Todo o rebanho se encontrava à sombra das oliveiras, as cabras deitadas na terra nua e as ovelhas, de pé, focinho rente ao chão. O sol brilhante enchia o espaço e o calor abrasava. O ar “tremia” em "deslocações" contínuas. Um coelho, passou, lesto, a caminho da represa para se dessedentar. Lá bem no alto, como que a flutuar, um casal de cotovias tentava fugir do calor que a terra reflectia. Abrigado, com o bando, ali ao lado, numa moita de giestas, um perdigão dava sinais de si com o seu cantar tão conhecido das pessoas de campo. A cigarra não largava a sua cantiga, parecendo bem satisfeita com o Verão que culminava. Aqui e além, um ou outro piar das aves que se abrigavam nas sombras das figueiras e nos silvados. Nada que se comparasse com a festa da manhã…
Os garotos não deram grande importância à bolsa vazia e à merenda comida. Como o Pai lhes recomendara, a sua sombra estava bem pequena e devia ser meio-dia, pelo que o fim da tarde havia de chegar bem depressa. Então não ouviam a Avó Emília dizer-lhe que “quem não come por ter comido não tem mal de perigo”?!
Ora brincando, ora sentados nas pedras que os pastores usavam para descansar, mais inquietos que sossegados, idades próximas, raramente estavam separados e o entendimento era quase perfeito. Haviam bebido água nas fontes por onde foram passando e ali mesmo a 50 metros estava uma delas. Com o coucho, por onde todos bebiam. Um enxaguar rápido com a água fresca e cristalina e estava pronto para outro….
De vez em quando, um ou outro bando de pássaros procurava abrigo naquelas árvores, mas o “arraial” instalado depressa os fazia desandar.
As brincadeiras foram esmorecendo e até podiam aproveitar para dormir um pouco. Como lhes dissera o Pai. Lá estava a cama de fetos e restolho para ser aproveitada. Mas uma crescente inquietação começava a perturbar o dia que até nem correra mal. Ouve-se a voz do mais novo:
- Mano, tenho fome….
- Olha, a merenda acabou-se. E já falta pouco para voltarmos…
A sombra, nesse dia, nunca mais começava a crescer. Medida mais do que uma vez, mas sempre do mesmo tamanho.
- Olha lá. Também tenho fome. Se quiseres ficas com o gado e eu vou buscar de comer. - sugeriu o mais velho.
- Não posso ir eu?!
- Não que podes perder-te. Não sabes o caminho…
A fome foi o elemento decisivo para que ambos se pusessem de acordo. O mais velho ficava e o mais novo teria de percorrer, Sol a pino, em dois sentidos, o caminho que os separava da almejada refeição.
Estavam a começar a jantar, quando o Pai exclamou:
- Ó Carminda, há qualquer coisa que não corre bem. Os gaiatos separaram-se e um deles vem p’ra cá…
Do outeiro onde a casa de campo fora construída avistava-se uma área enorme e a quebra do padrão definido para aquele dia não lhe escapara. A ansiedade tomara lugar à mesa e uma eternidade se foi passando.
O gaiato, pé ligeiro, sem estar confinado ao caminho que o rebanho tinha de seguir, foi “a direito”, tanto se servindo das veredas tão típicas das nossas terras como, se fosse necessário, prosseguindo, a corta mato, por restolhos e olivais.
Ainda os adultos se interrogavam sobre o que teria acontecido e já o pequeno, rosto vermelho, "queimado" por aquela “solina” de Julho, todo suado, pulava o muro da Tapada, passando ao fundo do valado, pela figueira “preta”, rente à eira e ali estava ele, a “deitar os bofes pela boca”, impedido de responder à Mãe que, desde que o sentira próximo, não se cansava de perguntar:
- Ó filho, o que é que aconteceu???!!!
O gaiato atingira a meta. A tão grande ansiedade, apenas conseguiu responder:
- Venho buscar mais merenda!!! Estamos cheios de fome...
Primeiro sentiu-se o espanto – afinal, os garotos “nunca” tinham fome… - depois ouviu-se uma gargalhada geral, à mistura com abraços e beijos. Era só isso?! Que alívio, uff!
Dadas as explicações, era preciso voltar. Não sem que a criança "tratasse" da sua própria fome, enquanto a Mãe preparava nova remessa.
