domingo, fevereiro 20, 2011

Histórias de outros tempos... escritas por outros 1


Corria o ano de 1954. Era dia de 5ª-Feira Santa, 15 de Abril. Eu e a maior parte dos garotos da minha idade só pensavávamos em fazer as lanternas para levarmos na "Ladainha das Mulheres".
A Ladainha é uma espécie de procissão que se realiza na Aldeia todas as 6ª-feiras da Quaresma e à qual só têm acesso os homens. As velas eram substituídas por pinhas secas a arder, espetadas num pau. Na 5ª feira Santa, realiza-se a chamada "Ladainha das Mulheres" esta aberta a toda a população. sem diferenciação de sexos.
Aqui não entravam as pinhas, mas sim as velas e as lanternas. Estas eram formadas por uma roda de cortiça, um cilindro de papel branco e uma cana. A roda servia de base ao cilindro. Na superfície lateral do cilindro eram colados os símbolos da Paixão: a cruz, a lança, os cravos, a coroa de espinhos, o cálice a hóstia. Os ornamentos eram feitos de papel vegetal colorido, geralmente tirado dos envelopes das cartas que, na altura, eram forrados.
Este material era-me fornecido, geralmente, pelas primas Lai, Irene e Arminda. ( Aqui fica a minha gratidão.)
Eu, com a ajuda do meu irmão, lá fiz a minha e se não era a mais bonita, havia verdadeiras obras de arte, não seria também a mais feia das que seguiram no cortejo nocturno.
Às 8 horas, a matraca tocava a última para ladainha e eu já «estava em pulgas», pois o pai ainda não tinha ceado e não queria chegar atrasado.
Às oito e meia, estava Igreja cheia e o ti Iná e o ti Foduchas deram início aos canticos e preces. Da igreja seguimos para o Espírito Santo e lá ia eu orgulhoso da minha lanterna.
Porém, uns mariolas dos mais velhos já tinham "lançado os dados" sobre ela e, naquele ano, a minha lanterna era  uma das que estava condenada a arder.
Entre rezas e cantos chegámos à capela. Eu estava acompanhado pelo meu pai e pelo meu padrinho.
Um dos rapazolas que estava em cima do coreto mirou o alvo, "tirou os azimutes" e disparou, mas como devia ser fraco a matemática os cálculos foram mal feitos e a pedra, em vez de acertar na lanterna, acertou no centro da testa do portador.
O sangue saíu em repuxo. A lanterna caiu no chão e ardeu, enquanto o dono era levado a casa da Srª D. Maria, onde foi sustida a hemorragia e posta uma ligadura a volta da cabeça..
Passei a Páscoa com um galo na testa.
O meu padrinho, o Sarra, afirmava que só podiam ser aqueles.
A minha mãe preferia não falar mais nisso. Nunca se soube quem fora o autor da proeza.
Estamos no ano de 2009, é 5ª-Feira Santa, dia da "Ladainha das Mulheres". Estou à conversa com uns velhos amigos e um diz-me:
- Ó Fernando, faz hoje anos que parti a cabeça ao teu irmão...
- Qual ao meu irmão?!!! Foi a mim!
- Foi a ti?! Eh pá, passei a vida convencido que tinha sido ao teu irmão.
-Já passou. Só resta um pequeno sinal na testa.
-Podia ter sido uma chatice. A malta quando é garoto não pensa.
E rimos os dois, 55 anos depois...
O «Sarra» não estava enganado, em parte. Era um dos do grupo mas não aquele em que ele pensara.
Homem da Serra

5 comentários:

Zé Rainho disse...

Caro amigo Serrano,
Um texto histórico vivenciado. História pura e dura sem roupagens novas ou velhas. Apenas História que fica para os vindouros.
É tão bom recordar assim, com esta fluência e lucidez outros tempos, outros valores, outras gentes!
Fico muito feliz por o ter a escrever no seu espaço, que também é nosso, pelas aprendizagens que fazemos.
Muito obrigado.
Grande abraço
Caldeira

Jorge Passos disse...

Meu caro tó:

Aproxima-se mais uma 5ª Feira Santa e por isso a tua oportuna história,aqui bem descrita,pese embora a recordação do sucedido no Espirito Santo ,que desconhecia,e que provavelmente a ti te deixou alguma mágoa,traz-me igualmente à memória, e com quanta saudade, os preparativos da garotada para a Ladainha das Mulheres...A minha lanterna ,não tão bonita como outras,era normalmente feita pelo Ti Escalafrário e, sem disputas de vencedor, era com toda a alegria que se participava naquela manifestação popular.Belos tempos esses das ladainhas das 6ªs Feiras da Quaresma... Lembro o Ti Iná,o Faduchas e seus filhos,Zé Oliveiros,Badão ,José Vieira,Malagueta e tantos outros...e recordo um vosso pastor que trazia sempre pinhas para a rapaziada amiga...
Continua com os teus "medos de Aldeia"e delicia-nos com as tuas belas descrições.Um abraço amigo.Jorge

António Serrano disse...

Jorge, Amigo,
Esta história não foi escrita por mim e só me diz respeito por ter acontecido com o... meu Irmão.
Que há-de aparecer numa das próximas por causa do pirolito que tiveste de lhe pagar para ele ir, pela meia noite, ver a data que estava escrita no portão do cemitério... Será talvez a última dos "Medos da Aldeia", um tanto cómica. Também é preciso rir. As nossas passeatas a AB para vermos TV. Só nós!!!
Agradeço as palavras de conforto com que distingues.
Os amigos são "cegos"???!!!
Abração

prohensa disse...

Olha o meu professor da 3ª e da 4ª também aparece por aqui e não dizia nada!...
Tenho que agradecer ao mano António o ter trazido a terreiro o mano Fernando, mesmo de cabeça entrapada e a escorrer sangue!...
Um grande abraço aos dois desde antigo aluno que tão boas recordações guarda dos tempos da escola.
João Adolfo

Jorge Passos disse...

Ao António e Fernando Serrano

"Homem da Serra" não me dizia nada.A prosa e o conteudo eram familiares e confesso que o final da história me deixou algo confuso.Pensei,no entanto,tratar-se de um equívoco do interlocutor,mas afinal a confusão foi minha.
Parabéns ao Fernando e um abraço para ambos.Jorge