segunda-feira, abril 13, 2009

A caminho da Senhora do Incenso

As tristezas e jejuns da Quaresma haviam passado. As agonias da Semana Santa, em solidariedade cristã com as dores da Paixão do Senhor estavam quase a terminar. A meia-noite aproximava-se. Demasiado vagarosa para quem a ansiara durante 7 semanas. A claridade da Lua Cheia era bastante naquela agradável noite de Abril de uma Primavera que enchera já os campos de cores e odores e que o cuco anunciara, alegremente, desde o mês que passara. As lanternas, os candeeiros, as pinhas e as velas davam uma ajuda e os que chegavam iam-se reconhecendo e cumprimentando. Aproximava-se um dos momentos mais intensos da vida desta Aldeia. A meia-noite de Sábado Santo estava quase "a cair" e o Povo acotovelava-se, no adro da sua igreja, com a banda filarmónica, aguardando, com impaciência, as doze badaladas. Ei-las que batem: 1... 2... 3... 4.....12!!! Um morteiro rasga o céu...Pum!!! Os sinos repicam, festivamente, a banda desata a tocar e o Povo parte dali, anunciando a Ressurreição de Jesus, cantando as suas "Alvíssaras". Durante uma hora são percorridas as ruas do povoado, de capela em capela, até voltar junto da sua igreja paroquial. "Aleluia, Aleluia,/ Aleluia do prazer/ Já Cristo ressuscitou/ Para nunca mais morrer" ou "Levante-se, senhor prior/ Levante-se não durma tanto/ Nós já vimos da igreja/ Vamos para o Espírito Santo". Povo maroto. Mesmo no canto religioso nunca deixa a alfinetada... É o regresso a casa. A noite vai ser curta. A azáfama do almoço de Domingo de Pascoa. As "boas festas" da visita pascal. A merenda para a Senhora do Incenso. Enfim! Um rodopio, a sobrar para as "donas de casa". A garotada lá andou pelas casas dos padrinhos e dos avós, à procura de uma amêndoa, um doce ou uma bica. Naqueles tempos tudo era de aproveitar. Até uma moedinha. Que sorte!
A madrugada fora de cantares de rouxinol, numa noite ainda iluminada pela Lua a caminho do minguante. Toca a saltar da cama, que a caminhada é longa, quase duas horas a pé, por atalhos enlameados e a pular as poldras das ribeiras. A das Taliscas vá que não vá. Mas a da Ceife a meter respeito. Não raro o banho que não se deseja. Todo o cuidado é pouco. A azáfama da véspera fora mais que muita. As burras, que alguns afortunados montarão, mereceram mantas de trapos novas, às vezes uma colcha, nas albardas escovadas. Há cabrestos enfeitados com as flores que cobrem os campos ainda não lavrados ou que os gados ainda não pastaram. Normalmente alecrim ou rosmaninho, às vezes uma rosa. Que luxo! Não, não era como agora, flores aos milhões, nos baldios abandonados. Então, cada canto de terra era tratado com carinho. Dali ia depender o passar fome ou não. Muitas vezes nem assim se arranjava com que enganar o estômago. Mas voltemos à festa. A Aldeia tinha então muitos e muitos habitantes. Pelas nove horas de segunda-feira de Páscoa, no largo da fonte, iam-se juntando os mais madrugadores. Sem grandes combinações nem esquisitices. Quando o grupo parecia bastante, havia sempre um que dizia "Vamos?" "Vamos...", era a resposta pronta. E, assim, sucessivamente, não podendo haver grandes atrasos, pois a Missa era "pelo meio-dia". Ponto assente: mesmo os que chegassem primeiro, deviam esperar pelos últimos, à entrada do recinto, para se cantarem as alvíssaras a Nossa Senhora. Com a banda, se calhasse, com os adufes, de certeza. "Dai-me as alvíssaras, Senhora/ que as estou a merecer/ Ressuscitou vosso filho/ Para nunca mais morrer" ou "Ó Virgem Mãe do Incenso/ Quem vos varreu o terreiro/ Foi o ranchinho d'Aldeia/ Com raminhos de loureiro"... Ranchinho d'Aldeia, das Águas, da Meimoa, do Pedrógão, do Vale... Era assim. Uma festa!!!
