domingo, outubro 31, 2010

Medos na Aldeia 3

A Trovoada
Sob o calor sufocante de final do mês de Julho, as malhas estavam feitas, as palhas arrecadadas, as rendas pagas e as arcas e arcazes dos que tanto haviam trabalhado e suado as camisas de cotim, naquele ano, ficaram de maneira a alegrar o coração. O alimento dos filhos estava garantido.
 Para as sementeiras… no Outono, logo se veria...
As terras dos milheirais, sachados e aterrados e as do feijão pequeno suspiravam por água como de pão ansiavam as bocas dos pobres. Dias e dias de calor intenso e nem uma nuvem que escondesse aquele sol abrasador, que aliviasse aquele ar quente que ardia as gargantas e secava os pulmões, respiração ofegante.
Pelas festas de S. João e de S. Pedro, alguns orvalhos e umas poucas chuvas ainda trouxeram um alento àquela vida que brotava da terra, mas nada que pudesse garantir colheita capaz de “tirar a barriga de misérias”.
Também a Padroeira, Santa Maria Madalena, era amiguinha de trazer aquela chuva bem chovida por que todos suspiravam. Mas haviam passado e nada… e os renovos, vergados ao peso daquele calor tão intenso, definhavam.
Ao jantar, comera-se da farta sopa camponesa, do pão e do queijo, à sombra dos eucaliptos, lá no alto do pequeno outeiro, declives suaves, a dar para a Ribeira. Uma soberba paisagem enchia os olhos e acalmava a alma. Monsanto, Aranhas, Salvador, Medelim ali em volta, até onde a vista podia alcançar. Com as altas temperaturas, o ar tremia como se estivesse com maleitas. Sob calor intenso, aproveitaram para gozar da hora da sesta num bem merecido e pouco reparador sono, em cama improvisada sobre a terra…
Primeiro como num sopro, depois a agitar as folhas das frondosas árvores uma brisa suave e refrescante começou a correr, vinda do Sul, da campina de Idanha, e lá muito ao longe as nuvens começaram a aparecer e a deslizar sempre subindo, subindo.
Não tardou que se ouvisse, ainda longe, o ribombar dos primeiros trovões. Depois, lenta e firmemente, com ruído e com estrondo, o céu azul foi desaparecendo e as nuvens negras, ameaçadoras, ocuparam todo o espaço.
As primeiras gotas da chuva cada vez mais intensa foram abafando o pó da terra sequiosa. No ar, começou a sentir-se o agradável odor do chão molhado. Entre relâmpagos e trovões, fazia-se a contagem para calcular a distância e, de repente, foi como se o céu se abrisse e a água desatou a cair de aluvião.
Refugiados debaixo do telhado da modesta habitação, os camponeses que, ainda há pouco, bendiziam a chuva como a salvação de toda uma colheita, fechavam os olhos à luz dos relâmpagos e estremeciam com o ruído ensurdecedor dos trovões, as crianças tapando os ouvidos. As telhas não suportavam todo o caudal e aqui e ali as goteiras caíam dentro do acanhado edifício. O largo em frente estava num “lago e, pelas encostas, as torrentes de águas desenfreadas traçavam sulcos e arrancavam as plantas. Lá, na “baixa”, em poucos minutos apareceu o “mar”. Tudo coberto de água.
Nesta altura, como em tantos outras, a Fé tomou o seu lugar: “Santa Bárbara bendita nos acuda!”
A chuvada era intensa, trovões e relâmpagos não paravam. As faíscas descarregavam em direcção à terra, em sulcos de luz fascinantes e medonhos. Splash… splash! Catra-pum…pum…puumm. E mais um, e outro, ainda outro, o mundo ia acabar. O altivo sobreiro, ali a pouca distância, que durante anos crescera na beira da caminho, atingido por uma poderosa descarga eléctrica, rachou de alto a baixo. Num abrir e fechar de olhos. Nem isso.
Os camponeses caem de joelhos.