Saca aviada, aí volta ele para junto do irmão. Que, lá de longe, quase seguira, passo a passo, a caminhada do seu companheiro de trabalho: ansioso, quando desaparecia nas “baixas” ou no meio do arvoredo, aliviado quando o via reaparecer.
Os garotos não deram grande importância à bolsa vazia e à merenda comida. Como o Pai lhes recomendara, a sua sombra estava bem pequena e devia ser meio-dia, pelo que o fim da tarde havia de chegar bem depressa. Então não ouviam a Avó Emília dizer-lhe que “quem não come por ter comido não tem mal de perigo”?!
Ora brincando, ora sentados nas pedras que os pastores usavam para descansar, mais inquietos que sossegados, idades próximas, raramente estavam separados e o entendimento era quase perfeito. Haviam bebido água nas fontes por onde foram passando e ali mesmo a 50 metros estava uma delas. Com o coucho, por onde todos bebiam. Um enxaguar rápido com a água fresca e cristalina e estava pronto para outro….
De vez em quando, um ou outro bando de pássaros procurava abrigo naquelas árvores, mas o “arraial” instalado depressa os fazia desandar.
As brincadeiras foram esmorecendo e até podiam aproveitar para dormir um pouco. Como lhes dissera o Pai. Lá estava a cama de fetos e restolho para ser aproveitada. Mas uma crescente inquietação começava a perturbar o dia que até nem correra mal. Ouve-se a voz do mais novo:
- Mano, tenho fome….
- Olha, a merenda acabou-se. E já falta pouco para voltarmos…
A sombra, nesse dia, nunca mais começava a crescer. Medida mais do que uma vez, mas sempre do mesmo tamanho.
- Olha lá. Também tenho fome. Se quiseres ficas com o gado e eu vou buscar de comer. - sugeriu o mais velho.
- Não posso ir eu?!
- Não que podes perder-te. Não sabes o caminho…
A fome foi o elemento decisivo para que ambos se pusessem de acordo. O mais velho ficava e o mais novo teria de percorrer, Sol a pino, em dois sentidos, o caminho que os separava da almejada refeição.
Estavam a começar a jantar, quando o Pai exclamou:
- Ó Carminda, há qualquer coisa que não corre bem. Os gaiatos separaram-se e um deles vem p’ra cá…
Do outeiro onde a casa de campo fora construída avistava-se uma área enorme e a quebra do padrão definido para aquele dia não lhe escapara. A ansiedade tomara lugar à mesa e uma eternidade se foi passando.
O gaiato, pé ligeiro, sem estar confinado ao caminho que o rebanho tinha de seguir, foi “a direito”, tanto se servindo das veredas tão típicas das nossas terras como, se fosse necessário, prosseguindo, a corta mato, por restolhos e olivais.
Ainda os adultos se interrogavam sobre o que teria acontecido e já o pequeno, rosto vermelho, "queimado" por aquela “solina” de Julho, todo suado, pulava o muro da Tapada, passando ao fundo do valado, pela figueira “preta”, rente à eira e ali estava ele, a “deitar os bofes pela boca”, impedido de responder à Mãe que, desde que o sentira próximo, não se cansava de perguntar:
- Ó filho, o que é que aconteceu???!!!
O gaiato atingira a meta. A tão grande ansiedade, apenas conseguiu responder:
- Venho buscar mais merenda!!! Estamos cheios de fome...
Primeiro sentiu-se o espanto – afinal, os garotos “nunca” tinham fome… - depois ouviu-se uma gargalhada geral, à mistura com abraços e beijos. Era só isso?! Que alívio, uff!
Dadas as explicações, era preciso voltar. Não sem que a criança "tratasse" da sua própria fome, enquanto a Mãe preparava nova remessa.
Saca aviada, aí volta ele para junto do irmão. Que, lá de longe, quase seguira, passo a passo, a caminhada do seu companheiro de trabalho: ansioso, quando desaparecia nas “baixas” ou no meio do arvoredo, aliviado quando o via reaparecer.
Não lhe escapara a chegada do mensageiro junto dos Pais e, com enorme alívio, o viu partir em sua direcção. Depois, era uma questão de esperar. Uma espera maior do que pensou, quando o irmão iniciara a sua missão.
O tempo cura tudo. Ou quase. O miúdo tinha o pé ligeiro e ali estava ele. Não resistiram a correr um para o outro. A partilha foi fraterna. Na verdade, afinal, tinham menos fome do que haviam pensado.
