segunda-feira, julho 13, 2009

Na eira - 1

- Ó António, então e ... o pão?
- Olha, Carminda, paguei as rendas - gaguejou ele, que desde o almoço temera aquele "confronto". - Não devemos nada a ninguém...
Primeiro, seguiu-se um silêncio de estupefacção. Depois, a dor, o inconformismo, mesmo a revolta tomaram asas e foi "o fim do mundo". Gritos de desespero, braços ao Céu, num clamor confrangedor, aflitivo, dolorido...
- Que vou dar de comer aos meus filhos?! Que vai ser de nós?! Para onde foi tanto suor?! Tanto trabalho?! Tanto sofrimento!!! Meu Deus! que vai ser de nós? Nossa Senhora da Graça, valei-nos... Ai! Jesus!!! Porque não me levais?!
A Grande Guerra terminara ainda não passara uma dezena de anos. A Europa levantava-se, aos solavancos, das ruínas em que a tornaram. Portugal, poupado em sangue e vidas, não o fora na fome e na miséria. Apesar da enorme mortalidade infantil - Agosto era "o mês dos anjinhos" - a garotada enchia de vida e ruído as ruas da nossa Aldeia. No Verão, dormia-se nos campos, nas choças, nas eiras ou mesmo debaixo de uma oliveira. Até ao ar livre. Para melhor "aproveitar a fresca" num trabalho sem tino nem destino. Os campos eram poucos - e mal distribuídos - para tanta força de braços e tantas bocas para alimentar. Não ficava um recanto por cultivar e a "colheita" era, muitas vezes, NADA!
Para este jovem casal a vida começara com enormes dificuldades, talvez um pouco menores do que para a grande maioria dos outros, seus conterrâneos. Os pais do António tinham umas territas e... 10 filhos. A Carminda, 4 irmãos, órfãos de pai, desde muito novos se "afeiçoaram" a fazer calos nas mãos trabalhando para os outros.
Já a primeira década do seu casamento se concluía e não "passavam da cepa torta". Ao António fora oferecido trabalho nos caminhos de ferro de Moçambique. Tinha a 5ª. classe***, uma raridade, na época, esperto para as letras e números, sem dúvida havia de fazer figura lá para as costas do Índico, desatinava-o um cunhado, casado com a meia-irmã mais velha. As lamúrias da mãe e das irmãs mais novas - eram nove, no total - e os pedidos e promessas do pai foram mais fortes que os incitamentos da Mulher, que se queria libertar, a todo o custo "daquela má vida". Havia de ficar, até à velhice, agarrado à rabiça do arado... Ela também, na sua companhia, até que a morte os separou, por 20 anos de diferença.
A tragédia daquela tarde, na eira, começara dois anos antes. As terras, poucas e mal entregues, nas mãos de meia dúzia. Terra que se visse não havia para os restantes: apenas uns quintalecos e hortejos que não tiravam ninguém da míngua. Os rebanhos eram mais que muitos, não havia pastos para tantos, e braços trabalhar não faltavam. A fome podia sempre aparecer e de subsídios nunca se ouviu falar. Nem 5 tostões para uma aspirina que aliviasse uma qualquer dor de cabeça. Nas mercearias, os escassos bens eram racionados e, às vezes, candongados. Nem giestas sobravam e qualquer carrada de codeços, estevas, rosmaninhos ou de ramos de pinho, lá no Campo Frio ou na Arrochela, da D. Carlota, a bem passar das Aranhas, podia custar 15 ou 20 escudos. Pelo melhor preço. E três "jornais": dois do forneiro, a cortar e a carregar, e o do ganhão, a acomodar no carro de vacas o que se pudesse trazer, "sempre com a morte à frente dos olhos", por aquelas ribanceiras e descampados, com a Espanha bem à vista... Os ricos... sempre a enriquecer. Até lhes pagavam para lhes limpar os terrenos e os pinhais. "Viver não custa..." Sempre foi assim, vida boa para os "espertos"!
A década de 50 já avançava para os seus meados. Correu voz na Aldeia que os P. de Matos queriam arrendar as terras do Vale do Homem, a Tapada da Tenda e a Tapada do Meio, uns 15 hectares. Lá quase a meio caminho para Monsanto... Longe que se fartava. Mas "em tempo de guerra, não se limpam armas". Foi um alarido, no Povoado. Pretendentes mais que muitos, para ganância dos proprietários. Aqueles tontos iam "queimar" as rendas... Em leilão: "Quem dá mais?" A emigração "a salto" estava ainda por descobrir!
Era já noite adiantada, quando ele "entrou pela porta adentro".
- Olha, Minda - quase sussurrou - arrendei as terras do Vale do Homem. Se queremos trabalhar, temos de ter onde! Se arranjarmos umas ovelhas e umas cabras havemos de as levar lá a pastar...
- Mas é tão longe, mais de uma hora de caminho... - falou ela, quase num sussurro.
- É a única saída. Não há mais nada. Temos os garotos e há que tratar deles...
A pergunta, ela quase se recusava a fazê-la. Mas era fatal. Como o destino.
- Então... a renda...
- A renda... - tenta ele esquivar-se. A renda.... mas que renda?
- Estás a querer fugir do importante!!! Quanto é que vamos pagar? - ganhou ela coragem para o questionar.
- Olha, acho que foi um bom negócio. Eram mais que muitos. Os irmãos Costas, o meu primo "Piorreco", que já lá mora perto, o "Baguinha", o meu primo "Batatas", o "Chequim Galucho"... Todos ao mesmo. Uns danados. Parecia que estavam doidos...