- Nossa Senhora da Graça, valei-nos! Santa Maria Madalena, rogai por nós! Santíssimo Sacramento, tende piedade de nós. Almas benditas do Purgatório, rogai por nós!
A chuva torrencial não para da cair. Os trovões e relâmpagos atormentam olhos e ouvidos. Splash… splash… splash…. Catrapum…. Catrapum…. Pum…. Pummmm….. puuummm!!!
Regatos e ribeiros, valetas e barrocas, começaram a transbordar. A Ribeira, lá ao fundo, devia estar pelo meio, “de mar a monte!” Tanta chuva há muito que se não via. E não havia maneira de abrandar. Sempre mais e mais. Relâmpagos, raios em direcção à terra, iluminavam a tarde que se fizera noite. O ribombar dos trovões atemorizava as gentes, que se sentiam ainda mais pequeninas neste afirmar de força da Natureza.
Mesmo em frente, espreitando pela porta entreaberta, o olhar de águia do Pai, mais corajoso que curiosos, ia informando o que conseguia ver do espectáculo que enchia todo o horizonte:
- O Ribeiro do Forninho está já a deitar fora. A Ribeira deve ir de “entulho”. Olha, Ribeiro começou a pular para a horta do guarda-rios…
- Santa Bárbara Bendita, levai esta trovoada lá p’ràqueles matos maninhos, onde não haja mulher com menino nem vaca com bezerrinho… Aflita cheguei à Cruz, aflita cheguei a vós, Senhora do Carmo rogai por nós! – rezava a Mãe com os garotos agarrados a ela.
- O muro da horta do guarda-rios não vai resistir. A água está e pular. Olha…. já foi o muro e a horta…. A Ribeira acaba de pular para dentro da nossa Tapada. Sorte foi termos arrancado as batatas… O resto… logo se vê… - informava o Pai conformado e calmo.
- Senhora do Carmo, rogai por nós, Senhora da Graça, valei-nos! Senhor Jesus, tende piedade. Tanta falta que a água cá fazia e agora uma coisa assim!!!! Santa Bárbara bendita, levai esta trovoada… Sagrado Coração de Jesus, nós temos confiança em Vós! Avé Maria, cheia de graça...
A chuva começou a abrandar. Os relâmpagos e trovões mais esparsos. Os campos alagados, quase não deixando ver as plantas. Os pastores, encharcados dos pés às cabeça, mesmo recolhidos na choça, muito a custo mantiveram o rebanho unido, dentro do bardo, animais também aterrorizados e encharcados. O caminho transformara-se num ribeiro com a água da enxurrada arrastando pedras e terras.
O tempo fora passando, lentamente, como sempre em ocasiões de aflição. A trovoada amainara. Da capoeira saíram as galinhas com as penas a escorrer água, aventurando-se a caminhar sob a chuva que ainda caía. Os cães voltaram do palheiro, ainda amedrontados, sacudindo a água do pêlo. Adultos e crianças vão retomando a normalidade das conversas. Pai e mãe deitam contas à vida.
- Com estará a horta?! E o melancial?! – interrogou-se o pai, em voz alta. - Olha se não temos arrecadado as batatas… Podia ser pior… - acrescentou, tentando sempre olhar as situações pelo seu lado bom.
- Ah! O milho que se salvar é que vai agradecer tanta água… - acrescentou a mãe, procurando tirar proveito de uma situação que sempre a assustava. Havia um novo “podia ser pior”... Perdurava na memória da Aldeia a nunca esquecida “trovoada do Carriço”, durante uma noite, anos atrás, em que a Ribeira transbordara, já a caminho de Medelim, e levara o rebanho, o Carriço e a família, a dormir na choça, para nunca mais…
A tempestade, lentamente, afastou-se em direcção a Norte. As carregadas nuvens escuras deram lugar a outras que foram clareando a tarde que caminhava para o fim. Lagos de azul no céu e o sol ainda a espreitar a terra agora farta e cheia de esperança. Mesmo na calamidade que levou muros e hortas. A água… esperança e desespero da nossa terra, chegara. Uma bênção de meter medo.
 


