As geadas de Inverno haviam levantado e era grande a azáfama nos campos. As oliveiras e videiras estavam podadas, cavavam-se os terrenos das hortas e preparavam-se os campos para as sementeiras. As andorinhas haviam retornado, o chilrear da passarada alegrava os trabalhos bem duros de uma vida sempre recomeçada. O mês de Março avançara e aí estava a chegar a Primavera, onde o sonoro e feliz canto do cuco sazonal se juntava aos dolentes e tristes cantares da “Encomendação das almas” ou dos “Martírios do Senhor”, na voz dos “Cucos” residentes que, à medida que a Quaresma ia ganhando dias, sentiam que toda a Natureza tomava força para celebrar as alegrias de uma Ressurreição salvadora.
No povoado, só ficavam os velhos velhos, quase sempre avós, e as Crianças que tinham a sorte de andar na Escola. A maior parte dos "artistas", donos de pequena oficina - ferreiros, sapateiros, latoeiros, alfaiates, carpinteiros, ferradores… - só por lá trabalhavam, se fosse urgente, ou de manhã, muito cedo, ou à noitinha, depois do regresso dos campos, pois a exigência de um mundo que rebentava em novas flores e folhas e plantas novas clamava por todos os braços capazes de fazer que o renascer da Primavera valesse a pena. As bocas para alimentar todos os dias assim o exigiam. Mesmo as tabernas fechavam portas, até para depois do pôr-do-sol e só as duas lojas de comércio, onde de quase tudo se vendia, desde o petróleo e o sabão até às chitas e flanelas, linhas e fósforos, mantinham as portas abertas, muitas vezes apenas para, lá de longe em longe, se atender um freguês descuidado ou apressado.
Os rebanhos estendiam-se por todo o termo da Aldeia, levando o suave tinir dos chocalhos e campainhas a juntar-se ao alegre pipilar dos passarinhos, tornando menos infelizes os pastores, alguns deles a dever estar na escola, que ansiavam por novas oportunidades e outros horizontes. Até porque não havia rapariga que quisesse namorar… pastor. Vida “leve”, mas bem ingrata e mal querida.
Perto dos pastores, cotovias, melros, perdizes, milharucos, rouxinóis, pintassilgos, picanços, felosas, toutinegras, milheirinhas, carriças, pardais… também corvos, peneireiros, cegonhas e milhafres, tomados de amores, completavam os seus ninhos e apregoavam a esperança.
Na escola, os professores mantinham, na ordem, os alunos que mal cabiam na sala de aula, distribuídos por quatro classes, quase sempre com ajuda da régua de pinho a deixar bem vermelhas as mãos dos mais desajeitados nas contas, na leitura ou na escrita ou da cana Índia a deixar galos nas cabeças mais “levantadas” que se esqueciam de que, entre as nove e as três horas, aquilo bem “fino fiava”…
A quarta feira da quarta semana depois das Cinzas era um dos dias bem desejados por toda aquela miudagem ali acantonada nas “velhas” carteiras de uma escola nova. O edifício, pelo menos. A Quaresma “partia-se” ao meio e, quebrando o recolhimento da época, havia que ir bater latas e latões à porta das "novas" ou das já velhas avós. Era uma verdadeira “guerra ecológica”. E psicológica!
Logo a seguir ao Carnaval, cada um começava a procurar nos campos ou pelos cantos das casas, nos palheiros ou nos quintais tudo o que pudesse fazer barulho nessa quarta feira de alegria para muitos e de enorme aflição para uns poucos. A época dos plásticos ainda não alvorecera. Nesse tempo, as vasilhas eram feitas de vidro, lata, barro, esmalte, estanho e até latão ou cobre. Também de ferro, sobretudo as panelas. O alumínio ensaiava a sua aparição, mas a lata ou folha cromada e a folha-de-flandres tinham uma vasta aplicação em cântaros, baldes e caldeiros, no vasilhame dos lagares de azeite ou de vinho… Embora os profissionais do remendo fossem prolongando a “vida” dos objectos então usados com pingos de solda de estanho, “rebites” de alumínio ou lata ali feitos, na hora, e outros artifícios que a habilidade de alguns inventava, a troco de umas moeda que tinham de ser pequenas e sempre regateadas – quem não se lembra do amola-tesouras, com o seu "assobio" a "adivinhar a chuva" e a empurrar o seu pitoresco carrinho, que também arranjava guarda-chuvas, “agrafava” e "colava" pratos e alguidares de barro e afiava e encabava facas? - havia um dia em que tinham de “ir fora”, por excesso de uso e de "baixa" evidente. Um cântaro, uma braseira, um alguidar ou um caldeiro de chapa e “fora de prazo” eram, na ocasião, um “tesouro” a usar no dia de “serrar a velha".
