A Semana Santa entrara com a celebração de domingo de Ramos. O luto era p’ra valer. Só se podia cantar a Paixão do Senhor Jesus. Rir era quase proibido.
Na igreja, o sino deixara de tocar, as imagens estavam cobertas com panos roxos e negros e não havia flores nos altares. O toque das Ave-marias era dado pela matraca – 4 argolas de ferro (duas em cada face) fixas numa base de madeira - dando volta à Aldeia, agitada pelas mãos da garotada, a que um ou outro já mais crescido ia pegando, mais para se divertir que por devoção.
Quinta-feira não deixara de ser um dia bem duro de trabalho, lá pelos campos fora, canalha em férias, a dar uma ajuda na guarda dos rebanhos ou no amanho das terras. “O trabalho do menino é pouco, quem o perde é louco” ou “de pequenino se torce o pepino” eram adágios a que qualquer daqueles garotos se habituara, desde que o seu entendimento lhe dera para os compreender.
Pelo cair da tarde tinha lugar o regresso ao povoado, pessoas e animais haviam de procurar abrigo, enquanto a matraca ia alertando com “primeira para a Ladainha”.
Dentro das modestas casas, acendiam-se os lumes e preparavam-se as ceias. Aquele primeira semana de Abril, com as tardes a ficarem cada vez maiores, garantira que a Primavera viera para ficar, noites frias, manhãs agradáveis, o calor do sol a fazer a vida renascer nos campos. Bem suados.
Este dia tinha um especial significado na vida das gentes desta Aldeia. Por uma só vez, por uma só noite, em todo o ano, as suas gentes haviam de juntar-se, em sentido acto penitencial, a implorar de Deus perdão e misericórdia.
Já a refeições fumegavam e de novo a matraca ia passando com o seu trac-trac-trac-trac, de rua em rua, e o alarido da miudagem clamando “segunda para a Ladainha “, “segunda para a Ladainha”… A camioneta da carreira chegara ainda com sol. Desta vez os “mirones” viram compensada a sua curiosidade, pois a malta de Lisboa aí estava; gente que não perderia esta noite por nada antecipara a vinda para as festas da Páscoa. Lá de cima do tejadilho o Sr. Martinho bem clamava “De quem é esta mala?” “De quem é este cabaz?” “ De quem é esta cesta?” …. “Ninguém dá uma ajuda?” “Com este atraso nem vou dormir a Penamacor…” Cá em baixo eram risos e cumprimentos e um ou outro braço lá se foi estendendo para que o transporte usado naquele tempo pudesse seguir. Com grande atraso. Mas quem se importava com as horas?
As badaladas das 9 horas da noite foram caindo lentas, compassadas. A matraca regressava da terceira volta, agora agitada com mais entusiasmo por rapazotes mais velhos e treinados, dando àquele som cavo e triste mais ritmo e força.
De todas as casas da Aldeia começavam a sair as famílias, com o agasalho possível, xailes pelos ombros, lenços na cabeça, casacos e camisolas, que o ventinho espanhol prometia…
As mesmas crianças que, no primeiro dia dessa semana, haviam empunhado os ramos tão bem compostos, transportavam agora artísticas lanternas arranjadas lá em casa, uma roda de cortiça, com o perímetro de uma folha de papel branco “almaço”, onde tinham sido colados os símbolos dos martírios do Senhor: pregos, martelo, cruz, coroa de espinhos, chicote… Nesse tempo ainda ninguém ouvira falar de papel de lustro, nem de papel celofane, nem de papel crepe ou de seda. Mas a imaginação e a habilidade não tinham limites e era dos forros dos envelopes das cartas de então que, guardados para esta ocasião, iriam sair autênticas obras de arte.
Feita a parte mais difícil - enrolar, fixar e decorar o papel branco - no furo central da roda de cortiça era enfiada uma cana, que havia de servir de pega para a lanterna a empunhar e para encaixar, na ponta que ficasse abrigada pelo papel, a vela com que havia de alumiar em todo o cortejo religioso. Era essa, pelo menos, a expectativa, gorada, por vezes.
A Lua Cheia brilhava em todo o seu esplendor e enchia as ruas do povoado, quase se alcançando, com a vista, os campos e montes em redor. Mesmo assim , candeias e candeeiros não foram esquecidos e também na mão ou no bolso a velas com que se alumiaria ao Senhor. Todos em direcção à igreja paroquial, só os impossibilitados ficariam em casa.
O adro registava a afluência dos grandes dias de festa. O templo estava a abarrotar. As nove e meia tinham soado e era tempo de começar.
As invocações seriam as mesmas das últimas seis sextas-feiras. Desta vez, rezadas por toda a população , a que se juntariam os migrantes já chegados durante a semana. Sobretudo nesse dia.
Em Quinta-feira Santa, a Cruz, a transportar por um homem descalço, seria a maior da igreja, em madeira, com uma notável e dolorida imagem de Cristo moribundo, e havia sido “despida” do pano negro que a ocultava do olhar dos Fiéis. Também o percurso seria a dobrar. Pelo menos. Durante mais de uma hora, noite dentro, com fé e emoção, aquelas vozes, homens, mulheres e crianças haviam de cantar, sem desfalecimento:
- Senhor, tende piedade de nós!