sábado, outubro 30, 2010

A Bíblia para os dias de hoje?!

Evangelho segundo S. Lucas 14,1.7-11.
Tendo entrado, a um sábado, em casa de um dos principais fariseus para comer uma refeição, todos o observavam. Observando como os convidados escolhiam os primeiros lugares, disse-lhes esta parábola: «Quando fores convidado para um banquete, não ocupes o primeiro lugar; não suceda que tenha sido convidado alguém mais digno do que tu, venha o que vos convidou, a ti e ao outro, e te diga: 'Cede o teu lugar a este.' Ficarias envergonhado e passarias a ocupar o último lugar. Mas, quando fores convidado, senta-te no último lugar; e assim, quando vier o que te convidou, há-de dizer-te: 'Amigo, vem mais para cima.' Então, isto será uma honra para ti, aos olhos de todos os que estiverem contigo à mesa. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado.»
Da Bíblia Sagrada

quarta-feira, outubro 20, 2010

Medos da Aldeia 2

As Bruxas
As noites eram longas e os serões um momento de convívio e partilha das vidas de cada um e da Comunidade.
De fora, raramente chegavam notícias. Sem rádio nem TV, sem jornais nem revistas, um elevado número de analfabetos constituíam o alfobre ideal para que as bruxas aparecessem e por lá permanecessem.
As famílias reuniam-se à volta da lareira, fonte de calor e de luz, onde a ceia era cozida em panelas de ferro e também era aquecida a água para as lavagens e trato dos animais.
Acabada a ceia, o convívio estabelecia-se entre os mais velhos, as Crianças a escutar, enquanto o sono não as levasse para a cama.
Abundavam as castanhas e elas eram um sólido complemento das parcas refeições, cozidas ou assadas. De vez em quando, a Ti Vicenta entrava por ali dentro, na esperança de uma noite menos longa e também na de levar os pés quentes para a cama sem grande gasto na pouca lenha de que dispunha e também na de sair com o estômago mais confortado.
Não tendo novidades para dar, a conversa conduzia, quase sempre, à “certeza” de que havia bruxas pelo Mundo. E de que também na Aldeia elas tinham assentado arraiais. Até as conhecia. Depois… era um desfiar de histórias fascinantes e aterradoras, que faziam os gaiatos mexer-se, inquietos, nos seus assentos e sentir arrepios na espinha, enquanto se chegavam mais p’ra junto do lume crepitante da lareira.
- Estás com medo, filho?! – perguntava a jovem mãe.
- Não, Mãe, é frio… - encolhia-se o garoto armado em valente.
- Vejam bem – contava a vizinha, já sexagenária, numa voz calma e convicta – que ELA, mal entrou no forno de cima, logo o pão do tabuleiro da Angélica baixou no tabuleiro como se não tivesse levado crescente… E o Jaquim Bento apanhou-a mesmo em cima da vaca, que ficou doente e quase a morrer. Ainda hoje não sabe como entrou no palheiro. Talvez pela fechadura. Mas saiu pela porta com a vara das vacas a estalar-lhe no lombo… - rematava muito convencida.
As histórias de bruxas da Ti Vicenta, do Ti Jaquim Cabeco, da minha avó… tinham que se lhe dissesse. Não havia idoso que se considerasse digno desta sua condição que não tivesse contactado com uma bruxa, pelo menos uma vez na vida. Estávamos nos anos cinquenta!
Também conheci “bruxas”. Mulheres velhas antes do tempo, carregando um enorme peso insuportável de levar, em forma de carimbo: bruxa. Pobres, humildes, simples, cabisbaixas, olhos no chão, não fosse o “mau olhado” traí-las e complicar-lhes ainda mais uma vida já de si bem complicada. Não tinham trabalho, ninguém lhes confiava trabalho, "não fosse o Diabo tecê-las"... Sobreviviam da esmola, que não lhes era dada por solidariedade, mas por medo de que a sua recusa pudesse trazer coisa má à família.
Havia situações em que a “bruxa” podia ser um “bem”: havendo suspeita de que o bruxedo havia entrado em casa, nada melhor para o combater do que ir à “concorrência”. “Tirar os acidentes” com rezas e benzeduras e pingos de azeite em prato raso de água, defumadouros de alecrim, incenso e asperges de água benta. Muito antes de os garotos aprenderem a ler, já sabiam "fazer figas" para que as maléficas bruxas não lhes pudessem fazer mal. E, com a irreverência tão própria da infância, não "faziam figas", às escondidas, como os adultos, com as mãos escondidas nos bolsos ou debaixo do avental, antes hostilizavam as infelizes destinatárias com os punhos e dedos bem preparados para o esconjuro... e o anátema "Bruxa!"
Tudo e todos podiam ser vítimas das bruxas. Pessoa ou animal doentes… provavelmente embruxados. Cozedura de pão que corria mal por deficiências na farinha ou no amassar… embruxado, com certeza. Sementeira que não produzia o esperado… o “mau olhado” andara pelos campos.
Depois… a Escola, a Instrução e a Educação foram quase tão fatais para as bruxas como a própria Morte que as levou. Para seu e nosso descanso.
Nos tempos que correm… poucos acreditam em bruxas. Mas vendo e ouvindo os nossos políticos e governantes e tendo consciência do estado a que isto chegou havemos de exclamar:
- Mas lá havê-las… há!!!
Só por "mau olhado"!!!
(Vivências de Aldeia, com liberdade de escrita do autor. Foto e vídeo da internet)