O caminho da escola, na manhã daquela sempre desejada 4ª. Feira, tinha o seu quê de curioso. E de cómico. Um bom número de gaiatos arrastava, atrás de si, “tudo” o que pudera juntar e que fizesse barulho, amarrado num cordel ou num arame. Outros, com medo dos “saques”, deixavam as “ferramentas” em casa, ou num recanto, ao abrigo de olhares cobiçosos. Depois… só tinha de se esperar pela saída da escola.
Era como se todos os diabretes tivessem fugido do inferno para atormentar almas santas. Primeiro, as que estivessem no Povo. Depois as que fossem regressando dos campos. Latas e latões, pelas trelas dos miúdos, às vezes já grandotes, iam percorrendo as ruas de Aldeia com a monótona cantilena “Serrar minha avó, que dá ponto sem nó” e “Serrar minha madrinha que dá ponto sem linha”. Com breve paragem em frente das casas de avós e de madrinhas, toda aquela latoaria troava, batida ou arrastada nas pedras da rua ou até nos degraus das escadarias de granito que davam acesso a muitas habitações. Assim se corria toda a povoação, em alegre algazarra, para gáudio da pequenada e também de alguns adultos, que passavam ou voltavam para casa e se reviam naquela “festa”, com alguma nostalgia.
Mas...
No povoado, só ficavam os velhos velhos, quase sempre avós, e as Crianças que tinham a sorte de andar na Escola. A maior parte dos "artistas", donos de pequena oficina - ferreiros, sapateiros, latoeiros, alfaiates, carpinteiros, ferradores… - só por lá trabalhavam, se fosse urgente, ou de manhã, muito cedo, ou à noitinha, depois do regresso dos campos, pois a exigência de um mundo que rebentava em novas flores e folhas e plantas novas clamava por todos os braços capazes de fazer que o renascer da Primavera valesse a pena. As bocas para alimentar todos os dias assim o exigiam. Mesmo as tabernas fechavam portas, até para depois do pôr-do-sol e só as duas lojas de comércio, onde de quase tudo se vendia, desde o petróleo e o sabão até às chitas e flanelas, linhas e fósforos, mantinham as portas abertas, muitas vezes apenas para, lá de longe em longe, se atender um freguês descuidado ou apressado.
Os rebanhos estendiam-se por todo o termo da Aldeia, levando o suave tinir dos chocalhos e campainhas a juntar-se ao alegre pipilar dos passarinhos, tornando menos infelizes os pastores, alguns deles a dever estar na escola, que ansiavam por novas oportunidades e outros horizontes. Até porque não havia rapariga que quisesse namorar… pastor. Vida “leve”, mas bem ingrata e mal querida.
Perto dos pastores, cotovias, melros, perdizes, milharucos, rouxinóis, pintassilgos, picanços, felosas, toutinegras, milheirinhas, carriças, pardais… também corvos, peneireiros, cegonhas e milhafres, tomados de amores, completavam os seus ninhos e apregoavam a esperança.
