terça-feira, fevereiro 02, 2010

Tarde, na Aldeia...

As tardes eram curtas e frias, naquele fim de Outono, já Novembro bem adiantado. Muitas vezes chuvosas, com vento à mistura. Pelas quinze horas, a "escola" acabava e vinha então o melhor momento do dia para aquela garotada numerosa que enchia de vida e alegria as ruas, largos e becos da Aldeia. Excepto para alguns mais "infelizes” que tinham por dever ajudar os Pais na guarda dos animais, enquanto os progenitores apanhavam a "erva" para os bichos comerem durante a noite para estarem prontos a trabalhar, logo de manhã, no dia seguinte, quando o "tempo" o permitia. Outras Crianças viviam mesmo no campo e lá ... tinham de regressar. Para trabalhar, mesmo no escuro.
Deixemos, por hoje, a história destes menos afortunados e fiquemo-nos pela garotada do "Povo". Só a frequentarem a Escola eram perto de cem alunos, na maior parte rapazes. Depois do bater das três horas, no relógio da torre da igreja, pela estrada acima, dada por finda a “prisão”, chilreavam como pardais. Ia-se a casa, num instante, para largar a “bolsa” dos livros, poucos, e em busca de um pedaço de pão e mais "qualquer coisa" que podia ser só pão. Com sorte, uma talhada de queijo. Umas azeitonas. Um naco de toucinho. Julgo que nenhum de nós sabia o que era manteiga. Mas, verdadeiramente, o que interessava era a brincadeira, pois não tardaria que ficasse escuro. Não havia frio que vencesse aquela enorme vontade de brincar. Os professores haviam abandonado o edifício da escola e, apesar das recomendações de não se voltar para lá a brincar no pátio de recreio, este e
ra o nosso lugar preferido. Fazia-se um silêncio cúmplice e nenhum daqueles miúdos seria capaz de denunciar os prevaricadores. A autoridade "policial" na Aldeia era o regedor. O nosso regedor, o Ti Machado, “obrigava” que um de nós ficasse à espreita, pois ele tinha de passar ali, sem falha, de regresso do seu campo para casa. À aproximação do regedor, um magote de garotos agachava-se atrás do muro do pátio, em completo silêncio, e só se ouvia o bater dos juvenis corações acelerados pela brincadeira e pelas correrias. E ele, mansamente, no seu passo calmo de reformado da Guarda-Fiscal, ia avançando, para o centro da Aldeia. Nunca cheguei a saber se ele não nos via ou se não nos queria ver. Certo, certo é que se contentava com esta atitude de respeito daquela miudagem e também nunca nos pôs fora da brincadeira. A escola tinha o melhor espaço da povoação onde se podia jogar à bola. Se a bola assim se podia chamar. De trapo, de cortiça, de uma meia. Mas o futebol não tinha ainda lugar cativo no coração da garotada de então. Éramos muitos e o pátio da escola nunca daria espaço suficiente para tantas e tão variadas diversões. Naquele tempo, com alimentação pouco calórica e com o movimento constante, não havia crianças gordas. Então cada rua, largo ou beco tinha, pelo menos, meia dúzia de miúdos. Os outros lugares preferidos para as nossas brincadeiras, para além do já referido terreiro da escola, um pouco no limite do povoado, eram o largo do Pereiro, no coração da Aldeia, o adro da igreja, o largo do Rato, com aqueles 200 metros de estrada alcatroada, uma novidade e um "luxo" nos anos 50. Eram pontos de confluência de várias ruas e uma atracção irresistível. Naqueles locais inesquecíveis se jogava às escondidas, o pião, versões "à nica" ou ao "botafora", o descanso, o eixo corrido ou o “um por um, dois bois, três ingleses…”, o jogo do lenço, o dos polícias e ladrões, o da palmada, o do burro, simples ou corrido, o do marra, o da piorreca (com as rodas dos carrinhos de linhas), o dos botões (muitos tinham as mães que comprar e pregar), as escondidas ( 1...2...3... 20 "arredonda, arredonda,,, quem não está que se esconda... precedido do ita, ita, ita ááá!!! quem s'tá livre, livre s'táá" ou "entra o avião na escola militar, onde é que vai poisar? Lis-boa- a" "Tu vai esconder..."). Às vezes, o que ficava "a tapar" inventava e começava logo pelo "dezaum, dezadois, dezatrês, dezaquatro, dezacinco, dezasseis.... dezavinte! arredonda, arredonda..."), o "jogo da China” ou das 5 pedrinhas, o farrapo queimado, a mamã dá licença, a bilharda, o jogo das nações. O do descanso era jogado com variantes, assim como os da barra e a barra do lenço. E o do mata com aquele seu grito de “faz jogo!!!” Uma boa parte deles tinha época própria. Aqui ficam apenas alguns dos jogos participados pelos rapazes, com duas ou três excepções, pois das meninas eram mesmo "tabu" para a malta que havia de “ir às sortes”, um dia… Precisarei de ajuda amiga para entrar nas brincadeiras das nossas colegas e conterrâneas.
