terça-feira, outubro 12, 2010

A Ribeira

Há 60 anos, a Ribeira continha, nas suas margens, grande parte da vida e da riqueza de Aldeia.
Desde o limite da freguesia vizinha de Aranhas até à raia do Concelho, lá para a Arrancada, a caminho de Medelim, alguns dos nossos melhores campos de cultivo ficavam na beira do nosso mais significativo curso de água.
Embora a maior parte dos terrenos adjacentes pertences- se às casas "grandes", os "remediados" na sua própria terra, e os rendeiros nos terrenos que alugavam, extraíam de lá o seu sustento com o suor do seu rosto e os calos das suas mãos.
Verdadeiramente, boa parte da vida da Aldeia, de Junho a Setembro, mudava-se para junto da Ribeira. Ali, Verão fora, salvo nas pausas dos trabalhos, abrigados à sombra de sobreiras e de oliveiras, nas poucas  "casas" de pedra cobertas com telha mourisca ou com palha, em choças de colmo de centeio, os nossos camponeses tinham mil tarefas para cumprir: lavras, cavas, sementeiras, sachas e mondas, ceifas, acarrejas, descamisas e malhas, regas e colheitas diversas. Também a sesta, sob um calor abrasador ou o descanso nocturno com a "música" e as picadas das melgas e dos mosquitos.
Eram interessantes os serões, lá nos campos, a contar as estrelas cadentes ou sob um luar sem paralelo. Habitualmente, um céu aclarado por milhares de pontos luminosos, "aliviava" uma escuridão de quase não se verem as "camas" em que cada um procurava alívio das canseiras passadas e forças para um novo dia de uma vida sem novidades.
Apenas dois ou três pontões existiam para a travessia da nossa Ribeira, enriquecida aqui e ali com os seus pequenos mas bem importantes afluentes. Fora dos pontões, na maior parte das passagens, na época de maior caudal, a travessia era feita a vau ou saltando de poldra em poldra, blocos de granito espetados no leito e que cada um tentava pular de modo a não meter os pés na água. Tarefa pouco fácil para os mais idosos ou para quem transportasse um pesado cesto à cabeça, um caldeiro quase sempre cheio enfiado no braço, uma criança de colo e outra um pouco maior, a choramingar "Mãe, pega-me que estou cansado..." Ou com um molho de lenha, um saco bem pesado às costas. O corpo humano era um dos mais disponíveis transportes da época e muito raro seria ver alguém entrar no Povoado, de regresso do trabalho, com o "corpinho ao alto". Grande parte da população nem tinha posses para adquirir e sustentar um burro que ajudasse a aliviar das muitas canseiras de cada dia. Era mesmo preciso "dar o corpo ao manifesto". Assim, carregando excesso de peso ninguém tinha peso em excesso...
As enxurradas do Inverno já lá iam, a Primavera fora amorosa e até meados de Julho a Ribeira levava água bastante que se pudesse aproveitar para regar hortas, batatais e milheirais. Sítios havia que, com pequenos açudes, se conseguia que a água irrigasse, no seu caminhar, as pequenas várzeas da vizinhança. Depois, numa charca aqui, numa represa acolá, na maior parte das situações, era tirada com caldeiros ou baldes de lata, a pulso, com auxílio da picota ou burra com varais de pinho ou eucalipto. O mesmo trabalho era feito para retirar a água dos numerosos poços abertos nos terrenos limítrofes da Ribeira, pois o motor de rega estava por inventar e as poucas noras se contavam pelos dedos das mão. Uma trabalheira.