Na escola, os professores mantinham, na ordem, os alunos que mal cabiam na sala de aula, distribuídos por quatro classes, quase sempre com ajuda da régua de pinho a deixar bem vermelhas as mãos dos mais desajeitados nas contas, na leitura ou na escrita ou da cana Índia a deixar galos nas cabeças mais “levantadas” que se esqueciam de que, entre as nove e as três horas, aquilo bem “fino fiava”…
A quarta feira da quarta semana depois das Cinzas era um dos dias bem desejados por toda aquela miudagem ali acantonada nas “velhas” carteiras de uma escola nova. O edifício, pelo menos. A Quaresma “partia-se” ao meio e, quebrando o recolhimento da época, havia que ir bater latas e latões à porta das "novas" ou das já velhas avós. Era uma verdadeira “guerra ecológica”. E psicológica!
Logo a seguir ao Carnaval, cada um começava a procurar nos campos ou pelos cantos das casas, nos palheiros ou nos quintais tudo o que pudesse fazer barulho nessa quarta feira de alegria para muitos e de enorme aflição para uns poucos. A época dos plásticos ainda não alvorecera. Nesse tempo, as vasilhas eram feitas de vidro, lata, barro, esmalte, estanho e até latão ou cobre. Também de ferro, sobretudo as panelas. O alumínio ensaiava a sua aparição, mas a lata ou folha cromada e a folha-de-flandres tinham uma vasta aplicação em cântaros, baldes e caldeiros, no vasilhame dos lagares de azeite ou de vinho… Embora os profissionais do remendo fossem prolongando a “vida” dos objectos então usados com pingos de solda de estanho, “rebites” de alumínio ou lata ali feitos, na hora, e outros artifícios que a habilidade de alguns inventava, a troco de umas moeda que tinham de ser pequenas e sempre regateadas – quem não se lembra do amola-tesouras, com o seu "assobio" a "adivinhar a chuva" e a empurrar o seu pitoresco carrinho, que também arranjava guarda-chuvas, “agrafava” e "colava" pratos e alguidares de barro e afiava e encabava facas? - havia um dia em que tinham de “ir fora”, por excesso de uso e de "baixa" evidente. Um cântaro, uma braseira, um alguidar ou um caldeiro de chapa e “fora de prazo” eram, na ocasião, um “tesouro” a usar no dia de “serrar a velha".
O caminho da escola, na manhã daquela sempre desejada 4ª. Feira, tinha o seu quê de curioso. E de cómico. Um bom número de gaiatos arrastava, atrás de si, “tudo” o que pudera juntar e que fizesse barulho, amarrado num cordel ou num arame. Outros, com medo dos “saques”, deixavam as “ferramentas” em casa, ou num recanto, ao abrigo de olhares cobiçosos. Depois… só tinha de se esperar pela saída da escola.
Era como se todos os diabretes tivessem fugido do inferno para atormentar almas santas. Primeiro, as que estivessem no Povo. Depois as que fossem regressando dos campos. Latas e latões, pelas trelas dos miúdos, às vezes já grandotes, iam percorrendo as ruas de Aldeia com a monótona cantilena “Serrar minha avó, que dá ponto sem nó” e “Serrar minha madrinha que dá ponto sem linha”. Com breve paragem em frente das casas de avós e de madrinhas, toda aquela latoaria troava, batida ou arrastada nas pedras da rua ou até nos degraus das escadarias de granito que davam acesso a muitas habitações. Assim se corria toda a povoação, em alegre algazarra, para gáudio da pequenada e também de alguns adultos, que passavam ou voltavam para casa e se reviam naquela “festa”, com alguma nostalgia.
Mas...
Já todos sabiam que a Ti Perpétua, ali junto ao Largo do Rato, lhes atirava copos de água. Se a coisa fosse “bem-feita” até podia vir cântaro e água. Então era um “cruel” “ram-ram” com gritos de “serrar a velha…” “serrar minha avó…” até que a habitualmente simpática velhinha se “passasse” e ficasse sem gota da água que tanto lhe custara a trazer da fonte. E lá seguia a algazarra...
Não era “coisa” dos miúdos dos anos 50. Contava-me o meu Pai que, no “seu tempo” o Ti “Saias” atirava a tranca da porta e, depois, bem clamava para aquela doida garotada “Ai, rapazes, não me levem a minha tranca! Ai, rapazes, dêem-me a tranca da minha porta!!!”