Esquecera a sua própria "doideira"...
- Ó António, quantas fanegas?
- Bom... - gagueja ele - acho que foi um preço jeitoso. Éramos muitos e tive que oferecer... tive de me chegar à frente ... 52!!!
Ela acabara de fazer 30 anos. Uma rapariga bem jeitosa, na força da vida. Ele, um pouco mais velho, cheio de energia para fazer o que sempre fizera, trabalhar. No entanto, sentiu-se um gemido de sofrimento e um silêncio embaraçoso. Que era longe, já se sabia. Que daria muito trabalho. De certeza. Que ainda devesse pagar tanto é que não havia sido programado. 52 fanegas a 4 alqueires cada uma e a 20 litros o alqueire era de mais. Os anos travessos. As nossas terras tão "pobres"...
Estava jogado. O resto se veria.
O pequeno rebanho de 40 cabeças veio pelo S. Pedro, ainda na Tapada do Cabeço. Com dinheiro emprestado. A juros. Os lobos haviam de matar 14 desses animais, logo em Fevereiro seguinte, uma mortandade de que nunca houvera notícia...
As terras eram entregues pelo S. Miguel. Estes calendários a não baterem certos... um para os gados e pastores, outro para as terras e "ganhões"...
Outubro chegou, num instante. As tapadas estava de restolho. Alquevar era preciso. Para trás e para a frente, atrás da charrua de ferro puxada pelas vacas tão meigas e valiosas.
- Aí "Morena"! Ai "Cereja". Mete ao rego. Sempre a fazer das tuas. Precisas é o corpo bem coçado. Volta!!!
Como se o seu próprio corpo e o corpo daqueles dóceis seres não estivessem já bem coçados! Mas era a conversa de dias a dias, a seguir uns aos outros, até conseguir revoltear aquela terra, parecendo pouca, para a enorme renda que havia de ser paga, em devido tempo, e muita, muita mesmo para os milhares, centenas de milhares, milhões??? de passos que iriam ser dados para a revoltear, para a seduzir, para a emprenhar, para a fazer parir o sustento da casa. E da casa dos outros. Regos, sempre regos, vai e torna, vai e torna... Um desatino. Talvez com tino.
Levar o rebanho a pastar, naquela lonjura, "mal dava para o desperdício". Arrendaram também a Tapada da Eira, essa sim, ali a dois passos do Povo, com um palheiro e um casinhoto de telha vã e condições mínimas para ser habitado, com enorme desconforto, água de um poço bem grande e a da Ribeira para regar as hortas, capoeira para as galinhas, curral para o porco, bardo para o rebanho... Ali se assentaria o "quartel-general"... Por muitos, muitos anos. Até ao fim!
- Ficas com a Tapada da Eira por ser para ti. Não me esqueço que és afilhado do Sr. José Manuel, que foi meu marido. E não me esqueço de quanto ele gostava de ti!!! - dissera a viúva, de muitas posses e sem filhos, não se esquecendo, na altura da renda, de pedir as 18 fanegas - " também por ser p'ra ti, o preço "justo" eram as 20 e muitos a queriam!!!" - ficando para benefício dela a vinha, o pomar de macieiras e pereiras, as nozes - as nogueiras quase destruíram o melhor terreno de cultura hortícola, na margem da Ribeira - a cortiça e a azeitona.
- Vá, podes apanhar a bolota - condescendeu.
Que muito jeito havia de dar. Para meu desgosto, com a sua apanha!!! Que "seca"... muitas vezes molhada!
- Ah! Os pequenos podem apanhar a fruta que caia ao chão. Não vale abanar... E não toquem nas uvas!!! Nem nos figos!!!
Uma "mãos largas". Nem sempre os "pequenos" foram tão sérios como o eram os Pais. Mas só se é Criança uma vez!!! E aos Pais não se podia dizer tudo. Arranjariam um sarilho dos antigos!
*** Artº. 3º. nº. 11: O Ensino Primário (...) será obrigatório e gratuito. Da 1ª. Constituição Republicana, de 1911.
Em 12.05.1922, Leonardo Coimbra, ministro da Instrução, elabora a 2ª. Reforma do Ensino e decreta o Ensino Primário obrigatório de 5 anos. António aproveitou da melhor maneira esta "abertura" republicana. O Estado Novo passou a Instrução Primária para 4 anos. Para os rapazes. Às Meninas "bastaria" a 3ª. classe!!!
Em 21 de Junho de 1923, o então ministro da Instrução, João José da Conceição Camoesas, apresenta à Câmara dos Deputados uma proposta de reforma do ensino que assentava em 24 bases e o dividia em 3 categorias: Geral, Especial e Superior. A esta proposta deu o nome de Estatuto da Educação Nacional. Nada foi deixado ao acaso e o espírito democrático que professava este político e os ideais de cultivar o espírito, treinar as inteligências, educação para todos, etc., iam de encontro às ideias de António Sérgio, que apoiou, incondicionalmente, esta proposta de reforma e que se opôs aos protestos que surgiram contra ela. São suas as palavras: "Quem conspira contra a reforma medite bem no que vai fazer; porque assume perante o povo a mais tremenda das responsabilidades. Um dia a nação nos há-de julgar.", Carvalho, Rómulo de, História do Ensino em Portugal, Lx, !985, p.p. 703.
(Continua)

2 comentários:

oxendro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João L Oliveira disse...

Vim hoje com mais tempo para ler alguns dos seus textos e devolver-lhe a simpatia de também já me ter visitado.
Parabéns tem aqui um bom blog.