- Ó Maria, então o burro?!

Logo a seguir à de Aranhas, sempre a subir, suor a escorrer em bica pelas testas e faces avermelhadas, a boca seca, seca e as forças a faltarem, encostaram numa sombra e disse um deles:
- Não consigo mais! Preciso de água… água bem fresca!
- Mas onde?
- A serra é farta e há sempre uma fonte…
Realmente, a água fresca e cristalina a jorrar estava mesmo ali, à beira do “caminho” e foi beber… beber… dessedentaram-se, refrescaram-se …
Umas muitas pedaladas até lá acima a esgotaram-se as forças. Depois foi só a descer. Estavam no Salvador. Faltava o regresso…
Naquele tempo e em férias, a juventude abundava por estas aldeias da Beira interior e havia sempre conhecidos, familiares e amigos. Um pouco de conversa, bebidos uns pirolitos e umas laranjadas e o regresso teve de fazer-se. Mais penoso, as forças a faltarem…
Já o Sol abrandara o seu calor e a tarde caminhava para o fim, quando ele, cambaleante, entrou em casa. Apesar do calor, o frio subia-lhe pela espinha e tremia. Que frio!
- De onde é que vens? Que maluqueira foi esta? Que te aconteceu? Ai filho, filho, quando é que tomas juízo?!
Não era fácil a vida dos nossos camponeses. Trabalhar sempre. Mesmo com poucas forças. Só nos domingos e dias santos algum alívio…

Logo no nascimento, o delicado trabalho era acompanhado pela “parteira” da terra – a Ti Matilde – uma “curiosa” que “recebia” grande parte da garotada aqui na Aldeia. A parturiente ficava em pé, a criança era recolhida numa toalha e “Deus punha a mão”. Depois a avó, a ti Matilde e a jovem mãe haviam de conseguir… Tudo feito sem qualquer preparação científica, sem uma análise, sem um exame, sem uma ida ao médico, antes acreditando no saber a passar de geração em geração e pondo-o em prática. E em Deus e em Nossa Senhora da Graça. Se fosse preciso chamar o médico… a coisa podia estar feia e quase sempre acabava mal.
Assim começava a vida de mais um bebé na nossa Aldeia. Se a mãe tivesse leite, o futuro dele seria menos complicado, nos próximos dois anos. Sim, mamava-se até com dentes - era uma grande sorte, o mais fácil e estava sempre ali à mão. Complicado, complicado era mesmo a falta da mama. A procura do leite de vaca, de cabra, de ovelha e até de burra, no Verão, era muito, muito difícil e arranjar o precioso líquido uma dor de cabeça. Tinha de ser procurado por toda a povoação, pois a maior parte dos animais, em gestação, estava "seca" . Funcionava então a solidariedade e o alimento do bebé havia de aparecer. Tal leite era "forte" e tinha de se "desdobrar" com água fervida. As condições de higiene eram mais que precárias. O leite em pó só aparece na década de 50, assim como os primeiros biberons e tetinas. Tudo muito simples, quase artesanal. Não havia esterilizadores, não havia saneamento básico nem água canalizada. As condições higiénicas e de salubridade das nossas povoações eram muito precárias e a criação de animais dentro e em redor das aldeias e até vilas só piorava a situação. Fontes e poços de mergulho, com a água a escassear, no tempo quente. Um autêntico tormento. Febres intestinais e diarreias. Maleitas provocadas pela picada dos mosquitos. Espécie de paludismo... “Anda aí uma ‘malina…’”- dizia-se, em tom de alarme. Não é, pois, de admirar que, no cemitério, houvesse um talhão para “os anjinhos”. Logo à entrada.

Em tais circunstâncias, a maior parte da garotada entrava na Escola – sempre 7 anos completos – sem nunca ter sido vista por um médico, a não ser que corresse perigo grave. Eram frequentes os casos de raquitismo e subnutrição e um harmonioso desenvolvimento físico e mental daqueles seres em formação era bem complicado. À medida que a Criança crescia aí vinham as chamadas doenças infantis e poucos escapavam ao sarampo, varicela, rubéola, papeira ou trasorelho (”zarelho” como era chamado por aqui…), à tosse convulsa, dores de ouvidos e de dentes, quase sempre suportadas com enorme estoicismo e sofrimento, até “à cura”... Na época adequada, as gripes e as constipações eram generalizadas – as formas de combate e cura eram desconhecidas e o contágio praticamente inevitável. Na melhor das hipóteses, um comprimido de aspirina aliviava a situação.
Nem a paralisia infantil deixou de passar por aqui e deixar vítimas.
Nem a paralisia infantil deixou de passar por aqui e deixar vítimas.
Os doentes mentais não tinham possibilidade de qualquer apoio e, frequentemente, eram alvos das brincadeiras e da chacota dos que se julgavam mais “espertos”…
Numa altura em que os insecticidas não eram conhecidos e muito menos estavam divulgados, arranjavam-se expedientes caseiros para a luta contra a bicharada que atacava animais e pessoas, nomeadamente os piolhos, as carraças e as pulgas. Por esta época aparece o DDT, um veneno poderoso e muito tóxico, soube-se depois, mas que se tornou um poderoso auxiliar para tornar mais justa uma luta desigual e quase sempre perdida pelo homem contra tais inimigos.

Fotos retiradas da internet e Carlos Paião do Face Book. Homenagem ao artista e ao médico dedicado.
3 comentários:
... e apesar dos "maus tempos" que se avizinham, não deixamos de ser uns sortudos nos tempos de hoje...
Mais uma excelente viagem ao passado!
Obrigado, Vanda. Há sinais de que poderemos voltar e esses tempos tristes. Infelizmente, grande parte da Humanidade ainda não saiu de lá. O 1º. Mundo, por má cabeça de muita gente "de bem", pode estar à beira do mesmo abismo...
Esta era a realidade que marcou a nossa meninice e que tu tão bem aqui descreves,sinal de uma memória privilegiada e paixão por tudo aquilo que te marcou.
Que esses tempos não voltem mais...
Parabéns e um grande abraço.Jorge
Enviar um comentário