quarta-feira, janeiro 13, 2010

Ao serão, no Inverno... 1

Havia uma semana que a chuva quase não parava, naquele princípio de Janeiro de meados do século passado. Fria, muito fria. A colheita da azeitona estava atrasada e os "ranchos" regressavam, passo largo, naquele sofrido anoitecer, encharcados e gelados. Apressadamente, caminhavam para casa. Tristes e cabisbaixos, saudavam, com soturnos "boa noite" aqueles com quem se cruzavam.
Lá em casa, o lume seria aceso, dali a instantes. De tarde, a mãe aproveitara uma "aberta" e quase correra, à "Tapada do Cabeço", onde apanhara umas couves, na horta, para serem comidas, à ceia. As crianças, tinham saído da Escola e o resto do dia fora desagradável, nariz encostado aos vidros da janela, a ver a chuva cair e a água a deslizar, rua abaixo, rumo à ribeira, o mais longe que eram capazes de imaginar. Assim, aguardaram esta hora, com ansiedade, à espera de mais uma noite como tantas outras. Sempre iguais e tão diferentes.
Da cozinha começara a subir o fumo que se ia escapando pela "telha vã", enquanto a fogueira ia ganhando forças com a lenha arrecadada no "bom tempo" e que daria algum conforto, naquela pequena habitação. As batatas estavam descascadas para cozerem na panela de ferro, pendurada na cadeia metálica, enquanto, no caldeiro de lata, apoiado na trempe, se ia aquecendo a água para lavar a louça e preparar a vianda do porco, a grunhir, no curral, lá fora, impaciente e com fome, adivinhando, talvez, que por poucos dias mais... As galinhas, enquanto tiveram claridade, haviam percorrido, encharcadas e melancólicas, a rua de terra batida e os terrenos envolventes, afrontando o mau tempo, à procura de "comida" e estavam já acomodadas, no galinheiro. Na loja do rés-do-chão. De manhã, bem cedo, o galo seria o primeiro a acordar "em casa".
Os garotos, sentados nos tripeços de cortiça, aqueciam-se, brincando ou zaragateando um com o outro, e davam conta dos trabalhos maternos nos preparativos da ceia, enquanto a chegada do Pai era aguardada, com ansiedade. Estava ainda a tratar dos animais, o que não era tarefa que se condoesse com a chuva e o frio. Mesmo em dia de agricultura impossível, levar as vacas a pastar e cortar os molhos de erva que iriam comer durante a noite, era tarefa inadiável e difícil. Com frio ou com calor. Com chuva ou tempo seco. Naquela tarde invernosa, o mais velho dos garotos fora dispensado de "participar" na tarefa. Vantagens do mau tempo. E do amor dos pais!
Por fim, a fogueira "ganhara coragem" e, com ela, um ambiente de bem estar começou a criar-se. As "Avé-Marias" tinham sido anunciadas, ao anoitecer, e rezadas em cada lar. O lar. Assim era designada aquela enorme pedra horizontal, na cozinha, assente em dois enormes pilares verticais também de granito, enterrados no chão da loja pela outra extremidade. O lar era, por assim dizer, o coração, o ponto mais importante de cada casa da Aldeia. À sua volta, sobretudo naquelas noites, a Família sentia-se... Família. Fazendo conjunto com o lar e na vertical, havia uma outra enorme pedra, o "marão", cuja finalidade principal era proteger a parede das "fúrias" das chamas. Nesta casa, por trás desta pedra, ficava uma espécie de gruta, a "p'lheira", onde eram guardadas, em cada manhã, as cinzas em que se transformara a fogueira acolhedora da noite que passara. Numa das pontas do "marão" apoiava-se o candeeiro de petróleo, com chaminé de vidro e, na outra, um "fogão" da ferro, onde seriam "assadas" as chouriças, as morcelas, o toucinho, as "costelas"... Aromas e sabores que nunca mais voltariam.