Na essência, o “serrar a velha” era destinado a avós e madrinhas, mas se se descobrisse homem “capaz de levar à certa”… este não teria maneira de escapar à assuada dos gaiatos, que não o deixavam enquanto não o fizessem “passar do sério”. Se bem lembro… o “Tonho Caleco” não foi casado nem teve filhos e era “vítima” certa e sabida daquele dia de “brincadeira” quase sem sentido. Sim, o “desde quando?” e o “porquê?” é que eu nunca os descobri…
“Não há gaiatos maus”, garantiu o Padre Américo. Não há garotos “bons”, pois “garoto que não dá pedrada num gato… não é garoto”- garantia, numa gargalhada, o meu Pai.
O “serrar da velha” terminava com o anoitecer. O toque das Ave Marias tinha toda a força do “recolher obrigatório”. Cada um levava, atrás de si, a “lata” que juntara, agora já sem força nem efeito. Para meter em qualquer canto. Quem sabe se para usar dali a um ano…
Em Palmela, no “serrar a velha” de 2010.
Não era “coisa” dos miúdos dos anos 50. Contava-me o meu Pai que, no “seu tempo” o Ti “Saias” atirava a tranca da porta e, depois, bem clamava para aquela doida garotada “Ai, rapazes, não me levem a minha tranca! Ai, rapazes, dêem-me a tranca da minha porta!!!”
Na essência, o “serrar a velha” era destinado a avós e madrinhas, mas se se descobrisse homem “capaz de levar à certa”… este não teria maneira de escapar à assuada dos gaiatos, que não o deixavam enquanto não o fizessem “passar do sério”. Se bem lembro… o “Tonho Caleco” não foi casado nem teve filhos e era “vítima” certa e sabida daquele dia de “brincadeira” quase sem sentido. Sim, o “desde quando?” e o “porquê?” é que eu nunca os descobri…
“Não há gaiatos maus”, garantiu o Padre Américo. Não há garotos “bons”, pois “garoto que não dá pedrada num gato… não é garoto”- garantia, numa gargalhada, o meu Pai.
O “serrar da velha” terminava com o anoitecer. O toque das Ave Marias tinha toda a força do “recolher obrigatório”. Cada um levava, atrás de si, a “lata” que juntara, agora já sem força nem efeito. Para meter em qualquer canto. Quem sabe se para usar dali a um ano…
Em Palmela, no “serrar a velha” de 2010.
2 comentários:
Bom dia
Encontrei este blogue quase por acaso. Quase, porque recebo regularmente alertas do google sobre Aldeia de João Pires, e no último vinha lá um artigo deste blogue. Que achei encantador. Útil, informativo, relevante para quem se interessa pela história da sua terra onde estão as suas origens. Tão interessante que tomei a liberdade de o divulgar na página do grupo da Aldeia no Facebook.
Deixo aqui o convite para que nos visite em http://www.facebook.com/catia.mendes?v=feed&story_fbid=1223213548470#!/group.php?gid=165346377005&ref=ts
É um grupo aberto, em que se partilham fotos e memórias, e que já conta com quase 150 elementos, entre naturais, descendentes e amigos da Aldeia. Quem sabe não se quer juntar a nós e partilhar com mais pessoas estas suas memórias, que com certeza serão preciosas para os mais novos e que vivem já longe daquele pedacinho da Beira Baixa?
Obrigada
Cátia Mendes
Perdoe-me Professr Serrano, mas não resisti a fazer este comentário no Facebook:
- Sou talvez a pessoa mais suspeita, apenas pelo pelo facto de ter sido aluno do Professor Serrano na escola primária em Penamacor, nos idos anos de 1970 a 1971, para recomendar, não a leitura dos post's referenciados, mas sim a totalidade dos escritos do blogue.
São de uma riqueza extraordinária.
Igualmente, não resisto a deixar aqui, o endereço de um fabuloso blogue de um vizinho xendro:
www.basagueda.blogspot.com.
Os amantes da boa leitura isso merecem.
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