terça-feira, dezembro 06, 2011

A saúde na Aldeia 1

- Ó Maria, então o burro?! 
Num Verão quente, aquele dia 14 de Agosto abrasava. O grupo há muito que  planeara o passeio. Sem os Pais darem conta pois, nesse tempo, os 18 anos não serviam de carta de alforria para que cada um fizesse o que lhe desse na gana... Bicicletas próprias ou tomadas de empréstimo, depois de jantar pelo meio-dia, Sol a pique, aí vão eles a caminho da vizinha freguesia de Salvador. A estrada macadamizada era uma desgraça, mais terra com buracos do que pedras, quase sempre soltas.
Logo a seguir à de Aranhas,  sempre a subir, suor a escorrer em bica pelas testas e faces avermelhadas, a boca seca, seca e as forças a faltarem, encostaram numa sombra e disse um deles:
- Não consigo mais! Preciso de água… água bem fresca!
- Mas onde?
- A serra é farta e há sempre uma fonte…
Realmente, a água fresca e cristalina a jorrar estava mesmo ali, à beira do “caminho” e foi beber… beber… dessedentaram-se, refrescaram-se …
Umas muitas pedaladas até lá acima a esgotaram-se as forças. Depois foi só a descer. Estavam no Salvador. Faltava o regresso…
Naquele tempo e em férias, a juventude abundava por estas  aldeias da Beira interior e havia sempre conhecidos, familiares e amigos. Um pouco de conversa, bebidos uns pirolitos e umas laranjadas e o regresso teve de fazer-se. Mais penoso, as forças a faltarem…
Já o Sol abrandara o seu calor e a tarde caminhava para o fim, quando ele, cambaleante, entrou em casa. Apesar do calor, o frio subia-lhe pela espinha e tremia. Que frio!
- De onde é que vens? Que maluqueira foi esta? Que te aconteceu? Ai filho, filho, quando é que tomas juízo?!
Não era fácil a vida dos nossos camponeses. Trabalhar sempre. Mesmo com poucas forças. Só nos domingos e dias santos algum alívio…
As doenças não eram raras e o tratamento quase sempre de curandeira e de tradição. Chás das mais variadas espécies das nossas ervas, cada qual para um dado efeito, água de malvas, “unto sem sal”, rezas e benzeduras, defumadouros, “aguardente queimada” com açúcar, “escalda pés”, “suadouros”, vinho quente,  ventosas, sangrias... Nascia-se e morria-se, por vezes, sem ter conhecido o médico.
 Logo no nascimento, o delicado trabalho era acompanhado pela “parteira” da terra – a Ti Matilde – uma “curiosa” que “recebia” grande parte da garotada aqui na Aldeia. A parturiente ficava em pé, a criança era recolhida numa toalha e “Deus punha a mão”. Depois a avó, a ti Matilde e a jovem mãe haviam de conseguir… Tudo feito sem qualquer preparação científica, sem uma análise, sem um exame, sem uma ida ao médico, antes acreditando no saber a passar de geração em geração e pondo-o em prática. E em Deus e em Nossa Senhora da Graça. Se fosse preciso chamar o médico… a coisa podia estar feia e quase sempre acabava mal.
Assim começava a vida de mais um bebé na nossa Aldeia. Se a mãe tivesse leite, o futuro dele seria menos complicado, nos próximos dois anos. Sim, mamava-se até com dentes - era uma grande sorte, o mais fácil e estava sempre ali à mão. Complicado, complicado era mesmo a falta da mama. A procura do leite de vaca, de cabra, de ovelha e até de burra, no Verão, era muito, muito difícil e arranjar o precioso líquido uma dor de cabeça. Tinha de ser procurado por toda a povoação, pois a maior parte dos animais, em gestação, estava "seca" . Funcionava então a solidariedade e o alimento do bebé havia de aparecer.  Tal leite  era "forte" e tinha de se "desdobrar" com água fervida. As condições de higiene eram mais que precárias. O leite em pó só aparece na década de 50, assim como os primeiros biberons e tetinas. Tudo muito simples, quase artesanal. Não havia esterilizadores, não havia saneamento básico nem água canalizada. As condições higiénicas e de salubridade das nossas povoações  eram muito precárias e a criação de animais dentro e em redor das aldeias e até vilas só piorava a situação. Fontes e poços de mergulho, com a água a escassear, no tempo quente. Um autêntico tormento. Febres intestinais e diarreias. Maleitas provocadas pela picada dos mosquitos. Espécie de paludismo... “Anda aí uma ‘malina…’”- dizia-se, em tom de alarme. Não é, pois,  de admirar que, no cemitério, houvesse um talhão para “os anjinhos”. Logo à entrada.