O lugar do pai, do lado do candeeiro, de costas para o corredor que dava acesso à porta da rua, esperava pela sua chegada. Que qualquer dos gaiatos gostava de ocupar, entretanto. A mãe ficava do outro lado da fogueira. Por sinal, do lado do "fogão"... Depois, "cantos" para arrumar as tenazes, as vassouras de giesta, a pá, o espeto, uma fila de panelas de ferro... E os filhos? No meio dos pais. Nas costas dos garotos ficava a mesa da cozinha. Num dos cantos, encontrava-se uma enorme talha de barro, que era cheia, diariamente, com a água da fonte "de mergulho" pública - as febres tifóides que, ainda nessa década, haviam de lá "nascer"!!! - trazida à cabeça da "dona da casa". Num cântaro também de barro empoleirado bem no alto e uma "lata", com corda, também cheia, na mão. Ao lado, o alguidar ainda de barro, para lavar a loiça. E um outro para a escorrer. Por cima, as prateleiras, cantoneiras, fixas na parede. Quase ao fundo da cozinha, via-se a porta que dava acesso ao quarto das crianças, um canto onde se colocava a lenha bastante para cada noite. Trazida da loja. E uma grande arca de madeira. Num outro canto, o lavatório, com estrutura de ferro, bacia de esmalte e uma toalha dependurada. Na parede, um espelho. Por cima do lar, dali a uma semana, ficaria o fumeiro feito em casa, com a carne do porco criado com muito cuidado, quase carinho. Que a "dona de casa" se recusaria, sempre, a ver morrer, ausentando-se para bem longe, aonde não chegassem os "gritos de socorro" do animal a que tanto se afeiçoara. Sentimentos de que mais ninguém participaria...
- Ó Carminda, já acendeste o lume? Dá-me aí uma brasa para acender o meu... "Esqueci-me" de comprar "palitos"...
- Entre, Ti Encarnação. Apanhe aí um tição...
- Boa noite! Ai! Mulher, estás sempre disponível. Bem hajas.
Era a cena quase de cada dia. A caixa de fósforos custava, inexplicavelmente, 25+5 centavos. Com este "sofisma" lá se pagavam os "3 tostões" pelos 40 "amorfos". Três tostões nem sempre disponíveis...
A panela fervia com as batatas e as couves acabavam de ser lá metidas. Trocara de posição com o caldeiro da água e a doce fogueira aquecia, cozia e iluminava. O candeeiro de petróleo, num dos cantos da pedra da lareira, tinha, assim, o seu papel reforçado.
- Mãe, tenho sono...
- Espera, filho, o pai está a chegar e a ceia está quase pronta. , vai à sala e traz-me a "molida" nova que estive a fazer esta tarde. Julgo que está em cima da máquina de costura. Ou apalpa na mesa... Repara se a braseira ainda tem lume...
- Ó Mãe... está tão escuro. Tenho medo...
- Estás cá um medricas. Tens medo de quê?! Olha, pega no candeeiro e vai lá. Vai... que eu fico a espreitar... - enganava-o ela, com voz doce. - Tem cuidado... não deixes cair a chaminé!
A casa era pequena. A distância curta. Mas a escuridão, na sala ao lado, era "tremenda" e, em tempo de "almas do outro mundo", não se podia "facilitar". A criança "ia num pé e voltava n'outro", olhando, de esguelha, por cima do ombro. "Bruxas havia, de certeza!!!"
Já se falara de quase tudo. Da escola e das suas brincadeira. Dos jogos. Das alegrias e tristezas. Para entreter os miúdos, a mãe ia cantando uma ou outra cantiga, das que aprendera de seus pais, do seu povo, ligadas ao trabalho rural ou à vida religiosa, adequada a cada época, ou alguma outra mais moderna, trazida, de viva voz, por um ou outro dos poucos que se atreveram a demandar a Capital. Notícias do Mundo? Quase só da guerra. Ou das suas consequências. E eram dadas de boca em boca. Apenas havia 3 rádios, na Aldeia. Ligados à bateria. "O 'troucolarouco' do Sr. Soares está sempre a falar na guerra, a falar na guerra..." lamentara-se, diziam, na galhofa, a Ti "Repoupinha"...
Ou pelo "Diário de Notícias". O Ti Fixe era o "correspondente". Ou pelo "O Século". Representado, na Aldeia, pelo sr. Amaral. Uma semana depois. Chegavam, pelo correio, que vinha de comboio, até à Fatela; na "camioneta do Simões", mais tarde da Viúva Monteiro, até Penamacor; até à Aldeia, numa saca de lona fechada e selada, à cabeça da Ti Rosa Chora... Nunca falhou um dia!!! Até ser dispensada pela carreira do "Martins Évora". Desde Castelo Branco. A Ti Rosa fizera a ida e a volta, durante anos e anos. Vinte quilómetros, a pé!!!