quinta-feira, outubro 14, 2010

A Bíblia para os dias de hoje?!

Carta aos Gálatas 5,18-25.
Ora, se sois conduzidos pelo Espírito, não estais sob o domínio da Lei. Mas as obras da carne estão à vista. São estas: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizades, contenda, ciúme, fúrias, ambições, discórdias, partidarismos, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas. Sobre elas vos previno, como já preveni: os que praticarem tais coisas não herdarão o Reino de Deus. Por seu lado, é este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio. Contra tais coisas não há lei. Mas os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões e desejos. Se vivemos no Espírito, sigamos também o Espírito.
Evangelho segundo S. Lucas 11,42-46.
Mas ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as plantas e descurais a justiça e o amor de Deus! Estas eram as coisas que devíeis praticar, sem omitir aquelas. Ai de vós, fariseus, porque gostais do primeiro lugar nas sinagogas e de ser cumprimentados nas praças! Ai de vós, porque sois como os túmulos, que não se vêem e sobre os quais as pessoas passam sem se aperceberem!» Um doutor da Lei tomou a palavra e disse-lhe: «Mestre, falando assim, também nos insultas a nós.» Mas Ele respondeu: «Ai de vós, também, doutores da Lei, porque carregais os homens com fardos insuportáveis e nem sequer com um dedo tocais nesses fardos!

quarta-feira, outubro 13, 2010

O Amor, por S. Paulo

1 Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. 2 Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas,  se não tiver amor, nada sou. 3 Ainda que eu distribua todos os meus bens  e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita.  4 O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, 5 nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. 6 Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. 7 Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. 8 O amor jamais passará. As profecias terão o seu fim, o dom das línguas terminará e a ciência vai ser inútil. 9 Pois o nosso conhecimento é imperfeito e também imperfeita é a nossa profecia. 10 Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. 11 Quando eu era criança,  falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Mas, quando me tornei homem, deixei o que era próprio de criança. 12 Agora, vemos como num espelho,  de maneira confusa; depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido. 13 Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior
 de todas é o amor.
 
                   