No entanto, muitas Crianças  iam “escapando” e crescendo num verdadeiro milagre que só as leis da Natureza poderiam, talvez, explicar. Acompanhavam os pais nos trabalhos dos campos, bebiam água das fontes e dos regatos, dormiam à sombra das árvores mais frondosas e, muito cedo, começavam a comer dos parcos alimentos dos seus progenitores. Desde muito pequeninos ajudavam nas tarefas domésticas e rurais, dando assim valor ao esforço familiar e construindo laços indestrutíveis que só a solidariedade pode originar. Era comum ouvir-se “de pequenino se torce o pepino” ou “o trabalho do menino é pouco… quem o perde é louco”! E de exploração do trabalho infantil nunca alguém se queixou...
Em tais circunstâncias, a maior parte da garotada entrava na Escola – sempre 7 anos completos – sem nunca ter sido vista por um médico, a não ser  que corresse perigo grave. Eram frequentes os casos de raquitismo e subnutrição e um harmonioso desenvolvimento físico e mental daqueles seres em formação era bem complicado. À medida que a Criança crescia aí vinham as chamadas doenças infantis e poucos escapavam ao sarampo,  varicela, rubéola,  papeira ou trasorelho  (”zarelho” como era chamado por aqui…), à tosse convulsa, dores de ouvidos e de dentes, quase sempre suportadas com enorme estoicismo e sofrimento, até “à cura”... Na época adequada, as gripes e as constipações eram generalizadas – as formas de combate e cura eram desconhecidas e o contágio praticamente inevitável. Na melhor das hipóteses, um comprimido de aspirina  aliviava a situação.
Nem a paralisia infantil deixou de passar por aqui e deixar vítimas.
Os doentes mentais não tinham possibilidade de qualquer apoio e, frequentemente, eram alvos das brincadeiras e da chacota dos que se julgavam mais “espertos”…
Numa altura em que os insecticidas não eram conhecidos e muito menos estavam divulgados, arranjavam-se expedientes caseiros para a luta contra a bicharada que atacava animais e pessoas, nomeadamente os piolhos, as carraças e as pulgas. Por esta época aparece o DDT, um veneno poderoso e muito tóxico, soube-se depois, mas que se tornou um poderoso auxiliar para tornar mais justa uma luta desigual e quase sempre perdida pelo homem contra tais inimigos.
Também se torna presente a vacina contra a varíola e vem até à Aldeia a carrinha volante do IANT para despiste da tuberculose e seu combate com as “micro radiografias”, a “prova da tuberculina” e a vacina BCG… A saúde oral era o bem “desnecessário” e só para arrancar os primeiros dentes definitos, já em mau estado, se acorria  ao barbeiro, o Ti Guerra, ou a um “mecânico dentista”, militar do nosso Exército, que muitas vezes faziam a extração a “ferro frio” por não haver anestesia ou dinheiro para ela. Uma crueldade necessária, mas incompreensível nos dias de hoje. Era apenas aqui o único meio de aliviar, de vez, uma dor de dentes atroz... Dá-se início a alguns tratamentos de dentes, os “chumbados”. Enfim, uma vida de trabalhos, sofrimentos, sem direitos nem pensões, sem abonos de família nem médicos, sem centros de saúde nem comparticipações nos remédios poucos que se compravam, época em que a sobrevivência dos mais velhos era assegurada pela a generosidade e gratidão dos  filhos. E até de uma vizinhança solidária que sabia que havia de chegar a ocasião de também vir a precisar e que a ajuda mais rápida  haveria de estar ali ao lado, no vizinho. Quase todos  teriam histórias  de dores de cabeça, de dentes, amigdalites, constipações, gripes a serem “curadas” com “aguardente queimada”, vinho quente com açúcar ou mel, ou com  “pingo” de toucinho, suadouros, ventosas… e até “bichas” (sanguessugas) deitadas para tirar o “sangue mau”… E também se morria... Mesmo  na morte o pobre continuava sempre pobre, pois os cadáveres podiam ser deitados na sepultura embrulhados num lençol ou metidos num caixão de "quatro tábuas" pregadas. O famoso "remédio" das "quatro tábuas" que tudo "curava...
Fotos retiradas da internet e Carlos Paião do Face Book. Homenagem ao artista e ao médico dedicado.

3 comentários:

Vanda RS disse...

... e apesar dos "maus tempos" que se avizinham, não deixamos de ser uns sortudos nos tempos de hoje...

Mais uma excelente viagem ao passado!

António Serrano disse...

Obrigado, Vanda. Há sinais de que poderemos voltar e esses tempos tristes. Infelizmente, grande parte da Humanidade ainda não saiu de lá. O 1º. Mundo, por má cabeça de muita gente "de bem", pode estar à beira do mesmo abismo...

Jorge Passos disse...

Esta era a realidade que marcou a nossa meninice e que tu tão bem aqui descreves,sinal de uma memória privilegiada e paixão por tudo aquilo que te marcou.
Que esses tempos não voltem mais...
Parabéns e um grande abraço.Jorge