domingo, abril 11, 2010

Histórias de Aldeia

Estávamos a findar a década de 50 do século passado. Se havia um momento em que valia a pena andar pelas ruas de Aldeia, escolho o meu preferido, o do entardecer, com o Sol já escondido atrás da Serra. Uma boa parte dos gaiatos brincava nas ruas, como só se pôde brincar, naquela época. E o regresso dos camponeses tinha um não sei quê de repetitivo sempre renovado. Cestos ou baldes e caldeiros à cabeça das mulheres, homens de jaqueta ao ombro ou pelas costas e chapéu na cabeça, alguns conduzindo animais, um ou outro em cima da burra, pernas pendentes ou encaixado entre as angarelas, molhos de erva ou de lenha, aqui e ali os ganhões encaminhando as vacas, tão indispensáveis num mundo que só vira o tractor a puxar a malhadeira. E com ajuda dos mansos animais! Havia quem tivesse uma cabra, com sorte 2 ou 3, um ou outro borrego, que se iam criando, com esforço e cuidado, para lhes aproveitar o leite e serem garantia de duas ou três notas ( de 100!!!) lá na feira, em Penamacor, ou ali, se o comprador passasse para acertar um negócio que evitasse a sempre temida deslocação à Vila.
Não raro, por força do aproveitamento das pastagens, que faltavam, na hora da recolha havia rebanhos a atravessar o povoado, com o tão cativante tinir de chocalhos e campainhas, aqui e além entrecortadas pelas exclamações dos pastores a incentivar os gados, ou pelo latir de cães que não resistiam a uma boa pega, normalmente acalmada com duas pauladas nos lombos.
A Primavera afirmava-se e o caminhar para o Estio era inevitável. Como aquele sofrido viver.
Mas vamos às nossas duas histórias, a primeira ligada à Quaresma. A segunda também tem que ver com a forma como se vivia a Religião, ainda que, de modo um tanto descabido, quase desastrado, não fora a "santa inocência" das personagens intervenientes.
Ser diferente era um bocado complicado, ao tempo. Como pessoa ou até como bicho. O "normal" era que as cabras tivessem chifres e as ovelhas não. Se a Natureza se encarregava de proporcionar o contrário, podia "dar história". Foi assim que, nas 5 ou 6 cabras de um dos "condutores" das Ladainhas, havia de aparecer uma delas sem os tais... chifres. Foi-se esperando, esperando e, para desgosto do seu proprietário, os corninhos não apareciam. Nem haviam de aparecer. Pronto, o Ti F. tinha uma cabra "môtcha". Depois ele, ao chamá-las, lá ia clamando "malhada", "branca", "bargada"... e aquela, pronto, tinha de ser "môtcha". Não estivera ele em Aldeia, onde se apontavam para cima da centena de alcunhas, e aquilo até poderia não ser notado, mas daí a passar ele também a ser "Môtcha", Ti Môtcha e até "Môtcha-Môtcha" foi um passo. E quanto mais ele desesperava... mais o "Môtcha" ia sendo sussurrado, de modo audível, à medida que ele se encaminhava para casa, à procura do descanso ao fim de um um dia bem trabalhoso. As tardes eram sempre mais perigosas, com aquela garotada já fora da escola e ali sempre pronta para arreliar. E quanto mais ele se arreliava, mais o "Môtcha" ressoava por vielas e becos da pacata Aldeia. Um desespero. Um desassossego. Um calvário.
1. Era sexta-feira da Quaresma. A Ladainha estava, na hora habitual, frente à capela do Pereiro. Muita gente, como de costume. Já os "Senhor, tende piedade de nós!" haviam sido cantados e iniciavam-se os "Padre-nossos" pelo bem estar de presentes e ausentes, de vivos e defuntos.
A intenção fora proclamada e, em uníssono, começara-se a rezar "Padre Nosso que estais no céu..." quando, ali da esquina da casa da Ti Joaquina Rosa, uma estreita passagem do largo do "forno de cima" para o local da assembleia, se ouve a voz de um rapazão da nossa terra, conhecido pelas suas "brincadeiras", bradando por cima das vozes que rezavam:
- Môtcha!!!
Nem houve tempo para reacção de mais ninguém. Com igual energia ouve-se:
- Môtcha a p. que te pariu!!!
E "... santificado seja o Vosso Nome venha a nós o Vosso Reino..." Até ao fim!
Como não podia deixar de ser, a Ladainha só acabou na igreja paroquial.
De certeza de que Nosso Senhor perdoou a ambos. Perdoarem-se um ao outro... demorou mais tempo, mas o "Môtcha" foi caindo em desuso.
É que "Deus escreve direito por linhas tortas".
2. Ah! O Latim ou o "latim" também podia originar algumas confusões. Talvez mais do que seria desejável... Por isso, saudou-se o aparecimento das celebrações no vernáculo nacional.
Aquele princípio do mês de Maio até nem correria mal, se não fosse o acontecimento inusitado de os "amigos do alheio", gente de fora, certamente, terem feito desaparecer dois ou três burros, uma notícia do outro mundo para alimentar o "jornal" local e causar grande alarme na Povoação, onde algumas das portas nem sequer tinham chave e ficavam presas, noite e dia, por um pequeno ferrolho, ou até uma "cravelha" de madeira fixa por um prego que lhe servia de eixo.
As Ladainhas de Maio acabavam de ocorrer e haviam sido lançadas as bênçãos aos campos, aos animais e às sementeiras e também a estas invocações o Povo respondia "TÉ ROGAMUS, AUDÍ NÓS!"
No aconchego de uma bela tarde primaveril, uma das abastadas proprietárias da Aldeia, já viúva, como de costume visitava a sua quinta, ali na falda do Chão dos Prados. Em permanência, tinha lá um casal de quinteiros que se iam encarregando de fazer render um dos melhores bocados de terra da Aldeia, com a vantagem de uma nora num poço poderoso, um luxo de ricos, na época, puxada pela energia de uma burra bem tratada, que dava água farta para horta e batatal, milhos e pomar. Uma beleza.
Lá no meio da horta, tratando do "viço" ou "renovo", mondando e sachando, andava a quinteira a fazer pela vida da patroa e a tentar merecer - sem dúvida que o merecia - o seu "pão nosso de cada dia".
À medida que se aproximava da horta, a Senhora ia dando conta de que a empregada cantarolava a "música" das ladainhas de Maio. Entendeu mesmo que, à música, se juntava o "latim". Não lhe parecendo "muito católico", a Senhora pergunta:
- Ó Maria, o que é que estás a cantar?
- Ai, m'nha Senhora, então o que todos cantam agora...
- Então, repete lá....
- SE ROUBAMOS... MAL DE NÓS!!!
- Oh! Maria! Mas SE ROUBAMOS o quê? e MAL DE NÓS porquê?
- Ora, SE ROUBAMOS ... os burros! MAL DE NÓS... porque ficamos sem eles!
Notas:
1. Em Latim, não havia acentos; acentuei para ajudar na pronúncia mais aproximada...
2. As situações e personagens são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com situações vividas, realmente, são pura coincidência...
3. A foto é de Marta Vicente, in página de FaceBook de AJP.
4. Ver mais em
e a
5. A nossa Banda em