O açude mais significativo era o que alimentava a azenha, ali na zona do "Pontão". Em toda a minha meninice ali se moía  trigo,  centeio e  milho em perfeita harmonia ambiental,: a água deslizava na levada e fazia girar a enorme roda de madeira a conseguir que uma engrenagem "misteriosa"   fizesse  trabalhar as mós de pedra que transformavam o grão em farinha...
Para usar a água da Ribeira era preciso obter a respectiva licença de utilização junto do guarda-rios. Também ele se encarregava de velar pelo cumprimento da obrigação de cada um, nos meses de Julho e Agosto, limpar as margens e o leito da nossa Ribeira, onde cresciam salgueiros, freixos, choupos e muitas silvas, onde rouxinóis e melros haviam feito os ninhos e, no Verão, se abrigavam do calor e dos predadores. Limpeza feita - os rebanhos também tinham nesta tarefa um papel importante - lá para fins de Setembro, as primeiras chuvadas e enxurradas teriam o caminho livre para chegarem ao seu destino sem grandes contratempos para os campos em redor, o que nem sempre se conseguia evitar, quando vinha uma daquelas "trovoadas a sério"...
Nos serões de Verão era frequente as vizinhanças falarem de cá para lá e de lá para cá, contando as "últimas" quase sempre já "velhas".
Só muito raramente se acendia outra luz que não fosse a da fogueira onde se cozinhava e os serões poderiam ser passados na mais completa escuridão, apenas à luz das estrelas. Raramente, uma candeia de azeite ou de petróleo...
Dada a proximidade das famílias por ali "acampadas", alguns namoros tiveram lugar por lá, nos arredores da nossa Ribeira e, de vez em quando, de lá saíam casamentos... Sem as "poucas vergonhas" e as "pressas" dos dias em que hoje vivemos... Tudo gente "séria", pois as raparigas bem sabiam que as "facilidades" de hoje podiam dar enormes complicações no futuro.
Mesmo às escuras, mas com especial encanto nas noites de lua cheia, se podia aproveitar o tempo para descamisar as maçarocas, tirar o feijão das vagens, cantar ao desafio, contar histórias de bruxas e lobisomens, descascar as batatas para o almoço da manhã seguinte, rezar. De vez em quando um habilidoso fazia ouvir o seu realejo, mas o som mais recordado era o do Zé Piolgo a tirar melodiosos sons do pífaro que ele próprio construía com pau de sabugueiro. As tardes eram longas, os serões curtos, pois o sol havia de aparecer bem cedo, ainda o sino lá da torre não batera as 6 horas da manhã.
Alguns dos mais conhecidos apelidos da nossa Aldeia tiveram que ver com a Ribeira: Baguinhas, Piolgos, Cabecos, Filipes, Passotas, Lãs-Brancas, Cácaus, Flachos, Dominós, Piorrecos, Burricos, Pirolitos, Fecos, Colhudos, Malaguetas, Pichins, Caixas, Carneiros, Cabos-Esteiros, Duartes, Choras, Chorelas, Paíchas, Ratinhos... um nunca acabar!
Ali cresceram, trabalharam, sofreram, amaram. Sempre pobres, quase sempre felizes, raramente zangados.
Solidariedade bastante num trabalho mais complicado ou numa aflição inesperada que exigisse o esforço de todos... era certo e sabido que todos diriam "aqui estou".
Hoje, tenho uma vida melhor?! Não estou certo disso.
Uma homenagem ao Grupo de Adufes de Proença-a-Velha, terra do meu coração. Algumas das cantigas ouvia-as nos dias e noites lá pela Ribeira.
Aqui são narradas situações reais, com a liberdade de escrita que o autor entendeu usar.