Faziam-se ainda corridas de arcos - de arame, destramente conduzidos com o "guiador" ou de aros de bicicletas, um luxo. As crianças faziam os seus próprios brinquedos: carros de cortiça, de madeira, de cana e até de latas de conservas... As primeiras trotinetas com rolamentos de esferas, duas tábuas de madeira articuladas por "dobradiça" metálica arrancada "a ferros" - com toda a propriedade da expressão - numa das forjas da Povoação, foram um verdadeiro achado... As tardes eram um corropio que enchia o povoado de vida e som.
Só havia ordem de estar fora de casa, na rua, até ao toque das "Ave-Marias", quase sempre ponto final para as brincadeiras de cada dia. Depois da ceia, “andar na rua” era uma regalia a que só se podia aspirar com os 18 anos feitos. Até porque ficava escuro como breu e o convite à vadiagem não era atractivo. Nem os maiores nos davam a mínima chance.
À hora daquele toque, boa parte dos adultos havia já regressado das tarefas do campo, se permitidas pelo tempo, especialmente a apanha da azeitona, o cuidar dos animais, as hortas. As mulheres acendiam os lumes, quase sempre com lenha fraca e os fumos iam saindo pelos telhados de telha vã, subindo no lusco-fusco do anoitecer, para o céu ainda azul, iluminado com os últimos raios do sol poente, adivinhado-se noite bem fria e manhã de geada. As chaminés eram uma raridade a que só os de mais posses tinham acesso. Os homens arrecadavam e acomodavam os animais nos palheiros e outros passavam pelas tabernas para mais um copo com os “amigos do copo”.
Depois do toque sagrado só se brincava à porta de casa, excepcionalmente. Ali, " à mão de semear" dos pais, era fácil juntar um grupinho de crianças vizinhas para ainda se divertir, até no escuro - e que escuro! - da noite, que caíra. Para se brincar até no frio e na noite era precisa "organização". Assim, antes, ainda com luz solar, os garotos haviam ido pelos campos limítrofes da Aldeia à procura de gravatos ou gravetos, às vezes surripiando um pouco da fraca lenha lá de casa, e faziam a sua própria fogueira ali mesmo, na rua, ao ar livre, sob o estrelado do céu, enquanto as mães, regressadas dos trabalhos do campo, acendidas as lareiras, tendo ido buscar cântaros de água à fonte e comprado qualquer coisa numa das lojas da terra, se entregavam à tarefa de cozinhar a fraca ceia, quase sempre, nesta época, "couves traçadas" com batatas e um fio de azeite. Havia, às vezes, um bocado de chicharro, 3 ou 4 por vinte e cinco tostões. Se houvera a sorte de cozer o pão, metido o peixe numa "caçola" de barro, um dente de alho, azeite e cebola e o forno da Aldeia faria o milagre de uma ceia "de reis".
Os garotos, à volta da fogueira, conversavam - Paulo de Carvalho não teria ainda nascido? Havendo alguma sorte, com o "borralho" enchiamos a braseira de uma vizinha, a troco de uma moeda de 5 tostões ou de duas laranjas... A hora da ceia chegava, num instante, e a brincadeira acabava mesmo. Depois, um ansiar pelo dia seguinte. Sem novidades. Desejado, apesar de tudo. Para ser vivido, de novo, intensamente.

1 comentário:

Zé Morgas disse...

Belo texto Professor.
Faz-me sonhar com as minhas brincadeiras de infância.
O jogo do espeta, ainda conservo na cabeça a marca de um, levei uns pontitos jeitosos como dizia a minha Mãe.
O jogo do arco. Arcos de luxo eram aqueles feitos da aba e do aro de apoio, nos estrados de madeira, das braseiras de zinco. Quando o fundo já não permitia mais nenhuma intervenção do latoeiro, quero dizer mais nenhum remendinho, a malta descravava a aba e o aro do corpo da braseira. Eram os que permitiam uma maior direcionabilidade. Tinham um CX de penetração ímpar.
Ainda hoje, quando vejo provas de ciclismo em pista fechada, com a roda traseira sem raios, blindada, lembra-me o jogo do arco, feito precisamente com esse conjunto aba / aro das velhinhas braseiras de zinco.
Braseiras de cobre, eram só para os ricos e nem arcos "davam".
Com um grande abraço
Zé Morgas