Lembro-me de uma Missa Solene celebrada dentro da capela. Apinhada. Quase ia sufocando. Sem condições, pois a grande maioria ficava no vasto recinto, com pouca ou nenhuma atenção, mau grado os enormes altifalantes, em forma de sino. Depois, o bom senso, foi obrigando a que se fizesse a Missa campal. Para bem de todos. Do próprio objectivo da festa religiosa. Belos sermões lá ouvi. Os mais lembrados do Padre César Fatela, que não ficava satisfeito enquanto não fizesse chorar todas (ou quase todas) as Mães. Os Pais era mais difícil... Coração duro? Não, "um homem não chora". Seguia-se a procissão, banda filarmónica afinada, foguetes a estoirar. Um deslumbramento para a rapaziada e garotada daquele tempo. Lenços a acenar, uma última descarga de fogo - para "o recolher" - a banda a tocar, lágrimas a cair entre cânticos que saíam de gargantas apertadas e a imagem da Senhora do Incenso a entrar, devagarinho, na sua morada, assim acabava a procissão....
Passadas as emoções da alma e enquanto se enxugavam ainda as lágrimas mais teimosas, havia que olhar em frente e retemperar as forças dispendidas na caminhada e na celebração. Dar de comer ao corpo. Não havia oliveira em redor do recinto que não tivesse dois ou três burros amarrados. Um ou outro cavalo fazia o dono felizardo "impar" de vaidade. Nos ramos das árvores havia alforges dependurados, cabazes, cestos, bolsas. De pano. O plástico ainda não tomara conta das vidas de cada um. Aqui e além uma ou outra carroça. Os automóveis, há 50 anos, eram poucos. Os carros de aluguer do Araújo e do Zé "Paxá", de Penamacor, continuavam, numa roda viva, levando e trazendo gente de mais posses. As camionetas do "Martins Évora", que, durante a manhã, apinhadas até não se poder respirar, transportando os afortunados que podiam pagar 3,5 escudos por cabeça, descansavam, na beira da estrada, à sombra das matas da quinta do dr. Elvas. Havia alegria no ar. A festa ia continuar. Melhor, para alguns ia começar...
Num instante, famílias e amigos escolhem o lugar que lhes convém, uns dentro e outros fora do recinto, pois espaço é o que não falta. As mantas estendem-se na farta relva de uma Primavera que promete. Toalhas que só servem nestas ocasiões, aparecem, como por encanto, manipuladas por quem sabe e quem ama. Tarefa para esposas e mães. É um mundo seu, onde o homem não tem lugar. Estender a merenda!!! Ah! os homens, de garrafão na mão, vão já dando uns aos outros o copo do tinto tratado com carinho para ocasiões destas. "Prova lá deste?" "É bom, mas não ganha ao meu!!!" "Toma..."
É um encanto. O galo que ainda cantara Sexta-Feira Santa está ali ao alcance de dentes vorazes e muito apetite. O salpicão. Os pasteis de bacalhau. O queijo e as azeitonas. O cabrito ou o borrego, no forno. De lenha. Da Aldeia. O pão alvo, cozido com os borrachões, os biscoitos, os esquecidos, o pão-de-, os bolos de leite, em Sábado de Aleluia! Um arroz de galinha de comer e chorar por mais... As bicas de azeite! Ah! A grande surpresa, a saladadinha verde, comida pela primeira vez neste ano - ainda não havia os supermercados que "mataram" este encanto! - com as alfaces a serem acompanhadas, com carinho, a tapar e a destapar, não fosse a geada "queimá-las" numa noite de travessuras. Desde Fevereiro!!! E ainda as pataniscas de bacalhau, o esparregado, os ovos verdes... eu sei lá. Um milagre que só as mulheres e mães conseguiam fazer, à imitação de Maria, ali venerada. Trabalhar nos campos, arrumar a casa para as festas pascais, preparar roupas, aturar e tratar os filhos - e o marido!!! - a agora apresentar ali aquele banquete era mesmo um prodígio. Já disse, noutras ocasiões que os tempos não eram fáceis, mas "um dia não são dias"... As amarguras viriam depois. E este teria de ser a valer por um ano de sacrifícios e renúncias.