terça-feira, outubro 12, 2010

A Ribeira

Há 60 anos, a Ribeira continha, nas suas margens, grande parte da vida e da riqueza de Aldeia.
Desde o limite da freguesia vizinha de Aranhas até à raia do Concelho, lá para a Arrancada, a caminho de Medelim, alguns dos nossos melhores campos de cultivo ficavam na beira do nosso mais significativo curso de água.
Embora a maior parte dos terrenos adjacentes pertences- se às casas "grandes", os "remediados" na sua própria terra, e os rendeiros nos terrenos que alugavam, extraíam de lá o seu sustento com o suor do seu rosto e os calos das suas mãos.
Verdadeiramente, boa parte da vida da Aldeia, de Junho a Setembro, mudava-se para junto da Ribeira. Ali, Verão fora, salvo nas pausas dos trabalhos, abrigados à sombra de sobreiras e de oliveiras, nas poucas  "casas" de pedra cobertas com telha mourisca ou com palha, em choças de colmo de centeio, os nossos camponeses tinham mil tarefas para cumprir: lavras, cavas, sementeiras, sachas e mondas, ceifas, acarrejas, descamisas e malhas, regas e colheitas diversas. Também a sesta, sob um calor abrasador ou o descanso nocturno com a "música" e as picadas das melgas e dos mosquitos.
Eram interessantes os serões, lá nos campos, a contar as estrelas cadentes ou sob um luar sem paralelo. Habitualmente, um céu aclarado por milhares de pontos luminosos, "aliviava" uma escuridão de quase não se verem as "camas" em que cada um procurava alívio das canseiras passadas e forças para um novo dia de uma vida sem novidades.
Apenas dois ou três pontões existiam para a travessia da nossa Ribeira, enriquecida aqui e ali com os seus pequenos mas bem importantes afluentes. Fora dos pontões, na maior parte das passagens, na época de maior caudal, a travessia era feita a vau ou saltando de poldra em poldra, blocos de granito espetados no leito e que cada um tentava pular de modo a não meter os pés na água. Tarefa pouco fácil para os mais idosos ou para quem transportasse um pesado cesto à cabeça, um caldeiro quase sempre cheio enfiado no braço, uma criança de colo e outra um pouco maior, a choramingar "Mãe, pega-me que estou cansado..." Ou com um molho de lenha, um saco bem pesado às costas. O corpo humano era um dos mais disponíveis transportes da época e muito raro seria ver alguém entrar no Povoado, de regresso do trabalho, com o "corpinho ao alto". Grande parte da população nem tinha posses para adquirir e sustentar um burro que ajudasse a aliviar das muitas canseiras de cada dia. Era mesmo preciso "dar o corpo ao manifesto". Assim, carregando excesso de peso ninguém tinha peso em excesso...
As enxurradas do Inverno já lá iam, a Primavera fora amorosa e até meados de Julho a Ribeira levava água bastante que se pudesse aproveitar para regar hortas, batatais e milheirais. Sítios havia que, com pequenos açudes, se conseguia que a água irrigasse, no seu caminhar, as pequenas várzeas da vizinhança. Depois, numa charca aqui, numa represa acolá, na maior parte das situações, era tirada com caldeiros ou baldes de lata, a pulso, com auxílio da picota ou burra com varais de pinho ou eucalipto. O mesmo trabalho era feito para retirar a água dos numerosos poços abertos nos terrenos limítrofes da Ribeira, pois o motor de rega estava por inventar e as poucas noras se contavam pelos dedos das mão. Uma trabalheira.
O açude mais significativo era o que alimentava a azenha, ali na zona do "Pontão". Em toda a minha meninice ali se moía  trigo,  centeio e  milho em perfeita harmonia ambiental,: a água deslizava na levada e fazia girar a enorme roda de madeira a conseguir que uma engrenagem "misteriosa"   fizesse  trabalhar as mós de pedra que transformavam o grão em farinha...
Para usar a água da Ribeira era preciso obter a respectiva licença de utilização junto do guarda-rios. Também ele se encarregava de velar pelo cumprimento da obrigação de cada um, nos meses de Julho e Agosto, limpar as margens e o leito da nossa Ribeira, onde cresciam salgueiros, freixos, choupos e muitas silvas, onde rouxinóis e melros haviam feito os ninhos e, no Verão, se abrigavam do calor e dos predadores. Limpeza feita - os rebanhos também tinham nesta tarefa um papel importante - lá para fins de Setembro, as primeiras chuvadas e enxurradas teriam o caminho livre para chegarem ao seu destino sem grandes contratempos para os campos em redor, o que nem sempre se conseguia evitar, quando vinha uma daquelas "trovoadas a sério"...
Nos serões de Verão era frequente as vizinhanças falarem de cá para lá e de lá para cá, contando as "últimas" quase sempre já "velhas".
Só muito raramente se acendia outra luz que não fosse a da fogueira onde se cozinhava e os serões poderiam ser passados na mais completa escuridão, apenas à luz das estrelas. Raramente, uma candeia de azeite ou de petróleo...
Dada a proximidade das famílias por ali "acampadas", alguns namoros tiveram lugar por lá, nos arredores da nossa Ribeira e, de vez em quando, de lá saíam casamentos... Sem as "poucas vergonhas" e as "pressas" dos dias em que hoje vivemos... Tudo gente "séria", pois as raparigas bem sabiam que as "facilidades" de hoje podiam dar enormes complicações no futuro.
Mesmo às escuras, mas com especial encanto nas noites de lua cheia, se podia aproveitar o tempo para descamisar as maçarocas, tirar o feijão das vagens, cantar ao desafio, contar histórias de bruxas e lobisomens, descascar as batatas para o almoço da manhã seguinte, rezar. De vez em quando um habilidoso fazia ouvir o seu realejo, mas o som mais recordado era o do Zé Piolgo a tirar melodiosos sons do pífaro que ele próprio construía com pau de sabugueiro. As tardes eram longas, os serões curtos, pois o sol havia de aparecer bem cedo, ainda o sino lá da torre não batera as 6 horas da manhã.
Alguns dos mais conhecidos apelidos da nossa Aldeia tiveram que ver com a Ribeira: Baguinhas, Piolgos, Cabecos, Filipes, Passotas, Lãs-Brancas, Cácaus, Flachos, Dominós, Piorrecos, Burricos, Pirolitos, Fecos, Colhudos, Malaguetas, Pichins, Caixas, Carneiros, Cabos-Esteiros, Duartes, Choras, Chorelas, Paíchas, Ratinhos... um nunca acabar!
Ali cresceram, trabalharam, sofreram, amaram. Sempre pobres, quase sempre felizes, raramente zangados.
Solidariedade bastante num trabalho mais complicado ou numa aflição inesperada que exigisse o esforço de todos... era certo e sabido que todos diriam "aqui estou".
Hoje, tenho uma vida melhor?! Não estou certo disso.
Uma homenagem ao Grupo de Adufes de Proença-a-Velha, terra do meu coração. Algumas das cantigas ouvia-as nos dias e noites lá pela Ribeira.
Aqui são narradas situações reais, com a liberdade de escrita que o autor entendeu usar.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Masoquismo?!