- Mãe, quer'ir p'rá cama... Tenho sono... - repetiu o pequeno.
- Ó filho, já te disse que o pai está quase a chegar... Depois do comer, vais dormir!
O pai entrou. Por fim, a família juntava-se. Uma "festa" a cada um dos meninos com um "Correu tudo bem?". E um "Boa noite, Minda!" num sorriso acolhedor para todos
- Pronto! Vamos cear... - decidia e agia a mãe.
Mal passava das 7 da noite. Lá fora, a escuridão era total e a ventania soprava nas muitas árvores, em volta do povoado. Ao toque das "Avé-Marias", nos sinos da Aldeia, rezara-se em cada habitação, e metera-se, definitivamente, em casa, um ou outro mais corajoso que afrontara o mau tempo, até mais tarde. Poucos se atreveriam a sair à rua, depois da ceia. A não ser para um último olhar nos palheiros, à luz da lanterna de azeite, antes de cada um se enfiar nas camas com enxergas cheias de palha centeia, no último Verão; os donos sabiam quanto a vida de todos dependia do bem estar dos mansos animais! Não podia haver descuido no seu tratamento e vigilância. Também para ir às tabernas. A "força" de um "copo" e mais... ou "dois dedos de conversa". A desculpa para algumas "coitadas"... E para os filhos, muitos, das "coitadas". Tabernas que causaram muito sofrimento.
Os pratos foram servidos, directamente, da panela. O azeite novo e, para o pai, mais um dente de alho, davam gosto e cheiro à comida. Novidade não havia naquela refeição simples, igual a tantas outras, neste tempo. Um pedaço de pão e uma talhada de queijo fresco podiam servir de sobremesa... Castanhas cozidas, noutra panela, ou assadas no calor do lume eram opção, muitas vezes...
Quando terminavam, já o mais novo dava "cabeçadas", incapaz de vencer o sono. As suas castanhas seriam comidas, na manhã seguinte. Ou haveria uma filhó mergulhada em café quente e doce, acabadinho de fazer, quando acordasse, feito com o pó deitado na água a ferver? Uma fascinação, a água escura, castanha e espumosa a subir e logo "acalmada" com uma brasa de nova fogueira, mergulhada naquela "fúria"... Mas, para isso, tinha que passar a noite... Depois, a mãe trataria de tudo, de novo! Em outro dia.
A botija de folha de Flandres, obra do Ti Zé Passotas, enchera-se com água quente tirada do caldeiro e dava já algum conforto à cama, onde não tardaria a cair, em sono profundo, por toda a noite. Sem sobressaltos nem pesadelos.
Acabada a refeição, ouvia-se uma voz arrastada e frágil:
- Ó Carminda, posso entrar?
- Entre, Ti Vicenta! ...
- Boa noite... Posso ficar um pouco convosco e aquecer-me, antes de ir para a cama? Estou lá sozinha e as noites são tão compridas...
- Então, já sabe que sim...
Era um momento bem esperado pelo mais velho dos miúdos, ainda desperto. Conhecia a Tia Maria Vicenta desde que tomara consciência de si próprio. Vizinha de sempre. Viúva. Filhos e netos a viver em vários sítios da Aldeia. Quase sempre "longe", naquelas noites invernosas, frias e escuras. A criança sabia que ela era velha. De idade indefinida. Que nunca chegou a precisar. Quase uma avó. Mas muito mais velha. Até a avó Emília a tratava por ... "vocemecêi".
- Ó Ti Vicenta, olhe-me aqui pelos garotos enquanto vou ali à fonte. À loja do senhor Mendonça. Ao palheiro. À "Tapada"... Meninos, obedeçam à Ti Vicenta...
Nos seus menos de 30 anos, nunca tinha descanso, aquela jovem mãe e mulher. E por ali ficavam as crianças, sob a guarda de um só olho - a tia Vicenta cegara do outro, havia muito, sem se saber bem a causa nem nunca ter conhecido médico nem enfermeira...