Bem comidos e melhor bebidos, era a vez de se andar a provar da vizinhança, se a confiança dava para isso. "Ó António, prova-me este paio!!!" "A minha Maria tem cá uma mão..." "Tá bom, tá..." E não se atrevia a acrescentar "Mas o da minha Carminda está melhor..." "O silêncio é de oiro" e já havia muitos garrafões vazios... Era o que faltava "estragar a festa" a contrariar "basófias"...
O sol não parava e já brilhava para os lados da Gardunha. Havia que apressar. Levantar restos e loiças. Dobrar toalhas e mantas. Meter tudo no sítio. Era ainda preciso ir "às tendas". Umas amêndoas paras os gaiatos - "cuidado que as do ano passado eram só farinha!" - uns "rosários" de pinhões - "nunca dês logo o que te pedem, senão és enganada" - um carrito de lata ou de madeita para as crianças - "coitadinhos, só brincam com aquilo que fazem de cortiça ou de madeira" - uma "caravela" para a garota - "há tanto tempo que anda a pedir-ma"... Há ainda ranchos que vão tocando adufes e cantando alvíssaras à volta da capela. A banda filarmónia dá voltas ao arraial. O povo gosta. De vez em quando, os foguetes rasgam o espaço e estoiram no ar, sempre apontados lá p´ra fora do recinto, "não vá o diabo tecê-las"... Um ou outro garoto corre atrás das canas e abraça-as, no seu contentamento. Julga ter-lhe saído a sorte, encontrando uma bomba que não estoirou. Que pode ser a sua desgraça...
Entardece.Grupos pas seiam e cumprimen tam-se. Da mesma Aldeia.Da Vila. De outras aldeias. Desejam-se "boas festas" uns aos outros e exclamam-se aleluias!
É preciso regressar. A tarde esvai-se, serena e acolhedora. Não viera a chuva prometida. "Hoje não, Mãe Santíssima, amanhã"... Uma entrada última na capela para mais um agradecimento. Um pedido. Uma vela. Uma "esmola"...
Aperta-se o coração, na hora da despedida. Uma lágrima furtiva. Entregam-se àquela Senhora os sonhos, os filhos, o casamento, os trabalhos... A vida. Confiadamente!
Está dada a partida. Cestos à cabeça. Garrafões nas mãos. Alforges dos animais de carga e abarrotar. O passo tem se ser apressado. A chegada ao destino terá de ser "com luz" . Por causa dos miúdos. "Mãe, quero colo" - chora um mais pequeno. "Deixa, que eu levo-o às cavalitas". Ora, o "venho da festa" tem que se lhe diga. Só quem experimentou!!! 
Já os pés tropeçam e os joelhos incham quando se entra na Aldeia. Há tão só forças para cantar as alvíssaras a Nossa Senhora da Graça. Que é a "nossa". Depois, soturnamente, cada um regressa ao seu poiso. Descalçar e meter os pés em água salgada. "P´ra que é que eu fui levar os sapatos novos?!" " Eu bem te avisei!!!" Não há resposta. Sem forças, comem-se restos. Depois, cada um se mete na cama e adormece. Com sono. De cansaço.
Amanhã, de novo, o confronto realidade. Pouco divertida. Quase sempre injusta!

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