Impiedoso perfil psicológico do povo português
Falho de espírito crítico, ávido de sensações, ignorante e pouco previdente confunde o ancestral de mândria e uma confiança estúpida nos que, por força o hão-de explorar. Indignado ao ver-se no ludíbrio é então feroz.
1 - “O português desinteressa-se colectivamente. Não vibra numa acção conjunta. Entusiasma-se facilmente, é um rastilho, mas com a mesma rapidez se aborrece. É uma faúlha. Impulsivo, ardente, consome-se como um fogueirão de palha. Para ele só existe o facto realizado. Falho de espírito crítico, ávido de sensações, ignorante e pouco previdente confunde o ancestral de mândria e uma confiança estúpida nos que, por força o hão-de explorar. Indignado ao ver-se no ludíbrio é então feroz. Pachola ante o fascinador, o intrujão, é pascácio e tolo como seu filho a quem venderam cordões de latão.
Em políticos já não acredita e hoje tem apenas um ideal à vista e outro escondido. O que mostra é ânsia de comer barato, o que oculta é o sonho de se alimentar de graça. Para o primeiro caso delicia-se na esperança de não produzir nada; fez do estado a sua providência, a sua varinha de condão. Depois de se empregar no funcionalismo levou para as repartições a mulher e os filhos e há lares onde à noite se podia dar despacho pois não faltaria nem o papel de ofício, que por via de regra também se leva para usos caseiros. Ninguém dá um passo que lhe custe. Uns porque andam descalços (é o único país da Europa onde isso se vê), outros, porque têm as botas apertadas, ao que parece.
Não são pessoas para cálculos nem para meditações. Aceitam os factos realizados, (…). Versátil por natureza, sem carácter firme, balouçando sempre entre várias opiniões como as ondas que banham as costas do país, entre os rochedos, mudando amiúde como os céus que o cobrem, desvairando rapidamente como o vento, que tão veloz ali se levanta, ele não é capaz de sustentar nem um princípio, nem um homem, quanto mais um programa.”
(Texto de Rocha Martins, figura marcante do jornalismo português da primeira metade do séc. XX, escrito em 1923, na revista Fantoches, lido na Antena um, no programa “Páginas da República”, de 8/9/2010, pelo historiador António Ventura).
2 - “Para sermos políticos, de acordo com o Oxford English Dictionary, que passamos a traduzir, devemos ser sagazes, prudentes, sensatos, oportunos, astutos e ter capacidade de planeamento. Assim sendo, o comportamento político numa organização pode ser desejável ou indesejável.
(…) Algumas pessoas acreditam realmente que utilizar meios políticos para atingir os seus objectivos beneficiará a organização e eles próprios. Há quem racionalize esta constatação e, ainda, quem tente perseguir declaradamente os seus objectivos. Este último grupo de pessoas poderá utilizar todo o seu poder de persuasão para legitimar os seus fins aos olhos dos seus colegas, mas o seu interesse próprio continua a ser prioritário. É este tipo de políticos corporativos que o Oxford English Dictionary descreve como «planeadores perspicazes, conspiradores astutos ou intrigantes». Os políticos no seio de organizações podem ser assim, manobrando nas costas das pessoas e boicotando propostas que não lhes agradam. É à custa dos outros que melhoram a sua reputação e desenvolvem sua carreira. Por outro lado, podem ser pessoas invejosas e ciumentas que agem em função disso. Em suma, são um perigo.”
(Michael Armstrong, Como Ser Ainda Melhor Gestor – Guia completo de técnicas e competências essenciais, Ed. Actual Editora, Lisboa, 2005).
3 - “Os políticos, em lugar de se ajudarem entre si e uns aos outros nesta tarefa difícil que é administrarem um país, em que se tem ao mesmo tempo que olhar o presente com todo o cuidado objectivo, e ter a maior confiança no que se pode concretizar de futuro, em lugar de os políticos se ajudarem uns aos outros, se auxiliarem, a realmente levar essa tarefa por diante, tantas vezes se entretêm, em todos os países, a lutar uns com os outros, a desacreditarem-se uns aos outros, como se isso pudesse fazer avançar seja o que for.” (Agostinho da Silva).
Por: Norberto de Oliveira Manso - (In "Jornal Cinco Quinas")

