1.Dos homens
A Primavera aí estava e o dia lá nos campos fora bem duro. Logo ao entrar da noite, os sinos anunciaram que a ladainha havia de sair. É Quaresma e é sexta-feira.
A Primavera aí estava e o dia lá nos campos fora bem duro. Logo ao entrar da noite, os sinos anunciaram que a ladainha havia de sair. É Quaresma e é sexta-feira.
O relógio da torre comandava os actos da população, sem obrigar ao cumprimento rigoroso de horários do nosso tempo. A escuridão mergulhara a Aldeia num ambiente de mistério e cada retardatário apressava-se a chegar a casa para uma ceia frugal e rápida, que o tempo já não sobrava. Àqueles corpos cansados era ainda exigido mais um esforço. Generosamente dado. De graça. À procura da Graça.
Por isso, homens, rapazes e gaiatos, iluminando-se com lanternas de azeite e candeeiros de petróleo na mão, ou “apalpando” o chão empedrado, tropeçando aqui e ali, foram-se chegando ao adro da igreja, uns entrando, outros cá fora, para a tradição se cumprisse. E também a devoção e a fé.
A ladainha ia sair. As nove já se ouviram, lentamente batidas, rasgando a noite fria e estrelada, ressoando pelas quebradas da Serra.
Na igreja, começaram as primeiras invocações. O Ti Iná, O "Xequim Pataco", o Ti “Feduchas” e o ti Zé Oliveiros, “o Padre do Soito”, ano após ano, coordenavam e dirigiam este bem piedoso acontecimento.
- Senhor, Deus, misericórdia!
- Senhor, Jesus, misericórdia!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho misericórdia!
A profunda escuridão da noite era quebrada pela luz das lanternas e de dezenas de pinhas acesas, nas mãos dos penitentes, ou enfiadas numa vara, prevenindo queimaduras. As pinhas haviam de durar para todo o percurso, acendendo-se cada uma na que se finava, para que a procissão caminhasse em paz e segurança, com respeito e recolhimento, pelas ruas da Aldeia. Às mulheres, meninas e meninas era vedado participar. O seu dia chegaria.
À saída da Cruz procissional, transportada por um dos homens, ladeada por duas lanternas, empunhadas por dois outros fiéis, os três vestidos com opas negras, os presentes tiravam chapéus e o cortejo seguia, com a invocação de anjos e santos, e pedidos de clemência e compaixão a Deus e Seu Filho. Era um acontecimento vivido, semana após semana, sem direcção do pároco que, se quisesse participar, o faria apenas na qualidade de simples penitente, como todos os outros crentes. Ao longo das ruas, espreitando atrás dos vidros das janelas ou mesmo de janelas abertas, iam aparecendo as caras femininas, ajudando a iluminar a noite com um ou outro candeeiro e juntando-se, de passagem, aos cânticos e imprecações dos homens, desfiando a ladainha dos santos, invocados-os um a um, num "Latim" de quem nunca o estudara, mas que mergulhava a celebração ainda no mais profundo misticismo:
Por isso, homens, rapazes e gaiatos, iluminando-se com lanternas de azeite e candeeiros de petróleo na mão, ou “apalpando” o chão empedrado, tropeçando aqui e ali, foram-se chegando ao adro da igreja, uns entrando, outros cá fora, para a tradição se cumprisse. E também a devoção e a fé.
A ladainha ia sair. As nove já se ouviram, lentamente batidas, rasgando a noite fria e estrelada, ressoando pelas quebradas da Serra.
Na igreja, começaram as primeiras invocações. O Ti Iná, O "Xequim Pataco", o Ti “Feduchas” e o ti Zé Oliveiros, “o Padre do Soito”, ano após ano, coordenavam e dirigiam este bem piedoso acontecimento.
- Senhor, Deus, misericórdia!
- Senhor, Jesus, misericórdia!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho misericórdia!
A profunda escuridão da noite era quebrada pela luz das lanternas e de dezenas de pinhas acesas, nas mãos dos penitentes, ou enfiadas numa vara, prevenindo queimaduras. As pinhas haviam de durar para todo o percurso, acendendo-se cada uma na que se finava, para que a procissão caminhasse em paz e segurança, com respeito e recolhimento, pelas ruas da Aldeia. Às mulheres, meninas e meninas era vedado participar. O seu dia chegaria.
À saída da Cruz procissional, transportada por um dos homens, ladeada por duas lanternas, empunhadas por dois outros fiéis, os três vestidos com opas negras, os presentes tiravam chapéus e o cortejo seguia, com a invocação de anjos e santos, e pedidos de clemência e compaixão a Deus e Seu Filho. Era um acontecimento vivido, semana após semana, sem direcção do pároco que, se quisesse participar, o faria apenas na qualidade de simples penitente, como todos os outros crentes. Ao longo das ruas, espreitando atrás dos vidros das janelas ou mesmo de janelas abertas, iam aparecendo as caras femininas, ajudando a iluminar a noite com um ou outro candeeiro e juntando-se, de passagem, aos cânticos e imprecações dos homens, desfiando a ladainha dos santos, invocados-os um a um, num "Latim" de quem nunca o estudara, mas que mergulhava a celebração ainda no mais profundo misticismo:
- Sancta Maria!
