seria possível, perante o que era evidente. Para seu mal e para seu bem, não tomaria parte na aventura que toda aquela gente nova acabava de iniciar. O lacinho vermelho, qual prenúncio, assim o garantia, “apurado para todo o serviço militar”.
A sede e a fome apertavam e na Vila havia diversas pensões e tabernas que poderiam dar a resposta que aquela rapaziada cheia de energia agora estava a pedir, de comer e de beber. Decidira-se que a Pensão Seguro era o lugar com melhor possibilidade de servir, adequadamente, em dia de tanto movimento e o seu bem gentil proprietário fora alertado, em tempo.
Grupo composto, o Tocador faz deslizar os dedos pelos teclas da concertina e aí seguem pelo Largo do Sumagral, Rua da Botica, Alto da Praça, Rua Padre Mestre, apanhando a descida na Rua de Santo Estêvão… Numa Região em que o jantar ocorria pelo meio-dia, grande parte das pessoas havia já “tratado da saúde”. Mesmo assim, o acolhimento não foi fácil. Fregueses em excesso…
Depois, o arroz de tomate, as pataniscas de bacalhau, o vinho “traçado” com pirolito do Teixeira, a cerveja, a laranjada do Soito foram acalmando o desassossego de estômagos e cabeças.
As frondosas tílias do Jardim da República acolheram tanta agitação, depois, até chegar a hora da camioneta, previdentemente “desdobrada”. A repetir-se, a situação da manhã tornar-se-ia insuportável