segunda-feira, outubro 04, 2010

Dia de S. Francisco de Assis no Dia do Animal...

São Francisco de Assis, nasceu na cidade de Assis, Úmbria, Itália, no ano de 1182, de pai comerciante, o jovem rebento de Bernardone, gostava das alegres companhias e gastava com certa prodigalidade o dinheiro do pai. Sonhou com as glórias militares, procurando desta maneira alcançar o "status" que sua condição exigia, e aos vinte anos, alistou-se como cavaleiro no exército de Gualtieri de Brienne, que combatia pelo papa, mas em Espoleto, teve um sonho revelador no qual era convidado a seguir de preferência o Patrão do que o servo, e em 1206 , aos 24 anos de idade para espanto de todos, Francisco de Assis abandonou tudo: riquezas, ambições, orgulho, e até da roupa que usava, para desposar a Senhora Pobreza e repropor ao mundo, em perfeita alegria, o ideal evangélico de humildade, pobreza e castidade, andando errante e maltrapilho, numa verdadeira afronta e protesto contra sua sociedade burguesa.

Já inteiramente mudado de coração, e a ponto de mudar de vida, passou um dia pela igreja de São Damião, abandonada e quase em ruínas. Levado pelo Espírito, entrou para rezar e se ajoelhou devotamente diante do crucifixo. Tocado por uma sensação insólita, sentiu-se todo transformado. Pouco depois, coisa inaudita, a imagem do Crucificado mexeu os lábios e falou com ele. Chamando-o pelo nome, disse: "Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está em ruinas".
Com a renúncia definitiva aos bens paternos, aos 25 anos, Francisco deu início à sua vida religiosa. Com alguns amigos deu início ao que seria a Ordem dos Frades Menores ou Franciscanos, cuja ordem foi aprovada pelo Papa Inocêncio III. Santa Clara, sua dilecta amiga, fundou a Ordem das Damas Pobres ou Clarissas. Em 1221, sob a inspiração de seu estilo de vida nasceu a Ordem Terceira para os leigos consagrados. Neste capítulo da vida do santo é caracterizado por intensa pregação e incessantes viagens missionárias, para levar aos homens, frequentemente armados uns contra os outros, a mensagem evangélica de Paz e Bem. Em 1220, voltou a Assis após ter-se aventurado a viagem à Terra Santa, à Síria e ao Egipto, redigindo a segunda Regra, aprovada pelo Papa Honório III. Já debilitado fisicamente pelas duras penitências, entrou na última etapa de sua vida, que assinalou a sua perfeita configuração a Cristo, até fisicamente, com o sigilo dos estigmas, recebidos no monte Alverne a 14 de setembro de 1224.