3 comentários:

Maria Helena disse...

Boa noite professor! hoje pude ler o seu texto "Merenda 1", tendo apreciado muito. Assisti o vídeo da Aldeia de João Pires, e a Banda
Filarmônica, tudo muito lindo.A música torna o seu blog vivo, trazendo para ele a presença da sua cultura, graça e leveza, como complemento do que se acaba de ler.
Tudo muito suave, as imagens muito belas, é como se eu estivesse presente no cenário, na dança, com as crianças, sentindo o sol,e vendo os animais. Sou filha de fazendeiro, em Minas Gerais, nasci em 1953, até a minha adolescência vivi no campo, pelo menos em período de férias. No colégio cultivávamos a música...Parabéns pela literatura, não tenho palavras para me expressar melhor...Muito agradecida pelo presente que nos dá ao resgatar a memória de tempos tão saudáveis,"sem plásticos", quando se bebia água nas fontes naturais, sem correr riscos maiores.
Fique na Paz!

António Serrano disse...

D. Maria Helena,
As suas palavras tão lindas quão imerecidas é que vieram enriquecer um pouco este bem pobre trabalho.
Aqui fala-se de um tempo em que a vida era simples e pacífica, sobretudo de uma idade que não se repete, quando tudo era "certeza". Com muita Esperança.
Actualmente e uma vez que as nossas Aldeias do Interior estão a ficar abandonadas e os nossos filhos e netos não imaginam como lá se vivia, tento fazer memória de uma época que não mais voltará.
Paz também para Si. E para sua Família!
Muito obrigado.

Honorato disse...

Amigio Serrano

Vi-me a mim próprio neste pastoreio, quando pela primeira vez nos medos de cinquenta, levei uma junta de vacas a pastar. Era duro, mas as vacas sabiam mais que eu e eram elas que me guiavam. Como o mundo mudou... Felizmente, temos alguém que nos aviva a memória. Muito obrigado por isso.