16h 30. Um morteiro “clandestino” anunciou “Cá estamos, na nossa Aldeia!” Mudar aquelas roupas suadas, largar casacos, passar a cara por água fresca é uma urgência. “Liberta-se” o acordeonista para que “mate a sede” e ganhe forças numa das tabernas, num tempo em que não havia frigoríficos e os pirolitos eram “arrefecidos” mergulhados em alguidares com água da Fonte. A água da Fonte. Lá bem funda, era o máximo de “frio” possível!
Habitualmente, não havia bailes nos dias de trabalho. Este ou o de um ou outro casamento seriam a excepção.
Nos campos, os mais novos metiam pressa no acabar das canseiras deste dia, com os pais a resmungar: “Esta malta nova só quer é boa vida!”. Os que tinham ficado no Povo, vão-se achegando ao Largo da Fonte, onde a sombra do Lagar ainda escasseia e o calor aperta. Acordeonista e “rapazes das sortes” dão uma última volta pelo Povoado. Uma arca da azeitona emprestada pela Casa Grande serviu de estrado sobre o qual, numa cadeira empalhada, o Artista se acomodou. E então, naquele salão improvisado, no alcatrão da estrada, vai de dançar, dançar, corpos suados e frenéticos, a puxar para a festança. Poucas ainda, avós e mães encostam-se à parede, procurando a sombra, algumas a fazerem o gosto ao pé. A vida difícil não lhes levara a jeito! V
iras, malhões, "passo-dobles" e marchas - sempre preferidas pelos de “pés de chumbo”, "pois é só marcar passo”… - tangos, valsas, corridinhos, fandangos, … quase sem parar. Também do estrangeiro vinham músicas de Paul Anka, Roberto Carlos, Ângela Maria, Elvis, Françoise Hardy, Modugno, Rafael… O nosso Castilho, jovem e actualizado, tocava tudo o que desse para “abanar o capacete”… Com idas à Fonte, ali tão perto, ou à taberna próxima para dessedentar.
A tarde foi caindo e a sombra crescendo, cobrindo todo o Largo. Uma aragem suave vem que nem de propósito. Viva o Tocador. Viva este! Viva aquele! Viva a malta das “sortes”. Viva a Casa Grande. Ali mesmo "nas barbas" ficava "bem"...
No regresso dos campos, houve quem não resistisse a poisar o cesto no chão e “Anda cá , Maria!” ou “Anda cá Manel!” e foi numa dança. Ou até duas. Não faria grande transtorno que a ceia atrasasse um pouco.
O crepúsculo chegou, sem iluminação eléctrica. Tempo de intervalo. Para cear. A noite caiu breve.
Com as obras de adaptação da sede de “A União”, a instalar-se o Centro Social no rés-do-chão e a Banda lá para o primeiro andar, não foi fácil arranjar um espaço que acolhesse a festa nocturna, em condições razoáveis.
O Ti Leonel e a Ti Esperança, a tratarem da vida na dureza das Minas da Panasqueira, haviam arranjado a sua casa, ali no Largo do Pereiro, ficando um bonito salão, na parte baixa. A “conversa” do sobrinho foi mais que muita e, com ajuda da Prima Alcinda, a coisa ficou combinada: o baile seria lá. Até hoje, não foi esquecido.
Ceias papadas, caras relavadas, roupas mudadas, o baile da noite havia de ser só para convidados, os das “sortes”, algumas namoradas, irmãs, amigas, quase sempre do mesmo ano, de 1943. O Largo havia de ser o apoio espacial tão necessário para esta ocasião de excepção, em noite estival. À luz de um “Petromax”, um luxo, candeeiro especial, a petróleo, com uma luz especial para as ocasiões especiais.
Em volta da sala, bancos e cadeiras insuficientes, acolhiam avós e mães, sempre “com um olho no burro e outro no cigano”. “Não, que eu não quero cá abusos nem falatórios!!!” Os pais conversavam no Largo. Ou na taberna.
Rapazes para um lado, moçoilas para o outro, lá se iam entendendo de forma a que nunca faltasse quem se balançasse ao som ora suave, ora atiçado das músicas do vasto reportório do jovem Tocador, partindo a iniciativa da escolha do par aos rapazes “A Menina dança?!” ou “Queres dançar comigo?!” Como era normal, havia mais homens que mulheres e o “Bota cá licença?!” tanto podia ser recebido como um alívio ou dar origem a cenas desagradáveis, sobretudo se a jovem não queria mesmo dançar com o autor do pedido, ou se, entre aqueles que já dançavam, havia interesses “conversados” ou a “conversar”...
Era sempre um momento bem desejado dedicar uma modinha para “Damas aos pares”, em que cada uma das jovens po
dia escolher, sem recusa, o parceiro que todo o baile lhe agradara e não houvera maneira de por ela se decidir.
A noite ia avançando, ouvia-se o pedido insistente de “A Coroínha, a Coroínha!!!” e o Zé Castilho a fazer-se de surdo. "A Coroínha" era uma “moda mandada”, o culminar de qualquer baile que, na Aldeia, merecesse tal nome. Diga-se que tudo o que se dançasse antes era “os preliminares” e n’”A Coroínha” se atingiria o clímax… Depois, o baile podia continuar… mas já não era a mesma coisa.
Por fim, o Tocador cedeu. A música para “A Coroínha” aconteceu. Os pares começaram por dançar “agarrados” e, sempre sob a voz firme do “mandador”, foram desenvolvendo uma coreografia que fazia o encanto de velhos e novos. Depois, sempre a “mando”, a roda de pares, as rodas concêntricas de raparigas e rapazes, mais chegados/as “ao centro”, “à retaguarda”, “um passo à frente”, “um passo atrás”, “aos seus pares”, “bater palmas”, “estalar dedos”, “oh! virou!!!…, “aos seus lugares!”… as rodas girando na mesma direcção ou em sentidos o
postos, num agitar de braços, corpos balançando, peitos ofegantes, rostos corados, testas suadas, dedos estalando, batendo palmas, pés voando, braços agitados, pernas ligeiras, sorrisos nos lábios, olhos em fogo… até se ouvir a exclamação “À Coroínha!”. As rodas concêntricas estacaram. Homens pelo exterior. As mãos dadas, delas e deles, sem se largarem, vão passando por cima das cabeças, entrelaçando-se por baixo dos peitos e por cima das ancas. Conseguiu-se a maior “intimidade” possível, neste baile. A concertina não se cansa, “puxa” pelos dançarinos e eles não se fazem rogados. Bem entrelaçados, emparelhados, mãos bem juntas e mais apertadas, vão ainda uma vez obedecer à voz do "mandador", quase repetindo o que já fora feito, mas agora no doce enlevo de o/a ter bem juntinho. A roda mista não pára, girando num e noutro sentido. Vai à frente, vai atrás, uma fascinação, sentindo-se toda a sensualidade do momento naquelas caras rosadas, respiração apressada, corações palpitantes. Ainda o acelerar possível da melodia por mais uns minutos bem fugazes e o acordar do sonho “Cada um com seu par!!!” “A Coroínha” desfez-se, o êxtase esvaíu-se e , num instante, os pares vão desacelerando e o encanto que passou... ficou ainda no ar… a pairar.. a pairar…
Limpam-se os rostos suados, agitam-se os lenços, alguns saem para o Largo. É preciso respirar um pouco do ar da noite! É preciso acalmar. E beber, pois fome ninguém tem. De comida, pelos menos.
Aproxima-se a meia-noite. Ainda uma ou duas modinhas. Ninguém dispensará a Valsa das doze badaladas.
Novo dia, nascido na noite. A vida há-de continuar. Dura na sua realidade de todos os dias da Aldeia. O das “sortes” foi uma vez no Ano. Quem lá estaria, no ano seguinte?!

