segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Medos na Aldeia 6


A Fome e seus aliados(1)
A invernia caía travessa, cruel e não havia quem desse "um dia a ganhar". O pouco que se juntara, no Verão e no Outono, já só dava para sacudir as bolsas, os sacos e os taleigos na esperança de que ainda por lá ficara um grão.
Lares com 6 e 7 filhos. Era uma dor de alma vê-los enganar a fome de pais e filhos com água, um fio de azeite grosso e sal, umas couves mal amanhadas, cozidas em lume fumarento de lenha verde que mal dava para aquecer e alumiar aquela "cozinha" desconfortável e insalubre, de forma a que desse a aparência de um caldo decente. Um resto de castanhas que um vizinho oferecera podiam fazer uma enorme diferença,
- Mãe, quero pão.
Não se pedia com queijo, com azeitona, com um bocado de toucinho. Simplesmente PÁO.
A Guerra terminara, em meados de 1945 e, por todo o Mundo, o seu cortejo de misérias e necessidades, que também se estenderam ao nosso Portugal. O racionamento fora imposto, nos bens "essenciais", a toda a população: massa, arroz, açúcar, sabão, farinha, pó de café... um tanto por cabeça, quando não havia batota, ao tempo muito menos descarada do que nos dias em que hoje vivemos.
Quase todas as crianças iam descalças para a escola, grande parte delas enganando o estômago com água "suja" de café, uma gotas de leite uma riqueza. Almoço a sério era privilégio de muito poucos. Escola sem aquecimento, sem luz, dezenas e dezenas de alunos mal instalados, dois professores - uma para as raparigas e outro para os rapazes. Cantina escolar, na Aldeia, nunca se ouvira falar. Pelo meio dia, Casa Grande lá oferecia um prato de sopa a quem lá se chegasse. a tempo antes que acabasse. Outros iam a casa, no intervalo de jantar, na esperança de um milagre, que podia ser uma fatia de pão centeio e meia dúzia de azeitonas.
Nos dois fornos comunitários da Aldeia é que se cozia o pão com a pouca farinha que se ia conseguindo, moendo o grão lá nas azenhas da Baságueda, na do Ti Feco ali ao Açude, ou até na mó movida pela força braçal  da Maria Júlia. Também se podia trocar grão por farinha na fábrica do Salvador, na de Medelim, na de Aldeia do Bispo, a mais recente, ou até em Penamacor. Isto para quem tivesse ainda grão, ou com que comprá-lo junto daqueles a quem, atempadamente, haviam sido pagas as rendas. Pago com dinheiro que quase não havia ou com a força do seu corpo, dali a umas semanas, quando recomeçassem os trabalhos do campo: sachas, cavas, mondas, podas...
Mas voltemos aos fornos: o cheirinho do pão a cozer ainda fazia mais fome naqueles já por ela muito atormentados. Rara era a fornada que não tivesse, ao sair do pão, ali um grupo de crianças e até adolescentes a "obrigararem" que uma ou outra mulher mais generosa ali  partissse um dos seus pães e o distribuisse quase que num renovar do milagre da multiplicação evangélica. Sem direito ao "peixe"... Não eram esquisitas estas Crianças e a expressão "Não gosto" era-lhes desconhecida.
Frequentemente, os mendigos andavam de terra em terra a pedirem "o pão nosso de cada dia" e a ouvirem também a frequente resposta de que
- Nosso Senhor o ajude, que eu já não posso. Impossível dar a todos. Tenho bocas para sustentar...
Tanto na fome como na doença a Comunidade, cheia de necessidades, "bastava-se" a si própria, sofrendo e partilhando. Náo raro se passavam 5 ou 6 dias na cama com uma feroz amigdalite ou uma gripe em que o único remédio era o gemer constante e sofrido e uns chás e outras mezinhas caseiras, cujo resultado era mais fruto da Fé do que das qualidades curativas de alguns dos produtos usados. Curar a dor de ouvidos com azeite quente, a papeira ou qualquer mal da pele com "unto sem sal", a falta de apetite com passagem sob portas.... A bruxaria entrava, então em cena. Sempre era mais barato do que a vinda do médico. E, na ausência de dinheiro para aviar a receita... o efeito seria sempre o mesmo!!!. Na dor de dentes, nas dores de ouvidos... em tantas dores de corpos feridos e sofridos fisica, psíqica e espiritualmente. Ir a Penamacor ao Dr. Barbas, ou ao Dr. Rodrigão, ou ao Dr. Moutinho e passar pela Farmácia era um verdadeiro luxo de muito poucos. Mandar vir qualquer deles à Aldeia... então a coisa estava mesmo feia, o cheiro da Morte andaria por perto. Quase sempre para passar a certdão de óbito.
Mas voltemos ao tema da fome. Jamais poderei esquecer um episódio de que fui personagem oculta e atenta
Noite escura, casas escuras e cheias de medos - outros se seguirão a este - estava eu já na humildade de uma cama confortável, o vento a uivar e a chuva a cair e, que seria isto?  Ouve-se um leve roçar na porta da habitação. Já as nove horas haviam batido e com uma noitada daquelas quem andaria na rua...
- Quem está aí?
A resposta foi tão suave  e acanhada que a pergunta teve de ser repetida.
- Quem é que bate à porta com uma noite destas?
- Sou eu...
- Eu quem?! Que queres tu ,miudo? Já devias estar na cama.
Cama?! Poder-se-ia chamar cama a um monte de palha em cima do qual dormiam meia dúzia de garotos enrolados em mantas de trapos?
. Sou o Tó Manel e não vou para a cama que tenho muita fome. Não tive nada para a ceia...
Adoçou-se a voz da dona da casa. O Tó Manel, de um pai que só sabia fazer filhos, homem de taberna, maus fígados, que tanto malhava na mulher como nas crianças... barbeiro que só trabalhava ao sábado e no domingo de manhã, à fugida da GNR....
- Ó meu filho, entra e aquece-te. Já sabes que somos pobres, não tanto como vós. Vá aquece-te. Os meus filhos já estão na cama. Toma lá esta malga de caldo, que sobrou. Leva lá este bocado de pão e  aquece-te e enxuga-te.
O Tó Manel tinha o meu nome e era da minha idade. Passados mais de 60 anos ainda recordo, doloridamente, esta cena tão comovente. Como hoje, uns de barriga cheia, a gastar dinheiro para emagrecerem, combaterem o colesterol e a diabetes e outros a estender a mão à Caridade na procura do que por Justiça lhes era devido.
O Tó Manel já não faz parte deste Mundo. Lembro-me sempre dele, com o dedo polegar direito amputado pela ferradura de um cavalo que lhe pisara a mão, enquanto brincava junto dele com as mãos no chão. Filho de pai alcoólico, não dei conta de que aprendesse, em tempo normal, o que era essencial nesse tempo: ler, escrever e contar... Não foi uma criança feliz, não foi um adolescente feliz, não podia ser um homem feliz. Faltou-lhe, como hoje continua a faltar, o Amor de uma  Família estruturada. Como acontece a muitos do nosso tempo, crianças ou velhinhos.
Verdadeiramente me questiono, hoje e agora, se esta democracia de brincadeira não nos vai aproximando de uma ditadura a sério?!
(1) Doença, maus tratos, trabalho infantil, falhas na educação e na instrução, desAmor, falta de trabalho ou trabalho mal remunerado, habitação indigna, vestuário de miséria, bem estar quase inexistente...
PS (Post Scriptum) A realidade foi conhecida e sentida pelo autor. As personagens  e a forma do texto são fruto da sua imaginaçao. Outros medos?! Talvez....