4 comentários:

prohensa disse...

A água foi de facto um elemento essencial na fixação das populações e no aparecimento dos povoados, à medida que o homem aprendeu a aproveitá-la não apenas para fins agrícolas mas também industriais, com as azenhas, os lagares, os pisões... e essa mesma água que contribuía para produzir toda essa "fartura" em Aldeia de João Pires, fazia o mesmo em Medelim e, juntando-se ao Rio Torto, fazia ainda o mesmo em Proença-a-Velha...
Tal como o Professor também eu não estou certo quanto à melhoria de vida dos dias de hoje, relativamente aos dias difíceis relatados neste seu "post". É contudo uma forma de vida que parece já só existir na memória daqueles que viveram esses tempos, condenada ao esquecimento, tal como esses belíssimos nomes a que faz referência...
Nota: Já sei porque é que escolheu esse vídeo do "Modas e Adufes", foi por causa da música do "António olha o gaio"...
Um abraço.

jorge passos disse...

Caro Professor e grande amigo António Serrano:

Foi com imensa alegria e entusiasmo que li e reli o teu artigo "A Ribeira".
Conseguiste transportar-me tantos anos atrás!..,reviver momentos duros e difíceis das nossas gentes de então,mas ainda assim felizes e, por que não dizê-lo?,de uma pura e verdadeira amizade.
Fizeste-me recordar tanta gente simples da nossa terra,belos momentos passados em conjunto na "TAPADA",outros em que eu próprio,bem pequeno experimentei a dureza de algumas noites numa choça rudimentar.
Afinal,a vida mudou e felizmente para melhor.A dúvida será se hoje as pessoas se semtem assim tão felizes...
Obrigado,amigo.Parabens pelos teus escritos.Terás aqui um leitor atento.
Abraça-te o Jorge

P.S.-A nossa terra não tem adufes,mas tem belas músicas.

António Serrano disse...

Jorge,
Comoção e alegria podem ser as palavras que melhor exprimem o que senti ao ver aqui as palavras com que me saudaste, neste espaço, sem pretensões, onde procuro fixar a memória de tempos que vivi e, obviamente, aos quais não voltarei. Apesar dos alguns "desesperos" que sentimos e das muitas "carências" por que quase todos passámos, fomos muito felizes, à nossa MANEIRA, no tempo da Inocência. E TU, Jorge, participaste dessas alegrias pois, num dado momento das nossas jovens vidas, fomos mais do que irmãos, fomos AMIGOS! E nunca o pude esquecer. Tu fizeste parte da minha vida; estou convencido de que eu também fiz parte da tua.
Depois, o destino é inexorável e cada um seguiu o seu caminho, com maiores ou menores facilidades, com grandes ou pequenas atrapalhações.
Uma coisa é certa: ninguém nos poderá roubar os muitos e bons momentos que vivemos juntos. Por eles e por este reencontro dou graças a Deus e peço-Lhe que te abençôe e a todos os teus.
Muita Paz e muita Luz nas vossas vidas! Sobretudo quando o "nevoeiro" parece querer nada deixar ver.
Bem hajas por teres vindo!
Abraço-te com esta Amizade já muito velha, mas firme,
António

Anónimo disse...

Caro Tó:
Cá estou de novo e agora para te agradecer com sinceridade a tua firme amizade.Tudo isto me parece um sonho..Tenho visitado o teu Blogue e não imaginas quanto fico sensibilizado com os teus últimos escritos.Parece que eu próprio revivo contigo todas aquelas histórias verdadeiras que tu tão bem descreves.
É verdade que passámos muitos momentos juntos,sobretudo nas nossas férias...e não esqueço nada do que então fazíamos.
Lembras-te das nossas práticas de ginástica e corrida naquelas manhãs de Verão,estrada fora,até S. Lourenço?! Eu comandava: Correr..puxar...mais devagar...descançar...passo normal.Até parece que eu percebia alguma coisa daquilo!...No final,se calhar,o resultado era nulo.
Lembro com saudade aquelas férias de Verão em que com muita dedicação e trabalho preparámos umas peças teatrais para animar as nossas gentes nas tradicionais Festas de Verão de Nossa Sª da Graça.
Tudo preparado,papeis ensaiados...e dias antes da realização, o António Serrano,uma das figuras Principais,adoeceu.
Grnde frustração para o ensaiador,realizador e produtor...Afinal tudo acabou bem.
O teatro lá se fez e o António Serrano,com a graça de Deus,recuperou.
Foram tempos maravilhosos esses que passámos juntos.Nada, nem ninguém os poderá fazer esquecer.Nem a separação,o tempo, a distância ou qualquer outra coisa inimaginavel poderá desfazer a nossa amizade Eu sou um saudosista convicto e tal,como tu,tenho recordações fantásticas.Um abração e obrigado pelas tuas palavras amigas.Jorge