Notas:
1.Para os hipotéticos leitores brasileiros explico que o termo “rapariga”, entre nós, tem o sentido de jovem, moça, mocinha.
2.Procurando retratar uma época com a fidelidade possível, há situações que o autor descreve
de acordo com o que a imaginação lhe ditou.
3.Fotos de Zé Morgas e do Face Book de AJP, que agradeço aos autores.

8 comentários:

Plinio Ghirello disse...

António Serrano,
Boas recordações da disposição do jovem. A música sempre presente nos bailes tão esperados em que se reúnem os adultos e a humanidade através da boa e alegre música. Aqui no Brasil falava-se e experimentava-se o bacalhau e azeite de Portugal. O senhor pode contar sim com leitores brasileiros. Suas histórias e música são-nos muito agradáveis. Saudações de Alegria e Paz!

Luísa Antunes disse...

Eu adorei, querido Professor Serrano! UiuiuiH... Quantas gavetas se abriram na minha memória, ainda por cima com aquele extraordinário vídeo com a moda das concertinas (eu, na altura, chamava-lhe música a metro, como muitos outros... hoje, gosto!...). E acabei por sorrir: lá tenho eu de ir ao ginásio, para tratar da minha coluna; se tivesse uns bailes destes, de vez em quando, estava mais magra e com a coluna mais certinha!...
Beijinho. Obrigada.

Zé Rainho disse...

Caro Amigo Serrano,
Como eu me revejo no seu texto tão minuciosamente elaborado. Também tive a Graça de viver momentos muito idênticos e, por casualidade, ou talvez não, foi no mesmo ano e no mesmo mês.
As nossas afinidades são tão idênticas e os percursos de vida tão semelhantes que até parece que vivemos sempre juntos.
Ironia do destino ou cumplicidades desconhecidas?
Vale para a história das nossas vidas.
Um grande abraço, muito amigo.
Caldeira

Maria Helena disse...

Bom Dia Professr! O texto alegre com o acordeon e a moçada, lembra que o jovem é sempre cheio de energia em qualquer lugar do mundo.Dá vontade de voltar no tempo. Poder dançar! Este período vivi em Frutal, Triângulo Mineiro(Br).Gostei do Grupo de acordeonistas. Alegria e muita luz!

Zé Morgas disse...

Que bela noite, Professor.
Acabei há pouco de ler o último post do Changoto "A Tora", e de seguida apanho com mais este fabuloso texto que me transportou aos bailaricos realizados na Casa do Povo,e no Clube lá para os lados do Jardim da Republica, em Penamacor.
Ao ler no seu texto:
"Em volta da sala, bancos e cadeiras insuficientes, acolhiam avós e mães, sempre “com um olho no burro e outro no cigano”. “Não, que eu não quero cá abusos nem falatórios!!!” Os pais conversavam no Largo. Ou na taberna.", não pude deixar de partilhar com os meus colegas de turno, as histórias dos rapazotes mais atrevidos de então, as cenas com as garrafitas de mini Cergal, (lembra-se Professor da cerveja Cergal) metidas obliquamente no bolso esquerdo das calças, que levavam a "enganosos volumanços"...e as moças ao "esquivanço".
O que aquelas colunas sofreram...
Outros tempos.
Obrigado Professor por estas tão inocentes e maldosas recordações.

António Serrano disse...

Um Missionário, dois Professores, uma Psicóloga, um Aluno: cinco Amigos generosos, bons e fiéis.
Abraço todos por igual e com a maior Alegria.
Bem hajam!
Luz e Paz! Paz e Luz!!!

Plinio Ghirello disse...

Obrigado pela maneira de observar um grupo que trabalha pela Paz e Amor! Também o senhor Faz a Paz!

prohensa disse...

Acabou em beleza o dia das "sortes", com um balho à maneira, onde não faltou (nem podia faltar) "a Coroínha".
Fico contente por saber que o ainda meu parente e conterrâneo, Zé Castilho, também contribuiu para a festança.
Obrigado Professor por estas belas recordações...