Satisfeitos, mais um gole de água, o Sol a cair para o lado das Águas e toca a empurrar as ovelhas e as cabras. Para completarem a volta ao pasto.
A passarada voltava a dar sinais de vida, aqui e ali ouviam-se chocalhos e campainhas de outros rebanhos. Às vezes, o assobio dos pastores, ou o ladrar furioso da canzoada. Que não havia maneira de se entender.
De vez em quando, mais um coelho saltava, assustado, desaparecendo, rapidamente, em zigezages estonteantes. Agora, as cotovias estavam mais à vontade e aqui e ali iam debicando. E cantando.
A tarde caiu vagarosamente. Sempre quente. Os miúdos matavam a sede nas fontes e os animais iam beber nas charcas. Depois, sempre avançando, sempre pastando.
Fez-se o mesmo caminho, no inverso, para o regresso. Não iam sós. Mais à frente, o Manel com os animais do Ti Bernardo e atrás, o Rui, com os do Ti Candeias. Na horta do Ti Joaquim, carregavam-se sacos de batatas para cima de uma burra e a Avó paterna regava a horta, ajudada pela filha mais nova.
- Olá, Avó! Olá Tia!
- Então hoje foi a vossa vez?
A ribeira fora atravessada no “pontão” e o destino estava ali, a dez minutos.
A poeirada era mais que muita. Pressentindo o fim da jornada, os animais aceleraram. Já a sombra dos eucaliptos e das sobreiras se estendia pelos campos, quando receberam os aplausos dos adultos que atavam os sacos e os colocavam sobre o carro de vacas que os havia de pôr a recato para matarem a fome num ano longo que ali começava.
O tempo cura tudo. Ou quase. O miúdo tinha o pé ligeiro e ali estava ele. Não resistiram a correr um para o outro. A partilha foi fraterna. Na verdade, afinal, tinham menos fome do que haviam pensado.
Satisfeitos, mais um gole de água, o Sol a cair para o lado das Águas e toca a empurrar as ovelhas e as cabras. Para completarem a volta ao pasto.
A passarada voltava a dar sinais de vida, aqui e ali ouviam-se chocalhos e campainhas de outros rebanhos. Às vezes, o assobio dos pastores, ou o ladrar furioso da canzoada. Que não havia maneira de se entender.
De vez em quando, mais um coelho saltava, assustado, desaparecendo, rapidamente, em zigezages estonteantes. Agora, as cotovias estavam mais à vontade e aqui e ali iam debicando. E cantando.
A tarde caiu vagarosamente. Sempre quente. Os miúdos matavam a sede nas fontes e os animais iam beber nas charcas. Depois, sempre avançando, sempre pastando.
Fez-se o mesmo caminho, no inverso, para o regresso. Não iam sós. Mais à frente, o Manel com os animais do Ti Bernardo e atrás, o Rui, com os do Ti Candeias. Na horta do Ti Joaquim, carregavam-se sacos de batatas para cima de uma burra e a Avó paterna regava a horta, ajudada pela filha mais nova.
- Olá, Avó! Olá Tia!
- Então hoje foi a vossa vez?
A ribeira fora atravessada no “pontão” e o destino estava ali, a dez minutos.
A poeirada era mais que muita. Pressentindo o fim da jornada, os animais aceleraram. Já a sombra dos eucaliptos e das sobreiras se estendia pelos campos, quando receberam os aplausos dos adultos que atavam os sacos e os colocavam sobre o carro de vacas que os havia de pôr a recato para matarem a fome num ano longo que ali começava.
2 comentários:
Quem bem que escreves, António Serrano. E que inveja que eu tenho disso, porque também gostaria de escrever mas falta-me talento para tal.
Estas crónicas sobre 'A Merenda' fazem-me voltar 55 anos atrás, quando também eu me iniciei na vida do campo a guardar vacas e a 'fazer' a terra. Todas estas imagens escritas me são familiares e me sabem bem. Deixa-me continuar a roubar-te as tuas memórias para que as possa ter como minhas também. Obrigado, meu amigo.
Que bom ter acabado com Romaria!! Todas as suas histórias são lidas, bebidas e aplaudidas por mim!! Bem haja Professor..aprendi a aprender consigo!
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