A chegada da Ti Vicenta marcava o período final do serão. Alargava-se a "roda", abria-se espaço ao pé da mulher da casa que aproveitava para se levantar. Enquanto lavava a louça, arrumava a cozinha e ultimava a "comida" para o porco, a velha senhora aproveitava para quebrar a sua solidão, aquecer-se num lume que não tinha na sua pobre casa e contar histórias do "outro mundo"... Que deliciavam o garoto e o enchiam de terrores misteriosos.
E lá começava ela: "Uma vez...", momento que era desejado e temido.
- Então, Filho, estás com medo?
O arrepio percorria a espinha da criança, de alto a baixo, e puxar o tripeço para mais próximo das chamas ou agarrar-se ao adulto eram gestos irreprimíveis.
- Não, Pai, tenho frio!!! - murmurava o miúdo, fascinado e assustado, sem querer dar sinal da cobardia que sentia.
As histórias eram quase sempre as mesmas. Tratavam de cemitérios, bruxas, lobisomens. Almas do outro mundo, mortos que falavam, que se tinham levantado no caixão, vivos que fugiam assustados. E que ficavam gagos. Ou mesmo sem fala. Noutras ocasiões, vinham as aventuras dos contrabandistas. Ou de pastores que lutaram com os lobos que podiam seguir as pessoas até ao povoado. Na realidade ou na imaginação, pois o escuro daquelas noites não permitia "ver um palmo à frente do nariz". Ou da cheia que levara o Carriço, a mulher e os filhos numa noite de trovoada, a dormir lá na choça... Com todo o rebanho... "Nem acordaram, coitadinhos..."
Falava, pausadamente, mastigando a saliva na sua boca quase sem dentes. Restavam "as cravelhas", como ela dizia. Cara cheia de rugas profundas, cabelo branco e farto repuxado para a nuca e escondido atrás do lenço preto. Cativante, no entanto.
E os olhos do menino iam pesando; encostava a cabeça no joelho do Pai e acabava por adormecer.
- Então, filho... - acordava-o a Mãe - tens de ir para a cama. Anda, que o Nando já dorme...
A tia Vicenta levantara-se também, pois o ritual estava cumprido. Aos tropeções, com a candeia de azeite, que o vento apagaria, na sua mão, metendo os pés nas poças de água, lá chegaria à sua casa ainda mais humilde do que aquela que a acolhera. O miúdo, a custo, despedia-se daquele mundo atraente e de sustos. Enfiava-se, a correr, na cama já aquecida pelo irmão e com a botija lá ao fundo dos pés. Sim, dormiam os dois no mesmo leito. Em tempos que não voltaram. Antes, a custo, ainda tivera de se benzer, rezar as 3 Avé-Marias e o Santo Anjo do Senhor... Não havia dispensas nem desculpas para não rezar!
A chuva continuava a cair, sem cessar. O vento assobiava nas telhas da casa e nas frestas das portas e das janelas. O quarto, forrado com madeira de pinho, parede interior de taipa, caiado de branco, dava uma protecção acolhedora, convidando ao repouso, entre lençóis de flanela grosseira e cobertores ásperos da lã das ovelhas com mantas de farrapos. Quando as orações terminavam, mal balbuciadas, já os olhos dele estavam fechados. Para adormecer, num instante. Sem comprimidos. Por vezes, com pesadelos. Quase sempre até às 8 horas do dia seguinte.
Ainda não havia muito, o relógio, na torre da igreja, batera as 9 horas daquela noite, quando já o dia se fora, há muito.
Na Aldeia, quase todos repousavam. A última taberna fechara as portas. O dia seguinte continuaria a não ser fácil. Com chuva ou sem ela. Talvez com mau tempo, pois as dores, nos ossos da Ti Vicenta, assim o anunciavam...

1 comentário:

LUNA disse...

Prof!!! Não sei que lhe diga!!! Para mim a "melhor" de todas!!! Sorri e revi alí a minha vida na casa dos meus avós!! A Carreira do "Simões"...Fatela...as panelas de ferro..o "marão"(eu pensava que era "mourão)"... a matança do porco...TUDO...uma delícia!!! Publique!!! Serei a 1ª. a comprar!!! PARABÉNS!!! Que inveja da sua escrita