- Cristo tende piedade de nós!
- Santa Maria, rogais por nós!
- S. José, rogai por nós!
- Santa Maria Madalena, rogai por nós!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho, misericórdia!
Eram dezenas e dezenas de luzes: as lanternas das crianças, habilidosamente confeccionadas, em casa, também pinhas em archote, velas que se mantinham acesas, a custo, contrariando a vontade da fina aragem que soprava, candeias de azeite, candeeiros de petróleo. De vez em quando, algum alarido: uma lanterna, ou por má confecção, ou porque a vela, lá dentro, não se adaptara, convenientemente, ou ainda por força de um “encosto” de outra lanterna mais forte, lá ardia, sem ter cumprido a sua missão, com sorrisos “cruéis” de uns e algum choro das “vítimas”. Havia janelas iluminadas, de uma ou outra aparecia um rosto, quase sempre sofredor, às voltas com a idade ou com a doença. Uma lágrima furtiva, lábios que rezavam. Os, simplesmente, silenciavam…
Na capela do Espírito Santo, na capela do Largo do Pereiro, na Igreja Matriz, respondia-se, em coro, ao convite “… pelo Divino Amor de Deus Padre-Nosso!” Um deles mesmo “Pelo primeiro dos presentes que faltar, pelo Divino amor de Deus, Padre-Nosso!
A noite ia adiantada e o final aproximava-se. A igreja estava “à cunha”. Mesmo “à cunha”, pois ainda não tinha os bancos que hoje existem. Todos de pé!
Após as súplicas e orações finais, era chegado o momento de a Cruz regressar ao seu lugar. E, enquanto voltava a ser tapada com o negro pano, todo o Povo a cantar
“Estava a Mãe Dolorosa,
Junto aos pés da Cruz, chorosa,
Enquanto o Filho pendia!
Enquanto o Filho pendia!.
Ó Mãe de Jesus trespassada
De dores, ao pé da Cruz,
Rogai por nós, rogai por nós,
Rogai por nós a Jesus!”
De regresso a casa, sentia-se ter passado por um momento único na vida de cada um, que só a demência poderia fazer esquecer.
Oxalá eu o tenha presente, na hora da minha morte.
Na igreja, o sino deixara de tocar, as imagens estavam cobertas com panos roxos e negros e não havia flores nos altares. O toque das Ave-marias era dado pela matraca – 4 argolas de ferro (duas em cada face) fixas numa base de madeira - dando volta à Aldeia, agitada pelas mãos da garotada, a que um ou outro já mais crescido ia pegando, mais para se divertir que por devoção.
Quinta-feira não deixara de ser um dia bem duro de trabalho, lá pelos campos fora, canalha em férias, a dar uma ajuda na guarda dos rebanhos ou no amanho das terras. “O trabalho do menino é pouco, quem o perde é louco” ou “de pequenino se torce o pepino” eram adágios a que qualquer daqueles garotos se habituara, desde que o seu entendimento lhe dera para os compreender.
Pelo cair da tarde tinha lugar o regresso ao povoado, pessoas e animais haviam de procurar abrigo, enquanto a matraca ia alertando com “primeira para a Ladainha”.
Dentro das modestas casas, acendiam-se os lumes e preparavam-se as ceias. Aquele primeira semana de Abril, com as tardes a ficarem cada vez maiores, garantira que a Primavera viera para ficar, noites frias, manhãs agradáveis, o calor do sol a fazer a vida renascer nos campos. Bem suados.
Este dia tinha um especial significado na vida das gentes desta Aldeia. Por uma só vez, por uma só noite, em todo o ano, as suas gentes haviam de juntar-se, em sentido acto penitencial, a implorar de Deus perdão e misericórdia.
Já a refeições fumegavam e de novo a matraca ia passando com o seu trac-trac-trac-trac, de rua em rua, e o alarido da miudagem clamando “segunda para a Ladainha “, “segunda para a Ladainha”… A camioneta da carreira chegara ainda com sol. Desta vez os “mirones” viram compensada a sua curiosidade, pois a malta de Lisboa aí estava; gente que não perderia esta noite por nada antecipara a vinda para as festas da Páscoa. Lá de cima do tejadilho o Sr. Martinho bem clamava “De quem é esta mala?” “De quem é este cabaz?” “ De quem é esta cesta?” …. “Ninguém dá uma ajuda?” “Com este atraso nem vou dormir a Penamacor…” Cá em baixo eram risos e cumprimentos e um ou outro braço lá se foi estendendo para que o transporte usado naquele tempo pudesse seguir. Com grande atraso. Mas quem se importava com as horas?
As badaladas das 9 horas da noite foram caindo lentas, compassadas. A matraca regressava da terceira volta, agora agitada com mais entusiasmo por rapazotes mais velhos e treinados, dando àquele som cavo e triste mais ritmo e força.