5 comentários:

Jorge Passos disse...

Meu caro António

Os anos quarenta,tempos de guerra mundial e guerra civil espanhola,tiveram reflexos por todo o País e na nossa região( Beira Interior )de um modo muito especial.A população era pobre e muitas famílias sobreviviam com dificuldades.Os jovens cedo começavam a dar o corpo ao manifesto e alguns do nascer ao por do sol.Mas havia solidariedade e amizade mesmo quando aos Domingos à tarde,por vezes, uns copitos a mais davam azo a algumas desavenças.
Felizmente os tempos mudaram...e hoje não encontramos na nossa terra gente com dificuldades.Não há é a mesma solidariedade,nem as verdadeiras amizades de outros tempos.
Um abraço
Jorge

Anónimo disse...

Sr. Professor,
Muito grata pelos seus escritos. Perdoe a invasão que faço ao seu blogue, do qual sou leitora assídua.
Muita saúde para si e toda a sua família.
Obrigada
Lucília

António Serrano disse...

Agradeço as simpáticas palavras com que me vão entusiasmando a escrever.
O Jorge tem um lugar especial na minha vida, crescemos juntos e somos muito Amigos.
A D. Lucília, uma querida desconhecida, também ver ajudar.
Bem haja!

Anónimo disse...

"Como hoje, uns de barriga cheia, a gastar dinheiro para emagrecerem, combaterem o colesterol e a diabetes e outros a estender a mão à Caridade na procura do que por Justiça lhes era devido".
Passados 66 anos volta a agravar-se o fosso dos ricos/pobres, dos que sabem como driblar o sistema para ter umam posição ao sol e de nov os pais olham os seus filhos com tristeza no rosto por não saber o que oferecer e garantir no seu futuro.
O tempo passa, a história perpetua-se. Não aprendemos e nao crescemos.
Bonita crónica Sr. Serrano.
Sandra

prohensa disse...

Para quando estas estórias fazerem apenas parte da história?!!!
Um abraço
J. Adolfo