- Ora pro nobis!
- Sanctus Josephus!
- Ora pro nobis!
- Sanctus Petrus!
- Ora pro nobis!
- Sancta Maria Magdalena!
- Ora pro nobis!
No percurso da procissão, caminhava-se, lentamente, arrastando os pés, quase em esforço, nas pedras irregulares da calçada. A capela do Pereiro, em casa privada, bem no coração da Aldeia, apareceu. Ali, uma paragem com repetidas invocações penitenciais, ouvindo-se os cânticos lentos, compassados, dolorosos, que dezenas de vozes masculinas, entoaram, de novo:
- Senhor, Deus, misericórdia!
- Senhor, Jesus, misericórdia!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho misericórdia!
- Senhor, Deus, misericórdia!
- Senhor, Jesus, misericórdia!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho misericórdia!
Todas repetidas. Por três vezes.
Renovaram-se os pedidos para o perdão dos pecados ou para se alcançarem graças materiais e espirituais, terminando cada um deles com ”... pelo Divino Amor de Deus, Padre-nosso”.
Todos rezam. O respeito é profundo. O sentimento também. A Fé é quase palpável!
A última etapa levou o grupo à igreja paroquial, por onde se começara. Templo repleto, as invocações, cantadas e rezadas, eram elevadas, uma vez última, aos Céus, em acto de contrição e penitência, implorando a clemência Divina uma vida melhor para vivos. E também para os defuntos.
Sem a bênção final, já noite fora, cada um voltava para casa, ainda à luz de pinhas que ardiam ou dos candeeiros e das lanternas. Em minutos, o silêncio e a escuridão cobriram toda a Aldeia. O dia de sábado também era para trabalhar. Até ao sol-pôr. E o descanso era urgente.
Nas sextas-feiras seguintes, até Quinta-feira Santa, voltariam.
Renovaram-se os pedidos para o perdão dos pecados ou para se alcançarem graças materiais e espirituais, terminando cada um deles com ”... pelo Divino Amor de Deus, Padre-nosso”.
Todos rezam. O respeito é profundo. O sentimento também. A Fé é quase palpável!
A última etapa levou o grupo à igreja paroquial, por onde se começara. Templo repleto, as invocações, cantadas e rezadas, eram elevadas, uma vez última, aos Céus, em acto de contrição e penitência, implorando a clemência Divina uma vida melhor para vivos. E também para os defuntos.
Sem a bênção final, já noite fora, cada um voltava para casa, ainda à luz de pinhas que ardiam ou dos candeeiros e das lanternas. Em minutos, o silêncio e a escuridão cobriram toda a Aldeia. O dia de sábado também era para trabalhar. Até ao sol-pôr. E o descanso era urgente.
Nas sextas-feiras seguintes, até Quinta-feira Santa, voltariam.
3 comentários:
Amigo Serrano:
Esta 'fotografia' leva-me à Semana Santa da minha aldeia. Um facto que referes é que a Ladaínha era a única cerimónia religiosa em que o padre, mesmo podendo estar presente, não participava como tal. Parece-me até que procurava não estar presente. Havia também a Ladaínha dos 'miúdos' em que participavam apenas crianças e que tinha um ritual próprio.
Falta apenas o som característico da Ladaínha, a entoação, principalmente quando era cantada. Mas isso não cabe aqui.
Obrigado por mais este bocado de recordação.
Um abraço
Honorato
Caro Professor,
Esta nossa Beira é mesmo um espaço perdido no tempo!... Até quando durarão estas tradições seculares, milenares algumas, que ainda teimamos, nalguns casos, em manter?...
Em Proença as Ladainhas são no Domingo à noite e durante os primeiros cinco Domingos da Quaresma, o que quer dizer que realizamos no passado Domingo a última deste ano.
Com a avançada idade da maioria da população já vai sendo muito difícil manter a tradição, vamos lá ver até quando é que conseguiremos.
No blog da "PROENÇAL", http://www.prohensa.blogspot.com/, publiquei um "post" com duas fotos em que dá para ver que há já muito pouca gente a participar.
Tal como o Honorato diz, sendo uma cerimónia de cariz religioso, o padre não participa nela, está reservada à Irmandade e à população, embora em Proença não haja qualquer restrição relativa a idade ou sexo, todos podem participar.
Um abraço
João Adolfo
Professor António,
Fotográfica e quase auditiva é sua memória escrita.Vou entrar no blog do senhor "Prohensa" para ver as fotos dele. Gosto de resgatar estas memórias de ritos de fé, que ocorreram por aqui também. Vemos principalmente no nordeste, aqui no Brasil, onde as pessoas conservam as tradições da igreja. Sabemos que é uma comunidade diferenciada na simplicidade, e as pessoas são muito gentis. Vejo nas reportagens e às vezes em algumas passagens textuais.
Vou caminhar mais por suas páginas...
Muitas Graças de graça para o senhor!
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