De todas as casas da Aldeia começavam a sair as famílias, com o agasalho possível, xailes pelos ombros, lenços na cabeça, casacos e camisolas, que o ventinho espanhol prometia…
As mesmas crianças que, no primeiro dia dessa semana, haviam empunhado os ramos tão bem compostos, transportavam agora artísticas lanternas arranjadas lá em casa, uma roda de cortiça, com o perímetro de uma folha de papel branco “almaço”, onde tinham sido colados os símbolos dos martírios do Senhor: pregos, martelo, cruz, coroa de espinhos, chicote… Nesse tempo ainda ninguém ouvira falar de papel de lustro, nem de papel celofane, nem de papel crepe ou de seda. Mas a imaginação e a habilidade não tinham limites e era dos forros dos envelopes das cartas de então que, guardados para esta ocasião, iriam sair autênticas obras de arte.
Feita a parte mais difícil - enrolar, fixar e decorar o papel branco - no furo central da roda de cortiça era enfiada uma cana, que havia de servir de pega para a lanterna a empunhar e para encaixar, na ponta que ficasse abrigada pelo papel, a vela com que havia de alumiar em todo o cortejo religioso. Era essa, pelo menos, a expectativa, gorada, por vezes.
A Lua Cheia brilhava em todo o seu esplendor e enchia as ruas do povoado, quase se alcançando, com a vista, os campos e montes em redor. Mesmo assim , candeias e candeeiros não foram esquecidos e também na mão ou no bolso a velas com que se alumiaria ao Senhor. Todos em direcção à igreja paroquial, só os impossibilitados ficariam em casa.
O adro registava a afluência dos grandes dias de festa. O templo estava a abarrotar. As nove e meia tinham soado e era tempo de começar.
As invocações seriam as mesmas das últimas seis sextas-feiras. Desta vez, rezadas por toda a população , a que se juntariam os migrantes já chegados durante a semana. Sobretudo nesse dia.
Em Quinta-feira Santa, a Cruz, a transportar por um homem descalço, seria a maior da igreja, em madeira, com uma notável e dolorida imagem de Cristo moribundo, e havia sido “despida” do pano negro que a ocultava do olhar dos Fiéis. Também o percurso seria a dobrar. Pelo menos. Durante mais de uma hora, noite dentro, com fé e emoção, aquelas vozes, homens, mulheres e crianças haviam de cantar, sem desfalecimento:
- Senhor, tende piedade de nós!
- Cristo tende piedade de nós!
- Santa Maria, rogais por nós!
- S. José, rogai por nós!
- Santa Maria Madalena, rogai por nós!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho, misericórdia!
Eram dezenas e dezenas de luzes: as lanternas das crianças, habilidosamente confeccionadas, em casa, também pinhas em archote, velas que se mantinham acesas, a custo, contrariando a vontade da fina aragem que soprava, candeias de azeite, candeeiros de petróleo. De vez em quando, algum alarido: uma lanterna, ou por má confecção, ou porque a vela, lá dentro, não se adaptara, convenientemente, ou ainda por força de um “encosto” de outra lanterna mais forte, lá ardia, sem ter cumprido a sua missão, com sorrisos “cruéis” de uns e algum choro das “vítimas”. Havia janelas iluminadas, de uma ou outra aparecia um rosto, quase sempre sofredor, às voltas com a idade ou com a doença. Uma lágrima furtiva, lábios que rezavam. Os, simplesmente, silenciavam…
Na capela do Espírito Santo, na capela do Largo do Pereiro, na Igreja Matriz, respondia-se, em coro, ao convite “… pelo Divino Amor de Deus Padre-Nosso!” Um deles mesmo “Pelo primeiro dos presentes que faltar, pelo Divino amor de Deus, Padre-Nosso!
A noite ia adiantada e o final aproximava-se. A igreja estava “à cunha”. Mesmo “à cunha”, pois ainda não tinha os bancos que hoje existem. Todos de pé!
Após as súplicas e orações finais, era chegado o momento de a Cruz regressar ao seu lugar. E, enquanto voltava a ser tapada com o negro pano, todo o Povo a cantar
“Estava a Mãe Dolorosa,
Junto aos pés da Cruz, chorosa,
Enquanto o Filho pendia!
Enquanto o Filho pendia!.
Ó Mãe de Jesus trespassada
De dores, ao pé da Cruz,
Rogai por nós, rogai por nós,
Rogai por nós a Jesus!”
De regresso a casa, sentia-se ter passado por um momento único na vida de cada um, que só a demência poderia fazer esquecer.
Oxalá eu o tenha presente, na hora da minha morte.
Fotos de João Paulo Fidalgo e Carla Geraldes, in pág. de Facebook de Aldeia de João Pires, com vénia.
1 comentário:
Este ano recuperou-se o uso da matraca para chamar as pessoas à ladainha. E a confraria forneceu lanternas às pessoas. Já não têm um aspecto artesanal, claro, porque para as fazer em grande número tiveram de recorrer à simplificação, imprimindo, recortando e colando os símbolos da paixão. Mas a iniciativa é de louvar. E quem sabe assim não espicaçam as pessoas a fazerem as suas próprias lanternas? Eu cheguei a fazer a minha quando era miúda...
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